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Retorno ao cosmo de Humboldt

GM, Fim de Semana, p.8
25 de Fev de 2004

Retorno ao cosmo de Humboldt
São Paulo, 27 de Fevereiro de 2004 - C oincidência feliz a de ver publicado, pela Editora Mauad, um dos primeiros estudos brasileiros sobre o naturalista alemão, viajante incansável, Alexandre von Humboldt. O livro é de Lúcia Ricotta e tem por título "Natureza, Ciência e Estética em Alexander von Humboldt". Falo de coincidência porque em outubro deste ano realiza-se, na City University of New York (CUNY) a conferência "Alexander von Humboldt: da América ao Cosmo". Essa conferência comemora Humboldt e seu legado, 200 anos depois de sua histórica viagem à América (1799-1804), que culmina com sua visita ao Estados Unidos em 1804, a convite do presidente Thomas Jefferson. É possível que tudo isso anuncie a hora de quebrar o gelo que encobre a figura do naturalista, entre nós ainda cristalizado, e reconhecer a influência que ele exerceu, entre os séculos XVIII e XIX, no pensamento crítico e nas artes, tanto das Américas quanto da Europa. Momento histórico de passagem, aquele em que as ciências do homem procuravam legitimar-se ante a objetividade própria às ciências da natureza. O contexto é, portanto, o do surgimento, em meados do século XIX, de áreas particulares do saber e da delimitação de seus domínios: a botânica, a geografia, a zoologia, a biologia, a antropologia, a sociologia, a estética. Mas o surgimento dessas disciplinas, contemporâneo à repartição do saber que nos é familiar até os dias de hoje, não constituiu obstáculo para a ciência humboldtiana. Ao contrário, Humboldt insistia em religar arte e ciência, a fim de intentar uma nova interpretação dos efeitos da Natureza sobre a subjetividade moderna. É pela ênfase dada a esse traço que o livro de Lúcia Ricotta requer atenção. Pois ela considera a concepção de ciência de Humboldt uma concepção heurística que legitima sim, a especialização, desde que não impeça a vizinhança e o trânsito necessário entre as disciplinas recém-emergentes. E a vizinhança proposta por Humboldt é entre o conhecimento científico e a experiência estética. O corpus documental privilegiado pela autora é o que chama de a grande obra de síntese de Humboldt, "Cosmo: Projeto de uma Descrição Física do Mundo", publicada na Alemanha entre 1845-62. Começando a escrevê-la aos 64 anos, Humboldt morre antes de ver publicado seu quinto e último volume. Se "Cosmo" se realiza como síntese, "Quadros da Natureza", de 1807, publicado entre nós em 1952, já a antecipava, assim como o desejo humboldtiano de despertar, em jovens e sensíveis espíritos, a paixão do cientista-viajante pelo estudo da Natureza. Parte do prefácio ao "Cosmo" consta do apêndice ao livro de Lúcia Ricotta. Aí se colhem as últimas palavras do naturalista, que fixam o pressuposto básico dessas que são, conquanto relativamente ignoradas, suas obras mais importantes: "Nos tempos futuros, não passará totalmente despercebida a tentativa de descrever a natureza viva em sua sublime grandeza, de descobrir, nas repetidas mudanças das alterações físicas, que se propagam como ondas, o que permanece totalmente desconhecido". A proposta de união entre arte e ciência expõe um Humboldt empenhado na apresentação estética da ciência. Mas, afinal, o que é uma apresentação estética da ciência? Para responder tal questão a autora recorre ao escrutínio do contexto romântico alemão e à exploração de um determinado repertório conceitual, envolvendo valores como "natureza", "sentimento da natureza", "mundo", "fenômeno", "íntima comunhão", "unidade", "totalidade", "infinito", "cosmo". E supõe, na representação poética da matéria científica, a importância da linguagem e seu efeito: uma linguagem ancorada em seu efeito de visibilidade, que permitisse ao homem conectar-se intimamente ao segredo e à verdade reconhecidos no contato direto com a Natureza ou nas descrições dos naturalistas. Para isso, afirma a autora, a linguagem viva e transparente que Humboldt propõe não é suficiente. Falta a contrapartida do que ela chama de os "estímulos reflexivos qualificados para superar as contradições e as oposições advindas da separação entre ciência e estética, consciência e imaginação". E essa contrapartida é, para ela, o caráter simbólico que a linguagem da ciência humboldtiana contém. Partindo da concepção do simbólico em Schelling, articula uma reflexão sobre o simbolismo, desde sua sistematização pelo filósofo Kant, e estabelece que este é um modo de representação (assim como a alegoria e o esquematismo), que pressupõe um procedimento de reflexão apto a expor os fenômenos naturais, ao mesmo tempo em que os constitui enquanto fenômenos. Há, então, uma identidade e um espelhamento mútuo entre ser e linguagem, entre o particular e o universal. Assim, a totalidade de arte e ciência deve promover a operação própria ao simbólico: pela contemplação da matéria empírica é possível ascender a um vôo incontornável da imaginação e vislumbrar o que Humboldt chama de a "visão geral dos