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Relato de um novo mundo

FSP, Mais, p.1,4-9,12
22 de Mai de 2005

Relato de um novo mundo
Quase 70 anos depois do contato com Lévi-Strauss, em Mato Grosso, os Nambiquaras continuam marcados pela escassez material, consomem açúcar em grande quantidade e dependem de aposentadorias rurais, mas dizem se orgulhar da "Maioria" de sua cultura, que permanece

DA REDAÇÃO

Sinceramente, penso que a expedição marcará época." Em carta de 1938 a Mário de Andrade, Claude Lévi-Strauss antecipava, a quente, o impacto que a estada de quatro anos no Brasil, entre 35 e 39, e as temporadas com grupos indígenas teriam sobre sua formação, o futuro de seu pensamento e o da antropologia.
O relato do período -mistura de etnografia, ensaio, por vezes delírio, texto científico e autobiografia- aparece em 1955. "Tristes Trópicos" faz 50 anos unindo as pontas do registro de uma antropologia pré-estruturalista com a fonte de inspiração, hoje, para antropólogos -digamos- pós-estruturalistas.
É também surpreendente a atualidade de comentários mais prosaicos. No Rio, "a rua não é mais apenas um lugar por onde se passa; é um local onde se fica". Em São Paulo, ele encontra na praça da Sé uma espécie de síntese da cidade e do país, "a meio caminho entre o canteiro de obras e a ruína".
A Folha refez parte do trajeto do antropólogo, indo ao encontro de índios nambiquaras no oeste de Mato Grosso. É neles que o francês acha finalmente a "sociedade reduzida à sua expressão mais simples" que desde o princípio procurava. Limite mínimo da estrutura social e política, nus e praticamente desprovidos de bens materiais, os nambiquaras eram o máximo de alteridade a que o antropólogo poderia almejar -ao ponto de crer que poderiam ser vistos, por um observador inadvertido, como a "infância da humanidade".
O relato do encontro -que Lévi-Strauss considera ao mesmo tempo "decepcionante" e "lucrativo" [leia entrevista na pág. 6]- alimenta ainda hoje estudos de ponta na disciplina em todo o mundo. Sua liderança política frágil, descrita por Lévi-Strauss, influenciou trabalhos de antropologia política. As relações de parentesco entre os nambiquaras inspirariam a teoria estruturalista do francês -e sua crítica posterior.
"Ameaçados" pela penúria na obra de Lévi-Strauss, os nambiquaras ainda vivem sob escassez material, mas parecem, com orgulho, querer desmentir o antropólogo.

Relato de um novo mundo
Rafael Cariello
Eu estudei no Rio, em 72, e conheci esse livro. Tudo surgiu do contato com os nambiquaras. É bom você ir lá conhecer. É um lugar muito bom, você espia longe, azul. E é um lugar sagrado."
Acabou de anoitecer na aldeia nambiquara mais próxima da cidade de Comodoro, no oeste de Mato Grosso, próximo à fronteira com Rondônia. Tudo escuro. Diante de uma das seis casas de madeira em que moram ao todo cerca de 30 pessoas, Oriovaldo Nambiquara, 50, diz conhecer os "Tristes Trópicos".
Sem camisa, usando óculos e calças jeans, ele quer saber o que o repórter e o fotógrafo fazem ali. Vários índios se reúnem ao redor dos brancos e conversam em nambiquara.
Há uma aldeia maior próxima a Campos Novos, posto telegráfico instalado no início do século 20 pelo marechal Rondon (1865-1958), onde, em 1938, Lévi-Strauss fez contato com a etnia. É lá -cerca de 100 km ao norte- o "lugar sagrado" de onde será possível ver as montanhas em que vivem os espíritos dos antepassados de Oriovaldo. No local, hoje uma reserva indígena, vivem pouco mais de 70 kithaulus, subgrupo dos nambiquaras.
Ao todo, eles contam cerca de 1.200 índios, que vivem em pequenas aldeias de dez a 80 habitantes, espalhados pelo oeste de Mato Grasso e sul de Rondônia.
