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Resistência - Especialistas reprovam projeto

CB, Brasil, p. 18
25 de Nov de 2004

Resistência - Especialistas reprovam projeto
Estudo elaborado por professores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte revela que a transposição leva água para onde ela existe em abundância e exclui as regiões necessitadas

Bernardino Furtado
Do Estado de Minas

A despeito do apoio da governadora Wilma Farias (PSB), a transposição das águas do Rio São Francisco enfrenta naquele estado uma oposição qualificada. A resistência se baseia em relatórios de uma comissão de professores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que se dedicou a estudar a versão do projeto apresentada em 2001 pelo governo Fernando Henrique. Um dos principais porta-vozes dessa oposição é João Abner Júnior, doutor em Hidrologia pela Universidade de São Paulo (USP). Até fevereiro de 2004, foi diretor-geral do Instituto de Gestão de Águas do Rio Grande do Norte. Abner diz que não houve mudanças no projeto da transposição capazes de alterar a essência da conclusão dos professores da UFRN: o empreendimento levará água para onde ela já existe em abundância, o custo será proibitivo para a irrigação e as regiões mais secas do estado não serão atendidas.
Segundo o professor da UFRN, os dois ramais que receberão as águas do São Francisco no estado tem sobras hídricas consideráveis. O Vale do Apodi, além do rio perenizado por barragens já existentes, tem consideráveis reservas subterrâneas. No Vale do Assu, a barragem Engenheiro Armando Gonçalves pode garantir uma vazão de 17 metros cúbicos por segundo. Atualmente, libera 14 metros cúbicos por segundo, o dobro do consumo dos 2,7 milhões de habitantes do Rio Grande do Norte.
No conjunto, diz Abner, o estado tem uma disponibilidade de água de 70 metros cúbicos por segundo e só usa 32 metros cúbicos por segundo, o que inclui o consumo humano, industrial, da irrigação e, principalmente, os 11,11 metros cúbicos absorvidos pelos viveiros de camarão.
Em relação à população, a disponibilidade de água no Rio Grande do Norte, ao contrário do que diz a propaganda do projeto de transposição, é comparável ao observado na bacia do São Francisco. São 360 metros cúbicos por segundo para os 13 milhões de habitantes da bacia. Isso dá uma relação de 27,6 metros cúbicos por segundo por grupo de um milhão de pessoas. No Rio Grande do Norte, a proporção é de 26,8.
O maior pecado da transposição, segundo Abner, é excluir do traçado dos canais a região do Rio Grande do Norte com maior déficit de água, especialmente para abastecimento humano, o Vale do Seridó, no sul do estado. O Relatório de Impacto Ambiental (Rima) da transposição do rio São Francisco relega o abastecimento do Seridó para futuras obras de interligação com o rio Piranhas.
Essa futuras obras, segundo Abner, já fazem parte do que ele chama de lobby da transposição. Ele diz que, quando dirigia o Instituto de Gestão das Águas, elaborou um projeto que solucionaria o abastecimento humano do Seridó, especialmente das pequenas cidades, povoados e comunidades rurais. Seria uma nova barragem no rio Piranhas, a Oiticica, que ''roubaria'' 4% da água destinada à barragem Engenheiro Armando Gonçalves. Segundo o professor, em 95% do tempo, a nova barragem iria gerar energia elétrica suficiente para suportar o bombeamento para o Seridó.
Com a adesão à transposição do rio São Francisco, diz Abner, o governo estadual mudou o projeto de Oiticica. Agora, dependente da água do Velho Chico, cinco vezes mais cara, a nova barragem será destinada também para irrigação e vai consumir mais energia para bombeamento.
O entusiasmo com a água que vem do Sul pôs no limbo o Plano Estadual de Recursos Hídricos (PERH). Contratado pelo governo do Rio Grande Norte à empresa de consultoria Hidrosservice, o plano descarta a transposição do Rio São Francisco por razões semelhantes das apontadas pelos professores da UFRN. O PERH está pronto desde 1999, mas até hoje não foi encaminhado para discussão e aprovação na Assembléia Legislativa.

