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A reserva que brilha

Veja, p. 50-52, 54
25 de Ago de 2004

A reserva que brilha
Estudos mostram que a terra dos cintas-largas, palco do massacre de garimpeiros, pode abrigar uma das maiores jazidas de diamante do mundo

A área indígena dos cintas-largas, conhecida como Reserva Roosevelt, é uma imensa floresta de 2,7 milhões de hectares ao sul de Rondônia. A maioria dos brasileiros ouviu falar dela pela primeira vez em abril deste ano, quando a região foi palco do massacre de 32 garimpeiros, assassinados a tiros e machadadas por um grupo de índios, a pretexto de defender seu território. As principais companhias de mineração do mundo, no entanto, há muito se interessam pela região - e não é à toa. Pelo menos desde 1993, companhias estrangeiras sabem que o território - que tem o tamanho equivalente a dezoito cidades de São Paulo - esconde aquilo que pode ser uma das maiores jazidas de diamante do mundo. VEJA teve acesso a dois estudos encomendados por diferentes empresas de mineração, uma inglesa e outra americana. Os dois apontam para uma mesma conclusão: a riqueza que dorme no subsolo da Roosevelt é incalculável. Por meio de sobrevôos de aviões equipados com detectores magnéticos, os especialistas contratados pelas empresas descobriram que as terras dos cintas-largas abrigam nada menos que vinte kimberlitos - imensas formações rochosas que, ao brotarem do subsolo, trazem os diamantes das profundezas da terra para perto da superfície. Para entender o significado dessa descoberta, basta dizer que as catorze maiores jazidas de diamante do mundo têm, cada uma, um único kimberlito. Isso significa que, se numa projeção pessimista a área contar com apenas um kimberlito produtivo, pode render, segundo especialistas consultados por VEJA, algo em torno de 1,5 bilhão de dólares por ano. Toda essa riqueza permanece inexplorada em escalada industrial, com benefícios para o Brasil, por dois motivos. O primeiro é que a legislação proíbe a extração de minérios em áreas indígenas. O segundo é que o governo, até agora, não tinha a menor idéia do imenso tesouro que a reserva esconde. O Departamento Nacional de Produção Mineral nunca fez um estudo semelhante na área e, por enquanto, desconhece os que foram produzidos pelas companhias inglesa e americana.

A área indígena hoje é uma terra de ninguém. A corrupção na região, endêmica, envolve índios, garimpeiros, policiais e contrabandistas, que ora se associam na extração ilegal de diamantes, ora brigam por ela. Pelo menos desde 1999 e até o massacre de abril, os cintas-largas mantiveram uma espécie de sociedade clandestina com garimpeiros de Rondônia. Mediante um pedágio de 1.000 reais por pessoa e 10.000 reais por máquina destinada a explorar os aluviões - depósitos fluviais de minério -, os caciques davam aos interessados sinal verde para a retirada das pedras. Nos kimberlitos, onde a concentração de diamantes é muito maior, eles não têm tecnologia para trabalhar. A Polícia Federal, que desde 2002 investiga a região, apurou que os garimpeiros repassam as pedras extraídas ilegalmente para contrabandistas, que, com a ajuda de funcionários públicos e policiais, cuidam de "lavá-las" e despejá-las no mercado internacional. Segundo a PF, mais de 90% dos diamantes extraídos no Brasil são contrabandeados. A maior parte dessa mercadoria sai da Roosevelt. O delegado Mauro Sposito, que comanda as operações em Rondônia, afirma que, mensalmente, escoam da terra dos cintas-largas 20 milhões de dólares em pedras contrabandeadas. VEJA sobrevoou a área no início do mês e constatou que o garimpo ilegal continua em atividade, com dezenas de tendas montadas à margem do Rio Roosevelt.

Os cintas-largas tiveram as terras demarcadas em 1973. Até 2002, não haviam sido incluídos em nenhum dos dois grandes programas de financiamento de infra-estrutura do governo federal. Como ocorre nos morros cariocas, a ausência do poder público fez com que se aliassem a organizações criminosas para obter dinheiro e melhorias para sua tribo. Na década de 80, associaram-se a madeireiras na extração de mogno clandestino. No fim da década de 90, juntaram-se aos garimpeiros e contrabandistas de diamantes. A aliança se mostrou lucrativa. Hoje, os caciques cintas-largas dispõem de caminhonetes importadas e uma associação que conta com o serviço de três advogados para defender seus interesses. Apoiados pela Funai, reclamam o direito de explorar legalmente a jazida. Oito mineradoras estrangeiras querem também operar na região. Autorizadas pelo governo, elas estão presentes nas imediações da área indígena com a missão oficial de "pesquisar" o solo da região. A esperança dessas mineradoras é que, com uma eventual mudança da legislação, sejam autorizadas a explorar as terras que hoje pertencem aos índios. Em meio a esse cenário, tudo o que o governo faz, sem sucesso, é tentar administrar o caos. Só nos últimos cinco anos, sessenta pessoas morreram em conflitos envolvendo índios e garimpeiros.

Não precisava ser assim. O Canadá, por exemplo, hoje colhe os louros de uma exemplar política de extração de diamantes iniciada em 1991, quando o país descobriu a primeira das três minas atualmente em atividade. Assim como no Brasil, elas estavam localizadas em terras indígenas. Por meio de uma negociação com as lideranças nativas, o governo conseguiu abrir caminho para a exploração industrial das jazidas. Incentivou a instalação na região de mineradoras nacionais e estrangeiras, que são submetidas a uma rígida legislação ambiental. Elas repassam uma porcentagem do lucro obtido com a extração de diamantes para os índios, geram empregos e pagam impostos. Só no ano passado, os investimentos das mineradoras alcançaram 500 milhões de dólares. Hoje, o Canadá é o terceiro maior produtor de diamantes do mundo. Enquanto isso, o governo brasileiro nunca viu sair um tostão da terra dos cintas-largas, cuja situação até hoje só produziu devastação ambiental, evasão de divisas e violência.

Índios, mas não muito

Documento encaminhado ao governo federal há dois meses por uma comissão de deputados propõe a revisão dos critérios para homologação de territórios indígenas no país. A proposta, assinada pelo deputado Lindbergh Farias (PT-RJ), surgiu depois que uma equipe de parlamentares visitou a área indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima. Com 1,7 milhão de hectares, a área fica na divisa com a Guiana e a Venezuela e é um dos 124 territórios indígenas em conflito no país. Lá, a briga entre índios, agricultores e garimpeiros já dura trinta anos. "Chegamos à conclusão de que algumas áreas só se tornam territórios indígenas para conveniência de alguns grupos", diz o deputado Asdrubal Bentes, do PMDB-PA, integrante da Comissão da Amazônia. "Algumas ONGs internacionais, por exemplo, extrapolam suas funções e incentivam os índios a transformar seus territórios em uma espécie de área independente do país", reclama. Na Raposa Serra do Sol, vivem 15.000 índios, de quatro diferentes etnias. Muitos deles, observaram os deputados, têm carro e casa na cidade. Convidados por parlamentares a apontar no mapa os limites da reserva, caciques sacaram de laptops. "Os índios lá nem índios são mais", afirma Bentes.

Veja, 25/08/2004, p. 50-52, 54

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