Nas fotos da época que a expedição de Lévi-Strauss os encontrou, aparecem nus, caminhando pelo cerrado, geralmente em fila, mulheres carregando grandes balaios de fibra vegetal nas costas. Após meia hora de visita à aldeia, quando ligam um gerador de luz e três lâmpadas, que, num fio, atravessam o espaço entre as casas, acendem, é possível ver um dos cestos largado perto de uma porta.
Dentro, um espaço vazio, chão batido de terra e pequenos estrados de madeira que, próximos ao chão, servem como cama. Há porta, mas não janela. Os índios usam bermudas e chinelos. A maioria sem camisa. Quase nenhum enfeite, a não ser, eventualmente, um colar de contas pretas feitas da casca do coco.
Fazem longos trajetos pelo mato? "Só de carro", responde Oriovaldo. "Antigamente, éramos como escravos. Muitos sofriam bastante. Só existiam panelas de barro, machados de pedra", ele diz. "Hoje é fácil."
Há algo, porém, que não mudou desde a narrativa de Lévi-Strauss, que fala do contato de missões religiosas (protestantes e jesuítas) com os nambiquaras. Embora os católicos tenham recuado, a presença evangélica permanece contínua ao longo do século 20.
A religiosidade nambiquara, combatida pelos evangélicos, não desaparece
"Eu estudei oito anos em escola dominical de crente. Parei porque quero fumar", diz Oriovaldo. "O nambiquara nunca se converte inteiramente", ele diz. Aneel Nambiquara, 22, que acompanha a conversa, concorda. "Quando estava com 9, 10 anos, conheci a palavra de Deus", conta. "Mas é sempre assim", comenta, confirmando o que disse Oriovaldo.
Antes da partida, uma fogueira é acesa, e agora quase todos estão à sua volta. O carro começa a se afastar. Dá para ouvir o gerador sendo desligado, enquanto as lâmpadas se apagam.
Soja à espreita
Onde era o posto telegráfico de Campos Novos agora é só um descampado. Os nambiquaras raramente passam por lá, embora ele possa ser visto do alto do platô onde fica a aldeia kithaulu, no posto indígena de mesmo nome, na fronteira entre Mato Grosso e Rondônia.
No centro da aldeia, entre as casas de madeira simples, o cemitério: um espaço de areia fina muito limpa e bem cuidada, sem as pedrinhas e sujeiras de toda parte, cercado por uma pequena demarcação de grama, em formato retangular.
Alguns quilômetros ao sul dali, Carlos Sul Kithaulu, 42, vai de carro pela estrada que liga Comodoro (MT) a Vilhena (RO). À sua direita já começa o território indígena. À esquerda, máquinas colheitadeiras e plantações de soja a perder de vista.
Faz a viagem de volta à sua aldeia depois de três semanas afastado, "para esfriar a cabeça, esquecer um pouco" a morte do irmão. Carlos explica que tanto o irmão, Eval, 20, quanto seu filho, Akibel, 19, estudaram numa escola protestante perto de Cuiabá, onde concluíram o equivalente ao primeiro grau em 2004.
Apesar do trabalho de décadas dos missionários -um casal do grupo americano SIL (Summer Institute of Linguistics), Barbara e Menno Kroeker, trabalhou por 30 anos com o grupo e traduziu o "Novo Testamento" para a sua língua antes de voltar para os EUA, no ano passado-, dizem os índios que a religiosidade nambiquara, combatida pelos evangélicos, não desaparece.
Pecado, diz Carlos Sul, "não serve nem para urubu comer". Ele explica desgostar da idéia, que considera forte demais e "não tem a ver com esse mundo". Afirma aprovar que os índios aproveitem a educação fornecida pelos professores protestantes para não "beber e cair, igual pessoa da rua, igual pobre".
Saindo da estrada de asfalto, após uma hora de caminhonete com tração nas quatro rodas em trilhas de terra, chegamos à aldeia. Roberto Kithaulu, 34, e alguns outros poucos índios vêm recepcionar os visitantes. Muitos olham de longe, outros nem isso, mulheres e meninas riem, envergonhadas.
