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A ressurreição indígena

Página 20
Autor: Juracy Xangai
10 de Jun de 2007

Nos anos 70, a versão oficial era de que não havia mais índios no Acre, mas eles estão vivos e salvaram sua cultura

Na escuridão da noite, o som do violão ganha a companhia cadenciada do maracá e um atabaque, enquanto o pequeno pajé Xanê Huni Kuin, de apenas 16 anos, entoa uma antiga cantiga pedindo luz e compreensão aos que comungam o sagrado chá do nixipãe para mergulhar nos caminhos espirituais.

O céu estrelado ganhava ainda mais brilho com a lua nova que despontava por trás das árvores na chácara de Antônio Macedo, 55 anos e que há 32 anos dedica sua vida ao trabalho pela demarcação das terras e o reconhecimento da cultura dos povos indígenas do Acre. A pajelança segue pela noite animada pelos hinários da Ayahuasca e cantorias na língua huni kuin (Kaxinawá) na casa que os índios querem comprar para transformar em seu ponto de encontro para o intercâmbio de sua cultura na capital.

Gustavo Mateus Kaxinawá, ou simplesmente Xanê Huni Kuin, chegou há poucos dias de sua aldeia no alto rio Jordão, na Fronteira com o Peru, e conta com orgulho que sua comunidade trabalhou por oito meses para construir um kupixawa (casa grande) onde tradicionalmente moravam as famílias de seu povo antes do contato com os não-índios.

Lá completou a quarta série na língua huni e por isso ainda tem dificuldade para expressar-se totalmente em português, mas veio para a cidade acompanhando do pai, o pajé Ikã Muru, ou Agostinho Manduca, como é mais conhecido.

"Vim para ficar seis meses na cidade, quero aproveitar esse tempo para aprender violão, mexer com computadores e fazer outras coisas que sirvam para ajudar meu povo a viver melhor sem depender dos outros. Os antigos viviam na floresta sem precisar de nada disso, mas nós agora trabalhamos junto com os brancos e precisamos aprender como tudo funciona para cuidar melhor das nossas coisas", declara o aprendiz de pajé.

Xanê faz parte de uma nova geração de jovens índios que estão vindo para cidade sem tirar o pé das aldeias, para onde querem voltar com novos conhecimentos que julgam ser necessários para melhorar as condições de vida de seu povo, que quer se integrar ao mundo e à economia do mundo dos não-índios, mas sem abrir mão de suas tradições e sua cultura. Proposta ousada que vem sendo defendida e posta em prática por jovens de diferentes povos indígenas Xanê e Banê, ambos da etnia huni kuin (povo da noite), Haru do povo contanawa (povo da palha) e Shanehu do povo yawanawa (povo do queixada).

Acre não tinha índios

Essa era a versão oficial dada pelos governos e defendida pela própria Funai até o início dos anos 70. Isso era fruto de uma política iniciada na chegada dos nordestinos trazidos pelos seringalistas que financiavam grupos armados para realizar as chamadas "correrias", através das quais aldeias inteiras, no que se inclui de velhos a crianças, eram dizimadas para "limpeza da área" a fim de instalar os seringais. Alguns sobreviventes eram escravizados pelos brancos e até por índios mais "espertos" e então passavam a ser chamados de caboclos (mistura de índio com branco), quando na verdade eram índios puros.

"Até o início dos anos 70 não havia nem pedido de demarcação de terra indígena no Estado porque a versão oficial do próprio governo era a de que não havia mais índios no Acre, embora todo mundo soubesse que isso não era verdade. A mudança começou quando a Funai decidiu punir o indigenista José Porfirio Fontinelli de Carvalho, que estava causando polêmica ao defender índios isolados, e resolveu mandá-lo para o Acre, onde não teria o que fazer", recorda Macedo.

"Ele [Porfirio] orientou a mim e ao Terry Aquino, que fez seu mestrado na Ufac baseado no processo de reconhecimento da existência dos nossos povos. Os primeiros povos reconhecidos foram os kaxinawás do Jordão e os apurinãs da estrada de Boca do Acre. Isso em 1975."