Engenheiro prega a 'filosofia da seca'
No semi-árido, há uma disputa por créditos e investimentos oficiais entre a agropecuária de sequeiro e a lavoura irrigada. Manoel Dantas Villar Filho, o doutor Manoelito, é um legítimo representante do primeiro grupo. Não é só um criador de gado e caprinos de alta linhagem em pleno sertão de Taperoá, na Paraíba. É um especialista em semi-árido e saneamento básico. Engenheiro hidráulico, formado pela Universidade Federal de Pernambuco, integrou a primeira equipe técnica da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene), na década de 50. Foi secretário de Saneamento da Paraíba e o primeiro presidente da empresa de águas do estado, a Cagepa. Do alto dessa experiência, é um crítico mordaz da transposição do rio São Francisco.
No amplo alpendre da fazenda Carnaúba, aberta por seus antepassados no século 19, Villar Filho chama o projeto comandado pelo ministro Ciro Gomes, da Integração, de ''extensão da empulhação ao povo do semi-árido'', que começou no reinado de Pedro II, quando, pela primeira vez, o governo central incomodou-se com a seca do Nordeste e planejou levar água do rio São Francisco ao Ceará.
Villar Filho diz que a transposição do rio São Francisco vai ser a obra máxima de um equívoco histórico, a tentativa de revogar o clima do semi-árido. Segundo ele, a maior parte da região não é adequada à irrigação, porque tem solo raso e altamente suceptível à salinização. ''É um presente de grego, pois vai aumentar ainda mais a dependência do Nordeste em relação à água'', afirma.
No começo da década de 70, Villar Filho instalou um pluviômetro em sua fazenda. Graças ao medidor, ele sabe que, em média, na propriedade chove tanto quanto em Paris, aproximadamente 600 milímetros anuais. A diferença é que, na capital francesa, a chuva é distribuída em 183 dias por ano. Em Taperoá, chove, em média, durante 49 dias ''Na maior parte do tempo o nosso clima é seco e precisamos desenvolver atividades econômicas compatíveis com essa realidade'', diz.
Na opinião do agricultor, há uma indução de demanda de água no semi-árido provocada por projetos de agricultura irrigada, e a transposição faz parte dessa lógica, a filosofia da água. "Precisamos da filosofia da seca, uma estratégica econômica de convivência com o clima da região." Villar Filho lembra que, em contraposição à monocultura de açúcar do litoral, o sertão nordestino foi colonizado por meio da pecuária, das grandes fazendas de gado, que consomem muito menos água.
A filosofia da água, diz Villar Filho, pode ser observada nos investimentos públicos em pesquisa agropecuária. Ele cita que o maior centro de produção de conhecimento e tecnologia agrícola do sertão nordestino, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) - Semi-Árido, foi instalado em Petrolina, na margem do rio São Francisco. Talvez por isso, segundo o agricultor, há mais conhecimento sobre espécies para agricultura irrigada do que para o sequeiro. ''A caatinga tem mais de três mil espécies vegetais, mas só mil foram catalogadas'', diz. (BF)

360 metros cúbicos por segundo Disponibilidade de água para os 13 milhões de habitantes da bacia do São Francisco, praticamente a mesma do Rio Grande do Norte
70 metros cúbicos por segundo Disponibilidade de água no Rio Grande do Norte, enquanto o consumo não passa de 32 metros cúbicos por segundo
600 milímetros anuais Volume pluviométrico de Paris e Taperoá, segundo o engenheiro Villar Filho. A diferença é que, na capital francesa, a chuva é distribuída em 183 dias por ano. Em Taperoá, chove, em média, durante 49 dias

CB, 25/11/2004, Brasil, p. 18

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