Roberto conta que havia quatro semanas Eval saiu com outros índios para caçar queixadas no mato e voltou mudado. "Ficou quieto, sem conversar. Ele ia vomitar, mas não conseguia. Acho que foi atacado por algum mal." Eval não tinha mulher, não chegou a casar. "Eu acredito que foi feitiço, de maldade contra ele", revela, finalmente, Carlos Sul.
Casas de madeira
Os índios estão terminando de almoçar. Fazem fila no centro da aldeia para tirarem uma porção de macarrão e arroz de grandes panelas. Sob algumas árvores, os homens preparam enfeites de tecido colorido, arcos e flechas.
Os arcos e flechas são para vender na cidade. Ainda caçam, mas agora com espingardas de chumbo. Nos dias de festa, usarão os enfeites, cocares, pena no nariz. Há bodes e cabras, cerca de 40 deles, passeando entre as casas. Lévi-Strauss descrevia o ano dos nambiquaras dividido em duas partes: na maior delas, por sete meses, caminhavam no mato caçando e catando comida. Agora fazem pequenas expedições de alguns dias ou semanas, quando levam os grandes cestos nas costas.
Passam a maior parte do tempo na aldeia e dormem nas casas de madeira semelhantes às dos brancos -com telhados de zinco em "v" invertido sobre uma espécie de caixote alongado, com ripas de madeira ajuntadas por parede. Há também uma espécie de casa sagrada, única oca que parece um iglu de palha entre as residências de madeira.
De tempos em tempos -a cada cinco anos, diz Nataniel, 17- desmontam a própria casa, em que moram até três gerações, e constroem outra, com madeira nova, a uns dez metros do local original.

"Na nossa cultura, se ficar no mesmo lugar, o raio pode cair de novo"
Há um grande espaço entre as casas. Cada uma fica a 20, 30 metros da outra. O conjunto total parece desorganizado, não há um pátio ou praça central, mas vários deles. Um pouco mais centralizado, no alto do terreno, fica o cemitério. Próximo dele, como também dentro de cada casa, há uma grande bacia, à qual os nambiquaras recorrem várias vezes ao dia. Tiram de lá, com uma caneca, uma bebida a que chamam chicha -não é fermentada, mas um suco, com água, açúcar e alguma fruta diluída: caju, abacaxi.
"Já são bem dependentes da alimentação do branco", afirma Luiz Antonio Murakami, 47, funcionário da Funai e chefe do Posto Indígena Kithaulu. "Têm as roças tradicionais deles, mas sem o açúcar e o sal eles não ficam."
O dinheiro para o macarrão, o arroz, sal e, principalmente, açúcar sai das aposentadorias rurais que os mais velhos da aldeia recebem do governo. Num grupo de 70 índios, há nove "aposentados". Usam os recursos também para comprar munição e roupas. A roça é de mandioca e milho, principalmente. "Qualquer coisa que eles vão comprar, primeiro é o açúcar", conta Murakami. Segundo o chefe do posto, os nambiquaras "são bem primitivos". "Para o tempo de pacificação que têm, a cultura deles permanece."
Carlos Sul mostra sobre o impecável chão de areia fina do cemitério a tora de madeira que marca o enterro de seu irmão. "Se não cuidamos do cemitério, aquele espírito pode prejudicar alguém. Com mordida de cobra, acidente. Temos que cuidar, respeitando o que já foi", explica Johnattas, outro irmão de Carlos.
"O espiritismo deles é um negócio sério", comenta Murakami. "Tenho 23 anos de Funai. Desde que eu conheço essa região, tem missão protestante." Carlos Sul, cujo nome é uma homenagem a um missionário, explica assim as mudanças econômicas e materiais e o que diz ser a permanência da religiosidade nambiquara: "A minoria da cultura mudou. A maioria, não".
Ele mostra em casa um "Novo Testamento" traduzido para o nambiquara e afirma: "Eu tenho que acreditar na minha religião primeiro, aí posso acreditar na segunda religião. Como é que vou largar da minha, que já vem lá da raiz?".
