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Reserva indígena no norte de MT é explorada pelo crime organizado

24 Horas News-Cuiabá-MT e Istoé-São Paulo-SP
20 de Jan de 2003

Numa sala dos fundos da joalheria Oriental, no centro do município de Juína, no Mato Grosso, o comerciante Rogério de Souza desdobra uma folha de veludo preto e espalha sobre a mesa centenas de pequenas pedras brilhantes. Depois de separar com uma pinça um lote de diamantes maiores, o comerciante anuncia o preço do produto: R$ 150 por quilate [1/5 de grama]. "Veio de longe. Mas se você quiser as pedras boas e grandes dos índios tem de avisar antes. Na semana passada, um garimpeiro de Rondônia estava pedindo US$ 6 milhões por uma raridade de mais de 100 quilates", disse Rogério.

A exemplo dos demais escritórios de diamantes do município, a Oriental fica na avenida 9 de Maio, o local preferido dos garimpeiros e dos compradores da Bélgica, de Israel e de vários outros países.

O comércio de pedras também é intenso nos principais hotéis da cidade. "IMG Comércio de Diamantes", anuncia uma placa colocada no apartamento 202 do Hotel Caiabi. Era nesse escritório improvisado que despachava o contrabandista de Tel-Aviv Israel Mattiyahu Garby, preso em março do ano passado pela Polícia Federal no Aeroporto Internacional Marechal Rondon, em Várzea Grande [MT], quando tentava contrabandear dois quilos de diamantes. Uma carga avaliada em R$ 1,5 milhão ao preço do mercado de hoje.

A prisão de Garby, no entanto, não foi suficiente para afugentar os compradores estrangeiros. No mesmo hotel, o belga Luix Uícus, não hesitou em dizer a ISTOÉ por meio do amigo Talai Did o que procurava na cidade: "Diamantes grandes e bonitos." Did e Uícus somente perderam a calma e encerraram a conversa quando foram perguntados sobre a legalidade da transação.

Esse cenário explica por que Juína, município cercado por várias reservas indígenas, na divisa de Mato Grosso com Rondônia, é conhecido por manter em funcionamento a bolsa de diamantes do País. Na década de 90, esse título, escrito em duas torres erguidas na avenida 9 de Maio pelo israelense Izac Ben David, se devia à grande produção de diamante industrial no município. Minúsculo, escuro e vendido a preços bem inferiores para indústrias de ponta, esse tipo de diamante anda em queda, mas é o único produzido nos garimpos do município.

A Polícia Federal, o Ministério Público Federal, e a Agência Brasileira de Inteligência [Abin] sabem que as pedras preciosas que atraem compradores e contrabandistas para Mato Grosso têm outra procedência: a reserva Roosevelt dos índios cinta larga.

Ocupando uma área de 2,6 milhões de hectares nos Estados de Rondônia e do Mato Grosso, a reserva foi presenteada com um raro kimberlito - rocha vulcânica onde é encontrado diamante.

Segundo estudo da CPRM (Companhia de Pesquisa e Recursos Minerais), órgão do Ministério das Minas e Energia, o kimberlito, o único do País que pode gerar uma mina industrial de diamante de gema, tem capacidade para produzir no mínimo um milhão de quilates de pedras preciosas por ano, o que representa uma receita anual de US$ 200 milhões.

A extração de mineral em terra indígena é ilegal e depende de regulamentação do Congresso. Mesmo assim, a Abin e o serviço de inteligência da PF estimam que US$ 20 milhões de diamantes do Roosevelt saem ilegalmente do País todos os meses.

Para a PF e o Ministério Público, o contrabando explica a enorme discrepância entre a exportação legal de diamantes de gemas, que segundo o Serviço de Comércio Exterior (Secex) no ano passado foi de apenas 9.096 quilates, e o destaque que as pedras brasileiras começam a ganhar no mercado externo.

