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Retratos da plenitude humana

GM, Fim de Semana, p. E8
17 de Abr de 2009

Retratos da plenitude humana

Branca Nunes

Muito antes de a prevenção do meio ambiente e da cultura indígena se tornarem assuntos recorrentes, dois fotógrafos, em lugares diferentes do globo, anteciparam a importância de temas que só agora preocupam um mundo assombrado pelo aquecimento global e pelo desaparecimento dos últimos resquícios de florestas. Autores de fotografias separadas por 50 anos, Cláudia Andujar e Edward Curtis estão juntos numa exposição da Caixa Cultural, que une os trabalhos desses dois artífices da imagem.
A mostra começa numa sala escura onde estão projetadas fotografias da série "Marcados" - exposta por Claudia na 27 Bienal Internacional de Arte de São Paulo, em 2006. Nas imagens, olhos atônitos encaram a câmera, enquanto as feições indígenas, assinaladas por um número, confrontam-se com a vestimenta de homem branco.
A série é fruto da primeira campanha de vacinação e de levantamento da situação da saúde dos índios realizada pela Comissão Pró-Yanomami (CCPY). Como os yanomami tradicionais não têm nomes - são identificados pelo grau de parentesco, já que vivem em comunidades muito pequenas - ganharam números e as fotos foram anexadas às fichas de saúde. "Os índios não entendiam o que estava acontecendo", lembra Claudia. "Aquela era a primeira vez que ficavam marcados por uma cultura que não era a deles", recorda.
A sensação de desconforto provocada pelas imagens é proposital e remete ao passado da fotógrafa. Judia, nascida em1931, em Oradea - região que pertenceu a Hungria durante a Segunda Guerra Mundial e depois foi devolvida à Romênia -, Claudia sentiu na pele os horrores do nazismo ao ver o pai e grande parte da família enviados a campos de extermínio. "Ao contrário do que acontecia aos prisioneiros, nós os marcávamos para salvá-los", afirma a fotógrafa. Os índios estavam sendo dizimados pelas epidemias trazidas com as rodovias amazônicas idealizadas pelo governo militar.
Claudia fugiu da Transilvânia com a mãe no dia em que a região foi invadida pelas tropas russas. "A ocupação alemã já havia sido cruel o suficiente para encararmos outra", diz. Ao som dos tiros dos canhões, a dupla, acompanhada por dezenas de refugiados, embarcou em um trem de gado rumo à Suíça numa viagem que durou três meses.
Da Suíça foi para os Estados Unidos e mais tarde para o Brasil, onde chegou aos 24 anos. "Vim para visitar minha mãe, que havia se mudado para São Paulo anos antes, e decidi ficar", conta. "No Brasil, reencontrei algo da minha infância que nunca mais tinha sentido depois de deixar a Hungria: o calor humano". Nessa época, Claudia sobrevivia dando aulas de inglês e dedicava-se à pintura abstrata.
Começou a fotografar para entrar em contato com as pessoas sem precisar falar português. "Sempre tive interesse pelo povo e muita facilidade de me comunicar sem palavras", afirma.
As imagens a levaram para o fotojornalismo e, durante a histórica edição da revista Realidade sobre a Amazônia, conheceu os yanomami. Imediatamente, decidiu dedicar sua vida a registrar os costumes, as tradições e a lutar pelos direitos deste povo, ainda pouco violado pelo contato com o homem branco. Vinte e oito das milhares de fotografias feitas durante as décadas seguintes estão expostas na Caixa Cultural.
Com a mesma entrega de Claudia, Edward Curtis se dedicou aos indígenas, realizando um extenso trabalho sobre as tribos norte-americanas. Durante 30 anos, o fotógrafo percorreu os Estados Unidos registrando em texto, imagem e som as últimas tradições vivas desses povos. O trabalho culminou na publicação de uma enciclopédia de 20 volumes chamada "The North American Indian", que incluía quase 2.200 fotogravuras.
Embora suas imagens tenham ajudado a criar o estereótipo que hoje se tem dos índios norte-americanos, a grande maioria dessas fotografias foi feita numa época em que esta população pouco guardava da cultura original. Para atingir seu objetivo, Curtis vestia os "modelos" com roupas tradicionais e pedia a eles que posassem para a câmera, com o intuito de refazer "a memória de uma memória", como define Claudia Andujar, e assim registrar para a eternidade uma realidade quase perdida. "Toda a fotografia é um recorte", argumenta João Kulcsár, curador da mostra. "Portanto, esta maneira de agir, apesar de criticada por muitas pessoas, não desmerece o trabalho de Curtis, uma vez que ele queria justamente preservar o passado".
