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Reu muda versao e diz que atirou por achar que freira estava armada

OESP, Nacional, p.A14
10 de Dez de 2005

Réu muda versão e diz que atirou por achar que freira estava armada
No julgamento em Belém, 'Fogoió' conta história diferente de dez depoimentos anteriores e outro réu isenta supostos mandantes
Roldão Arruda
Rayfran das Neves Sales, o homem que confessou ter assassinado a irmã Dorothy Stang, apresentou ontem em Belém uma versão diferente da que já tinha apresentado em outros dez depoimentos feitos perante a polícia e representantes do Judiciário. Na primeira sessão do tribunal do júri organizado para o seu julgamento e o de Clodoaldo Carlos Batista, também acusado pela execução da religiosa americana, Rayfran negou que ela leu trechos da Bíblia antes de morrer. Também tentou mostrar que Dorothy era causadora de conflitos na região e, sobretudo, insistiu que nunca soube de um consórcio de fazendeiros que teria encomendado o crime, por R$ 50 mil.
Ao descrever os fatos ocorridos na manhã do dia 12, nos arredores de Anapu, no sudoeste do Pará, Rayfran disse que discutiu com a freira e assustou-se quando ela enfiou a mão na surrada pasta de plástico com zíper da qual nunca se separava. Foi após um diálogo de vinte minutos, onde ela assumiu a defesa dos agricultores envolvidos com projetos de desenvolvimento sustentável (PAS), que vinham se desentendendo com os fazendeiros da região.
Dorothy procurou a bolsa quando viu que Rayfran estava armado. O que veio a seguir foi relatado ontem da seguinte maneira pelo réu. "Ela enfiou a mão na bolsa, dizendo: 'Essa é a minha arma'. Como eu não sabia o que tinha dentro da bolsa, fiquei assustado, puxei o revólver e atirei nela. Dei o primeiro tiro e não vi mais nada." O primeiro tiro atingiu a freira, de 73 anos, no abdome. Quando ela começou a cair, Rayfran fez um segundo disparo contra a cabeça. Os outros quatro acertaram costas. Ele só parou de atirar quando ficou sem balas no Taurus calibre 38 que tinha levado para tocaiar a freira, acompanhado por Clodoaldo. Em seguida os dois fugiram pela mata, deixando o corpo caído no chão de terra batida da estrada vicinal que levava ao PAS.
O depoimento de Rayfran ocupou quase toda a manhã. Ele deixou escancarada sua preocupação em afastar do caso qualquer responsabilidade dos fazendeiros Vitalmiro Bastos Moura, o Bida, e Regivaldo Pereira Galvão - apontados pela polícia como mentores intelectuais do crime e organizadores do consórcio que levantaria R$ 50 mil para o pagamento da execução da freira.
Numa seqüência de exposições que pareciam bem combinadas, Rayfran e Clodoaldo negaram qualquer promessa de pagamento pela execução e procuraram jogar toda responsabilidade pela organização da empreitada nas costas do fazendeiro Amair Feijoli da Cunha, o Tato, para o qual trabalhavam. Disseram até que se sentiram ameaçados por ele. "Ele disse para mim: 'Vocês têm que matar ela, porque vocês trabalham para mim'. Eu fiquei ameaçado, senti medo", disse Rayfran. "Ele me chamou de medroso. Disse que eu podia matar porque aquilo ia acabar em nada. A polícia ia correr atrás de mim por uns cinco ou seis dias e depois esquecer tudo."
Essa estratégia de defesa já era esperada. Ao negar a existência de uma combinação prévia para pagamento da execução, Rayfran e Clodoaldo contribuem para eximir de responsabilidade os dois principais fazendeiros envolvidos no caso desqualificam em parte o crime para obter penas menores.
A estratégia tem pouca chance de dar certo. Sua sustentação já enfrenta fissuras até entre os dois acusados. Ontem, Clodoaldo insistiu que a freira leu a Bíblia para Rayfran antes de morrer - o que confirma a história anterior de que ela enfiou a mão na pasta de plástico para retirar o livro.
Uma testemunha convocada pela promotoria, o agricultor Cícero Pinto, que presenciou o assassinato, também relembrou que a freira leu a Bíblia - uma passagem do Evangelho de São Lucas sobre as bem aventuranças, na qual se diz "bem aventurados os mansos porque eles herdarão a terra".
O maior temor dos representantes da Igreja e de organizações de direitos humanos, é que os acusados não sejam punidos. O presidente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), d. Tomás Balduíno, que ouviu o depoimento de Rayfran, disse: "O receio é que o julgamento desses dois seja para dar uma satisfação à opinião pública, enquanto os mandantes aproveitam as brechas da lei para permanecerem impunes." Rayfran, que enfrentou o juiz, os promotores, o júri, os fotógrafos e as câmeras de TV com um ar altivo, quase arrogante, disse em apenas um momento que se arrepende do que fez e que se sente até hoje assombrado pela freira. O promotor respondeu de forma irônica, dizendo que não precisa se preocupar: "Se o fantasma da Dorothy aparecer para você, será para ler a Bíblia."