De acordo com o Mining Journal, publicação especializada da Inglaterra que mede a comercialização de pedras preciosas na Europa, a produção de diamantes de gema do País foi de 900 mil quilates, no mesmo período, comercializados a US$ 41 milhões. Esse número colocou o Brasil como o 10o maior produtor de diamantes do mundo. Basta fazer a conta - 900 mil quilates menos nove mil - para concluir que 890 mil quilates saíram ilegalmente do País em 2001. Cerca de 98% da produção nacional. "Está claro que a maior parte desses diamantes sai do País contrabandeada", afirma o procurador da República Pedro Taques, que coordena uma força tarefa do MP que investiga o contrabando de diamantes em terras indígenas.

"Lá está a riqueza que os estrangeiros e os políticos querem tirar do meu povo. Tudo o que saiu é pouco. Os garimpeiros estão somente arranhando a rocha maior (kimberlito), abaixo do igarapé, onde está o grosso do diamante", mostra o cacique Tataré Cinta Larga, enquanto a aeronave sobrevoa o garimpo do Roosevelt. Visto do alto, o cenário apontado por Tataré é assustador. Em meio à floresta devastada, dezenas de tratores e escavadeiras abrem crateras no Igarapé do Lajes, que numa extensão de 40 quilômetros se transformou num gigantesco lamaceiro.

Os problemas do garimpo do rio Roosevelt não se resumem, no entanto, ao campo ambiental. A quantidade de pedras preciosas, grandes e de várias cores, atraiu, além dos garimpeiros e mineradoras do Brasil e do Exterior, todo tipo de criminoso e forasteiro para a região. Nos últimos dois anos, a PF retirou cinco mil garimpeiros do local. Centenas de carros e 200 toneladas de maquinário de garimpo foram apreendidos.

A PF chegou a montar dois postos de fiscalização na reserva para combater o crime organizado, mas, revoltados com a apreensão de maquinários e camionetes do garimpo, os guerreiros cinta larga, acionados pelos caciques, expulsaram os federais de sua reserva no mês passado. Em protesto contra a apreensão, os caciques assumiram o comando do escritório da Funai em Cacoal, que permaneceu fechado durante 15 dias em outubro.

O administrador do escritório, Laerte Ferraz, em conflito com os Cinta Larga, se licenciou do cargo. Os índios, que exigem a exoneração de Laerte, se aliaram aos técnicos indigenistas José Nazareno de Mares e Valdir Gonçalves, que estão sendo investigados pela PF pelo envolvimento com o contrabando de pedras. As investigações atingem também Vladimir Manqueiro, fiscal do Ibama de Cacoal.

A vida dos contrabandistas tem sido facilitada ainda pela concessão de licenças de pesquisas minerais em áreas próximas à reserva pelo Departamento Nacional de Produção Mineral [DNPM], órgão do Ministério das Minas e Energia que regulamenta a atividade mineral no País. Nem mesmo os parques federais são poupados pelo DNPM.

A PF acredita que licenças como essas são utilizadas pelos contrabandistas para regularizar as pedras retiradas ilegalmente da reserva. "Essa mina é amaldiçoada, é a mina da morte. Estou cansado de tanta violência. Já pedi minha transferência para outro local", afirmou o delegado Raimundo de Souza Filho, de Espigão D´Oeste, assustado com a onda de crimes e violência no local.

Pelos cálculos do delegado, o garimpo do Roosevelt, que atraiu ladrões de pedras, prostitutas e traficantes para a região, provocou a morte de pelo menos 100 garimpeiros, índios e contrabandistas nos últimos dois anos. Normalmente, as vítimas são garimpeiros que não trabalham para os grupos organizados. Sem dinheiro para pagar o pedágio, eles se arriscam a entrar clandestinos na reserva, onde acabam sendo mortos por índios guerreiros e jagunços contratados pelos contrabandistas. Nos últimos dois anos, 11 ossadas foram encontradas por agentes federais.

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