VOLTAR

Resgate da cultura dos quilombos

JB, Cidade, p. A24
21 de Ago de 2005

Resgate da cultura dos quilombos
Comunidade no Sul fluminense retoma tradições

Mariana Filgueiras

''Na Fazenda de Santana / quem achar um lenço, é meu / bordado nos quatro cantos / foi a morena quem me deu / que caiu do meu bolso / do pulo que o burro deu''. A cantiga do jongo, dança típica dos escravos, é entoada timidamente pelos remanescentes do Quilombo de Santana, a 15 quilômetros de Quatis, no Sul fluminense. Acompanhada pela batida repicada de um candongueiro de 113 anos - uma espécie de tambor, um pouco mais comprido, guardado como uma jóia pela comunidade - a dança é uma das poucas lembranças que ficaram do tempo em que escravos forros fundaram ali um refúgio, no final do século 19.
Preocupado com o resgate da história local, perdida à medida que os mais velhos foram morrendo, o líder dos 97 descendentes, Miguel Francisco da Silva, 40 anos, resolveu pedir ajuda. Há um ano, procurou empresas privadas e conseguiu firmar parcerias para restaurar o quilombo, gerando renda para a comunidade.
- Isso aqui é um tesouro histórico que não pode morrer. Além disso, a comunidade não tinha como tirar sustento da própria terra. Ou plantava milho ou feijão. Conseguimos juntar os dois objetivos e estou muito feliz - lembra Miguel.
Através de cursos de capacitação profissional em construção civil oferecidos pela Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), quem antes só sabia cultivar a lavoura tornou-se eletricista, bombeiro ou estucador. Assim, os próprios moradores construíram um galpão que servirá de sede para a associação de moradores. A estrada que dá acesso à comunidade foi nivelada e algumas casas que eram de pau-a-pique agora são de alvenaria.
O telhado da igrejinha de Santana, fundada em 1867, foi restaurado. Há três anos nenhuma missa era realizada pelo risco de desabamento. Para agregar os fiéis desamparados, foi fundada uma igreja evangélica na comunidade.
Ao longo do tempo, não foi só a religião que mudou. Enquanto cozinha no fogão à lenha, herança dos antepassados, a dona-de-casa Maria da Silva, 39 anos, pede a um dos seis filhos para aumentar o volume do rádio - ''adoro funk'' - diz.
A luz chegou à comunidade há oito anos. Antes, os moradores ainda cultivavam hábitos como fritar a carne toda de uma só vez, para conservar. Ou passar a roupa no ferro à brasa.
As parcerias com as empresas também beneficiaram as mulheres, que estão aprendendo a tecer a palha da bananeira para fazer artesanato. As crianças estão resgatando a cultura negra, com as aulas de jongo financiadas pelas instituições. O aposentado Geraldo Brito Coutinho sai do bairro de Pedreira Pombal, em Quatis, para dar as aulas.
- Aprendi o jongo com uma filha de escravos, a senhora Benedita, e decidi ensinar às crianças para que elas não esqueçam as origens - observou o aposentado.
Como a história oral do quilombo ficou comprometida, o líder dos moradores tenta reunir os idosos das quatro famílias que saíram de Santana para recuperar suas lendas.
- É muito difícil achar os moradores mais antigos. Alguns estão em cidades próximas, mas nunca mais voltaram aqui - lamenta Miguel.

Situação fundiária é estudada
Das 14 comunidades quilombolas existentes no estado, Santana é a primeira que conseguiu, através de parcerias, dar início ao processo de resgate cultural. O próximo passo é garantir a regularização da situação fundiária. Em 1869, 828 hectares das terras foram doadas pelo Barão de Cajuru, dono da Fazenda de Santana, aos escravos. Mais de um século depois, fazendeiros tomaram a região e os quilombolas ficaram com menos de 1% da terra.
Depois de muitas ameaças de morte, em 2000 a comunidade recorreu à Fundação Cultural Palmares (FCP), instituição vinculada ao Ministério da Cultura, e recebeu o título de reconhecimento de território. No entanto, para registrá-lo, o cartório do município de Quatis alegou dúvidas em relação à origem dos documentos apresentados por aqueles que compraram as terras dos descendentes que partiram.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) está analisando todos os títulos de propriedade. Caso sejam comprovadas irregularidades na documentação, eles serão desapropriados e receberão uma indenização equivalente ao valor das terras, para que as propriedades sejam devolvidas aos quilombolas remanescentes.
A procuradora-geral da FCP, Ana Maria Lima de Oliveira, garante que o Incra já dispõe de verba para pagar as indenizações.
- O Incra trabalha na retirada dos fazendeiros que não conseguiram provar a posse - disse Ana.
Em novembro do ano passado, a governadora Rosinha Matheus assinou o decreto 36.660, assegurando a regularização fundiária e a titulação dos territórios quilombolas em todo o estado. No entanto, pelo menos outras três comunidades no estado - Marambaia, Rasa e Fazenda da Caveira - esperam o reconhecimento de posse das terras, direito reconhecido pelo artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal. Em todo o país, estão sendo demarcados 743 territórios.

Neta de escravos recupera história
O quilombo foi criado 19 anos antes da assinatura da Lei Áurea. Neta de escravos, a dona-de-casa Olga Maria de Jesus Moreira, 52 anos, conta que a avó teve que trocar a mãe, ainda menina, por alimentos para os outros filhos. As lembranças da época do Barão de Cajuru - proprietário da Fazenda de Santana, de onde partiram os escravos - ainda são dolorosas para muitos descendentes.
- Minha família sempre falou das correntes. Que o barão judiava muito, deixava os negros acorrentados dias inteiros. Quando vejo gente da nossa cor liberta, fico muito emocionada - comenta Olga.
Nascida em Santana, a dona-de-casa Ilda Alves Sidério, 57 anos, é bisneta da família responsável por cuidar da igreja. Aos 9 anos, mudou-se com a família para Quatis, em busca de uma vida melhor. Ilda conta que os pais tinham muito orgulho de ter herdado a função dos avós, porque ficavam liberados dos trabalhos forçados.
- Ainda guardamos alguns objetos em casa, como toalhas e castiçais. Agora, com a igreja reformada, podemos trazer de volta. Como estava quase tudo desabando, minha mãe teve medo de roubarem, como fizeram com o sino - lamenta a dona-de-casa.

JB, 21/08/2005, Cidade, p. A24

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.