Auditório lotado e vigilância da ONU no início do julgamento
Políticos, autoridades e familiares acompanham depoimento dos pistoleiros; americanos preparam documentário sobre o caso
Durante todo o dia de ontem, autoridades, políticos e representantes de organizações de defesa dos direitos humanos do Brasil e do exterior desfilaram pelo auditório do tribunal do júri onde estão sendo julgados os assassinos de Dorothy Stang, que morreu defendendo os interesses de uma comunidade de pequenos agricultores assentados no sudoeste do Pará, no dia 12 de fevereiro.
A representante especial da Secretaria-Geral de Defensores dos Direitos Humanos da ONU, a advogada paquistanesa Hina Jilani, acomodou-se na primeira fila do auditório. Logo depois, foi convidada pelo juiz que preside a sessão, Cláudio Montalvão das Neves, a se sentar ao lado dele, na mesa principal do plenário. Hina acompanhou o julgamento na parte da manhã.
O ministro Mário Mamede, da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência, também esteve no tribunal pela manhã e foi chamado para a mesa pelo juiz.
O presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Rolf Hackbart, permaneceu durante alguns minutos no auditório. Entre os políticos presentes, avistava-se a senadora Ana Júlia (PT), integrante de uma comissão de parlamentares que produziu um relatório paralelo sobre o assassinato de Dorothy. Ela também ocupou um lugar ao lado do juiz, numa espécie de rodízio de personalidades.
Por alguns minutos, a americana Margarida Stang - irmã da freira - esteve na mesa, numa fileira de cadeiras situada atrás do juiz. Daquela posição, ela pôde encarar de frente o homem que confessou ter assassinado a religiosa com seis tiros, Rayfran Sales, o Fogoió.
Atrás dela, dominando todo o tribunal, uma enorme pintura a óleo, retratando uma justiça cega e de cabelos longos e esvoaçantes, ladeada por Moisés, com as tábuas da lei, e Jesus, com um livro aberto.
Dezenas de jornalistas acompanharam a sessão. No plenário, separado da platéia por uma pequena amurada de madeira, um grupo de cinegrafistas americanos movimentava-se . Eles estão produzindo um documentário sobre o caso. Em determinado momento, logo no início dos trabalhos, havia 72 pessoas no reduzido espaço do plenário, entre advogados, promotores, seguranças, juízes, convidados, acusados, jurados.
LENTIDÃO
Ao abrir a sessão, o juiz aproveitou a presença das autoridades e da imprensa para fazer um discurso com comentários sobre a lentidão nos procedimentos do tribunal do júri. Neves falou particularmente de uma tese que levantou em 1999, em defesa da eliminação de uma das fases do processo, por considerá-la repetitiva. Foram quase quinze minutos de discurso.
Previsto para iniciar às 8 horas, o julgamento só começou às 8h40. Parte do atraso foi devida a uma confusão ocorrida na área da defesa dos acusados. No último minuto, o advogado Eduardo Imbiriba desentendeu-se com seu cliente, O Fogoió, e afastou-se do caso. Quem assumiu a defesa foi a defensora pública Marilda Cantal, que já tinha sido encarregada de cuidar dos interesses Clodoaldo Carlos Batista, o Eduardo.

Mil sem-terra cercam tribunal e cobram justiça
Sindicalista rural percorreu 600 km de ônibus para ver julgamento em Belém
Enquanto os dois réus acusados pelo assassinato da religiosa Dorothy Stang são julgados no edifício do Tribunal de Justiça do Pará, do lado de fora, na Praça Felipe Patroni, estão concentrados cerca de mil trabalhadores rurais. Foram mobilizados por sindicatos ligados à Confederação dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), ao Movimento dos Sem-Terra (MST) e à Comissão Pastoral da Terra (CPT). O objetivo é pressionar o Judiciário do Estado para que puna os responsáveis pelo crime.
Eles se revezam nas cadeiras da platéia do tribunal. Quem não entra acompanha os depoimentos e exposições por meio de telões e alto-falantes instalados na praça. Ontem, pela manhã, um dos ouvintes mais atentos do que ocorria no julgamento era o sindicalista Sebastião Rodrigues de Castro, que tinha passado a noite em um ônibus, percorrendo os 600 quilômetros que ligam Marabá, onde ele vive, a Belém.
O nome de Sebastião figura nas listas de pessoas ameaçadas de morte no Estado. Ele contou que há semanas tem vivido como um foragido, dormindo em lugares diferentes a cada noite, pois está sendo perseguido. "Sempre tem alguém perguntando por mim nos lugares por onde passo", disse. "Sou bastante conhecido na comunidade onde atuo. E neste momento estamos no meio de uma disputa judicial pela posse de um terreno numa área de assentamento rural. Recebo todo dia ameaças por telefone."
No acampamento também são realizados shows sobre direitos humanos e sindicalismo, além de shows com artistas dos próprios movimentos rurais. Ontem, às 21h30, podia-se ouvir cantorias e bateção de palmas nas praça. Cantavam Zé Ramalho: "Êê ôô vida de gado, povo marcado, povo feliz."
Pela manhã, às 8 horas, tinham recebido a visita da representante do Secretariado-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Defensores dos Direitos Humanos, a quem relataram os problemas que enfrentam no Estado. Em todos os lados da praça, faixas lembram Dorothy, assegurando que seu sangue não foi derramado em vão.

OESP, 10/12/2005, p. A14

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