Organizações protestantes
"Na nossa cultura, se ficar no mesmo lugar, o raio pode cair de novo." Aélcio Nambiquara, 22, é o professor da aldeia. Dá aulas de alfabetização, em português e na própria língua, para dez alunos, entre 6 e 8 anos, e outros oito, adolescentes.
Dentro de casa, vestindo uma camisa branca, explica como em 1979 os kithaulus se mudaram do antigo posto telegráfico para o alto do platô. "A aldeia foi o lugar onde ele descobriu [os nambiquaras]", afirma, em referência ao contato de Lévi-Strauss com seus antepassados. "Um raio muito forte destruiu uma casa e quase pegou uma criança. Aí, mudaram para cá."
Por quatro anos, Aélcio estudou no Instituto Bíblico Ami, na Chapada dos Guimarães, mantido por organizações protestantes brasileiras e americanas. O objetivo da escola-internato é tornar os próprios índios propagadores da fé cristã. Ele diz que os missionários sempre ajudaram muito os índios, "conseguindo remédios, dentista, limpeza".
O professor se declara "cristão". Quase todo mês, afirma, alguém de fora vem realizar um "culto" e celebrar com os kithaulus. Não importa, Aélcio diz. Ele crê -"acho que por causa do conhecimento, eu estudei"-, mas a maioria das pessoas ali, não.
Há uma explicação que o jovem professor fornece enquanto outros nambiquaras vão se juntando a ele, talvez porque tenha começado a chover lá fora, fazendo um círculo em torno do repórter. "O povo nambiquara... Nem sempre no que você disser eles vão acreditar. São um povo... liberal -não sei se essa palavra encaixa bem", começa, e aponta para o caderno do repórter. "Você agora está escrevendo. Eles não vão acreditar que vai sair no jornal. É uma cultura desconfiada. Você faz uma coisa, e eles vão dar risada na sua cara."
Segundo Aélcio, eles também "riem", de certa maneira, do que os missionários dizem. "Eles desconfiam de todo mundo; riem das pessoas diferentes", afirma. Pergunto aos que estão em volta se acreditam em mim, na história de repórter que contei. "Claro", um deles responde, e ri -e todos riem muito.
Aélcio continua: "Nambiquara brinca bastante. E um não acredita no que o outro diz". Há um caso especial de relação entre eles, explica, marcada por brincadeiras, zombarias e mentiras constantes: a que ocorre entre os cunhados. "O de fora é uma espécie de cunhado também", afirma.
E os cunhados? Também são alguém "de fora"? Aélcio pensa um pouco, e diz: "Ele é casado com minha irmã, ele é de uma família diferente entrando na minha casa".
A explicação faz sentido. Os nambiquaras ainda riem. Será válida, já que fornecida a alguém "de fora"?

O abc de "Tristes Trópicos"
Caio Liudvik
A humanidade instala-se na monocultura; prepara-se para produzir civilização em massa, como a beterraba. Seu trivial só incluirá esse prato". Esse pessimismo dá o tom nas nove partes de "Tristes Trópicos".
Lévi-Strauss reflete sobre a crescente impossibilidade da "viagem", no sentido pleno do termo, uma vez que não só a natureza mas também as diferenças culturais são esmagadas pela claustrofóbica "falta de distâncias" entre os povos e pessoas -fruto de um mundo marcado pela hegemonia totalitária do Ocidente e pela explosão demográfica.
Na seção seguinte, conta como despertou para a vocação de antropólogo. A etnologia foi um refúgio ante as "piruetas especulativas" da filosofia acadêmica dos anos 30. Na terceira parte, o foco se volta para o Brasil "civilizado" que ele encontrou na viagem de 1935. Está ali a famosa observação sobre o Rio, segundo a qual "o Pão de Açúcar, o Corcovado [...] lembram ao viajante que penetra na baía cacos perdidos nos quatro cantos de uma boca desdentada".