A partir de então foram ressurgindo os grupos porque a maioria tinha até medo e vergonha de declarar-se índio, por isso muitos perderam a língua e elementos de sua cultura, que acabaram sendo preservados pelas comunidades mais isoladas, que hoje compartilham seus conhecimentos com os parentes das mais de 16 nações existentes no Estado.

"Ao desenvolvermos nossos trabalhos descobrimos pelos mais antigos que antes da chegada dos seringalistas com suas correrias e matanças de índios essas terras todas eram habitadas por muitos povos, muitos deles desapareceram, alguns foram absorvidos por outros grupos. Com o reconhecimento da sua existência e a demarcação de suas terras, a vida deles ganhou outro impulso. Nos anos 70 os kaxinawás do Jordão, por exemplo, eram uns 300, hoje são mais de 2.000 pessoas". Esclarece Macedo.

Ele lembra que embora sua existência nem fosse reconhecida e até muitos deles tivessem medo ou vergonha de ser o que eram, a maioria simplesmente não conseguiu deixar de ser índio porque a cultura e os costumes de suas tradições falava mais alto. Assim, fosse na forma de fazer suas lavouras, caçar, pescar, comidas como o "arabu" (gemada de ovo de tracajá) ou bebidas embriagantes como a caiçuma (feita de macaxeira fermentada) e mesmo o hábito de roubar as meninas para casar, integraram-se à vida das comunidades rurais num movimento de resistência em que cada grupo fazia isoladamente e à sua maneira.

"Todos lutavam de alguma maneira para preservar seu modo de vier e sua cultura, mas faziam isso isoladamente conforme o grupo ou povo e, embora muita gente ache que eu, o Terry e outras pessoas tenhamos incentivado os índios a se unir, isso aconteceu de forma natural quando a falência da borracha diminuiu a pressão dos seringalistas que mantinham os índios e os seringueiros tão separados".

Então esclarece: "A vida com o patrão era uma escravidão, mas piorou quando eles venderam os seringais para o fazendeiros do sul, porque sem a terra e sem a floresta índios e seringueiros não sobrevivem. Isso levou à união dos povos da floresta proposta por nós ao Chico Mendes". Mas isso é outra história.

Pelos caminhos dos espíritos

Xanê é um dos 20 aprendizes de pajelança de seu pai o pajé Ikã Muru (Montanha Sagrada), mas seu aprendizado começou muito mais cedo que para os demais. "Quando tinha cinco anos de idade, meu pai me deu um pouquinho do nixipãe e saiu para atender as pessoas, achei que era pouco, fui lá e bebi uma caneca. Então tudo se transformou, eu entrei pelos caminhos dos espíritos da floresta e compreendi o quanto o chá era importante porque com ele enxerguei outras coisas, vi a origem de nosso povo e coisas que ainda vão acontecer no futuro. Mirei um dia inteiro e descobri o caminho do conhecimento".

Ao ultrapassar o "portal" que liga os dois mundos (físico e espiritual) desta religião ameríndia, Xanê não imaginava que estava entrando numa caminhada que duraria anos e que, na prática jamais termina. "Aos 12 anos comecei a ser preparado para me tornar pajé, já fazem cinco anos, estudo todo dia, a gente não pode comer qualquer coisa, precisa se preparar porque é uma missão de muita responsabilidade. Além de conhecer as ervas, as árvores, os bichos e os pássaros nós temos de aprender as histórias e cantorias de meu povo, aprender a mergulhar nos mistérios da floresta para poder curar as pessoas".

Ainda sem um relógio no pulso, Xanê segue o ritmo da natureza, por isso mesmo não tem vergonha de confessar que: "Na aldeia aprendo as coisas da floresta, aqui na cidade ainda quero estudar outras coisas, aprender a tirar fotografia, filmar, fazer desenho e pintura para guardar as coisas da nossa cultura", quanto às aulas de pajelança, ele é sincero em dizer: "Estou estudando, o chá é apenas um dos caminhos, ainda tenho muita coisa para aprender, não sei quando eu fico pronto porque ser pajé exige muito trabalho do ser humano!"

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