Nascido num rancho no Wisconsin, em 1868, Curtis teve seu primeiro contato com os indígenas por meio do etnólogo especializado nos povos índios, Bird Grinnell. Ao lado do pesquisador, presenciou a Dança do Sol das tribos Blood, Blackfoot e Algonquinos, na região de Montana, experiência que o colocou em contato com a magnificência dessas nações.
O trabalho, inicialmente financiado pelo magnata das estradas de ferro John Pierpont Morgan - apresentado a Curtis pelo presidente Theodore Roosevelt, que deu total apoio à empreitada - acompanhou mais de 80 tribos diferentes. Além dos mitos, lendas e cerimônias religiosas, o fotógrafo empenhou-se em registrar a língua, a organização social e política, o meio geográfico, o vestuário, a preparação dos alimentos, os usos e costumes relativos ao nascimento, ao casamento e à morte, os jogos, as danças, assim como os pesos e medidas desses povos.
O fotógrafo também reproduziu as biografias de chefes, guerreiros, curandeiros e sacerdotes, até então confinadas à oralidade. Com um gravador, registrou as músicas, material que pode ser encontrado no National Museum of the American Indian e no Smithsonian Institution, ambos em Washington.
Sob o título "O Legado Sagrado", as fotografias de Curtis na Caixa Cultural dividem-se em três núcleos: "As Grandes Planícies", composta pelas realizadas durante a expedição em que Curtis presenciou a Dança do Sol, em 1900; "A Costa Noroeste, o Planalto e o Alasca", período em que viveu com os esquimós da região subártica e ártica do Alasca, que possuíam os costumes menos afetados pela influência europeia; e "O Sudoeste", região que abrigava os Hopis, os Navajos e os Apaches e à qual dedicou o maior número de volumes de sua enciclopédia.
Assim como o trabalho de Claudia Andujar colaborou imensamente para as conquistas dos yanomami, como para a demarcação do seu território, homologada em 1992, as fotografias de Curtis contribuíram para uma série de direitos adquiridos pelos indígenas norte-americanos na década de 1960. "Em vez de explorarem as imagens dos índios, ambos acabaram por vivenciar intensamente essa cultura", observa Kulcsár. "Por meio da fotografia, encontraram algo além das imagens. Formaram com essas tribos verdadeiras famílias".
A empolgação que se formou em torno das obras de Curtis nos primeiros anos do projeto foi proporcional à falta de interesse que se abateu sobre este material no começo dos anos 1920. O fotógrafo terminou o trabalho sob forte pressão financeira e emocional. Quando morreu, em 1952, aos 84 anos, submerso em dívidas, pouco se falava de suas imagens.
Cláudia Andujar, que tem suas obras expostas nos maiores museus e galerias do mundo, viu seu trabalho em prol dos yanomami ser depreciado de diversas maneiras. Além das ameaças de morte que recebeu durante sua luta, na década de 1970 a fotógrafa foi obrigada pela Funai a se retirar das aldeias e, no fim dos anos 1990, o senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR) acusou-a de ter enriquecido às custas dos indígenas.
O reconhecimento pelo trabalho aconteceu somente no ano passado, quando Claudia recebeu a ordem do mérito cultural do Ministério da Cultura. "Senti que enfim fui reconhecida como uma pessoa que quis defender os valores culturais do Brasil", diz a fotógrafa, traindo a mágoa armazenada nos anos vividos sob críticas ferozes. "Mesmo assim, ainda sou muito malvista pela imprensa e pelos governos da região Norte".
Nas fotografias expostas na Caixa Cultural, estão lembranças de um tempo em que o homem vivia em comunhão com o meio. Imagens que são o legado sagrado da nossa história.

"Retratos Yanomami" e "Legado Sagrado"
Caixa Cultural, Praça da Sé, 111, tel.: (11) 3321-4400. Terça a domingo, 9h às 21h. Hoje, (17), visita guiada com Claudia Andujar, às 19h30. Grátis. Até 26 de abril.

GM, 17-19/04/2009, Fim de Semana, p. E8

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