fenômenos". A partir dessa visão, o "espírito humano" transcende a singularidade dos dados físicos e dá vida a um fato interior, fundindo seu espírito ao movimento vivo dos fenômenos físicos. É como conseqüência dessa formulação que a autora fala em ascese espiritual pelo conhecimento. O conhecimento científico para Humboldt mantém o "livre gozo da natureza" sem perda da fruição estética de cenas. Ele deixa de representar o confinamento do método matematizável, puro, descritivo e distanciado e move com intensa vivacidade a imaginação, a "penetração fecunda no jogo de forças ocultas", bem como a mágica que transforma cada ser natural na ponta do misterioso enigma da vida. Embora se esforce por articular o simbolismo da cosmologia humboldtiana à lógica do idealismo transcendental, ligando-o a Schelling, por exemplo, ela não deixa de inclui-lo naquele contexto de popularização da ciência iniciado no século XVIII com o Iluminismo. O trecho destacado por Lúcia revela a preocupação de Humboldt com a recriação de uma face mágica da Natureza, mas com um objetivo bem pragmático, qual seja, o de romper com os estreitos limites das academias científicas e popularizar os resultados de seus trabalhos. Diz o naturalista: "Não posso, portanto, deixar o receio se desdobrar em sua limitação, senão uma certa turbidez da alma poderá parecer conduzir ao receio de que a natureza, em cada pesquisa sobre a sua essência interna das forças, perderia sua magia da excitação para o misterioso e o sublime. As forças, no sentido próprio da palavra, atuam apenas magicamente como na escuridão de um poder misterioso, quando sua atuação ocorre fora do âmbito das condições geralmente reconhecidas da natureza". O argumento da autora em face dessas últimas palavras é o de que "(...) para Humboldt, os homens nunca atentam para além da aparência, porque vivem, de modo incorrigível, abstraídos das coisas mais importantes. É para uns poucos, então, a magia da excitação para o misterioso e o sublime. Aqueles cuja inteligência visual se aproveita da existência irredutível do véu superposto sobre as coisas, para aceder à plena vista grandiosa. No gozo desse privilégio, que de certo modo anima todo observador, a Natureza deixa quase imediatamente de ser objeto científico; torna-se conjunto de forças internas, recriadas em proveito da mágica, cobrindo (...) a aparência física das coisas para chegar à vida velada. Aqui desponta uma das hipóteses fundamentais do estudo: para Lúcia Ricotta a ciência de Humboldt é linguagem e seu efeito sobre o homem; signo, a propósito, pródigo em conhecimento e imaginação humana. Pois o símbolo, transparente e distanciado, garante firmeza e coesão à comunhão íntima que o homem desfruta com a Natureza, ao contemplar uma cena. É ele também que permite ao espírito humano participar do processo de criação da Natureza, produtora da diversidade manifestada no mundo natural. Por essa via, a própria noção de realidade é confrontada com a de idealidade; o real deixa de ser só aparência e passa a incluir o acesso ao visível por meio do que está velado, oculto ou mantido em outra dimensão. Tal dimensão é a do espírito, perseguida por uma perspectiva filosófica sobre a Natureza, que vai dar lugar, no século XIX, ao campo da Filosofia da Natureza (Naturphilosophie), onde se "destaca o sentido de uma intuição espiritual da Natureza". Daí a autora passa à afirmação da dimensão antropológica da ciência humboldtiana, em luta contra a concepção de ciência mecanicista newtoniana. O conhecimento científico, para o estudioso alemão, está ligado à disposição da alma frente à esplêndida diversidade de beleza que qualquer naturalista encontra na zona tórrida. Entenda-se então: embora haja uma forte influência dos relatos naturalistas de Humboldt sobre autores brasileiros como Gonçalves Dias, Euclides e Sousândrade, a autora privilegiou, nas palavras de seu orientador, prefaciador do livro, o "contexto de origem de Humboldt" e o "diálogo que ele estabeleceu com o rico arco de pensamento que além de Goethe, envolvia Winckelmann e Schelling". Uma curiosidade literária, reforçando a importância do estudo de Lúcia, será aqui anotada: "Eureka", de Edgard Allan Poe - "aquela investigação do universo", nas palavras de Thomas Jefferson - é baseado em "Cosmo" e dedicado a Humboldt. "A alma é uma cifra, no sentido de um criptograma", diz Poe, em "The Literati of New York City". Uma cópia de "Eureka" foi encontrada na biblioteca privada de Humboldt à época de sua morte. Poeta e naturalista compartilham o antagonismo contra o método das ciências e a escravidão imposta pela razão dedutiva e indutiva; a paixão pela criptografia, pela physiognomia, pela frenologia e pela grafologia, derivadas da análise das formas humanas e aplicáveis também, por analogia, à natureza física. A preocupação febril com semioses "exóticas" os levaria a afirmar a existência de uma physiognomia das linguagens. Sueli Cavendish - Ensaísta e tradutora. Doutora em Literatura Comparada
GM, 27-29/02/2004, p.8

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