Já São Paulo lhe chamou a atenção pelo ritmo frenético: construções e demolições se sucedendo a cada surto de "impaciência" dessa cidade que, como Chicago ou Nova York, sofre de uma febre crônica: "Eternamente jovem, nunca saudável". Ele também comenta os hábitos intelectuais afrancesados da elite paulistana da época e a fundação da USP, em que foi um dos protagonistas.
Na quarta parte, descreve paisagens do Brasil central, fazendo um "travelling mental" rumo à tragédia social e ecológica com que se deparou em sua posterior viagem à Índia.
As reflexões sobre os índios brasileiros se concentram entre a quinta e a oitava partes do livro. Nos cadiueus da fronteira paraguaia, destaca aspectos como a estética semelhante à das figuras do jogo de baralho e a pintura corporal, prática que demarcaria diferenças sociais e sinalizaria a transfiguração da natureza em cultura. Analisa, a seguir, a organização social dos bororos (Mato Grosso), fundada num regime de reciprocidade e de rivalidade entre duas grandes metades e seus clãs.
Os nambiquaras, grupo que encontrou nos sertões do Centro-Oeste, embasaram um dos capítulos-chave de "Tristes Trópicos": "Lição de Escrita", que narra como o chefe da tribo, mesmo não sabendo ler nem escrever, fingiu que o sabia, numa mise-en-scène para aumentar o próprio prestígio diante do seu povo: rabiscou "garatujas" que deveriam parecer negociações comerciais em pé de igualdade com o homem branco (no caso, o próprio Lévi-Strauss, forçado a entrar no jogo).
O episódio suscita considerações mais gerais sobre o impacto da escrita na história humana, não tanto como instrumento de saber, mas sim de poder, de dominação política.
Outra população estudada pelo autor foi a dos tupi-cavaíbas. Ele confessa o orgulho em ser talvez o primeiro a adentrar uma aldeia "ainda intacta" desses que podem ser os "últimos descendentes das grandes populações tupis do curso médio e inferior do Amazonas".
Na última parte do livro, Lévi-Strauss medita sobre o significado do trabalho etnográfico em geral e questiona o período de quase cinco anos afastado da França, enquanto seus "condiscípulos mais ajuizados" galgavam as etapas normais de uma carreira universitária. Fala da dívida intelectual para com Jean-Jacques Rousseau, "nosso mestre, nosso irmão" e "o mais etnógrafo dos filósofos". E volta ao tema da crise da civilização mundial: critica a intolerância no islã, esse "Ocidente do Oriente", e faz surpreendentes aproximações entre budismo e marxismo.

O remorso da ficçãp
Lévi-Strauss diz que se sentiu culpado ao escrever "Tristes Trópicos" por estar cedendo a um desejo nunca realizado de fazer uma obra literária
A entrevista abaixo de Claude Lévi-Strauss, concedida a Boris Wiseman, ocorreu em Paris em 28 de novembro de 2003, dia do 95o aniversário do antropólogo. Ela foi feita em seu apartamento no 16o distrito em Paris. Lévi-Strauss recebeu o pesquisador de sua obra, professor da Universidade de Durham (Inglaterra), em um escritório onde havia diversos objetos de arte "primitiva" -segundo ele, as "migalhas" de uma coleção que já foi muito mais importante.
A entrevista, de que a Folha publica trechos a seguir, saiu na edição de agosto/setembro/outubro de 2004 da revista "Les Temps Modernes".
Pergunta - Em que estado de espírito o sr. se encontrava quando escreveu "Tristes Trópicos"?
Claude Lévi-Strauss - Escrevi esse livro em uma espécie de raiva e de impaciência. Eu também sentia um certo remorso. Achava que teria feito melhor se escrevesse outra coisa.
Pergunta - O quê?
Lévi-Strauss - Depois de ter tratado das estruturas elementares do parentesco, eu deveria ter passado às estruturas complexas.
Pergunta - Mas o senhor lamenta ter escrito "Tristes Trópicos"?
Lévi-Strauss - Não, ainda mais porque na época teria sido impossível abordar as estruturas complexas; para isso haveria necessidade de computadores.
Pergunta - Por que o senhor decidiu escrever "Tristes Trópicos" no momento em que o fez, isto é, mais de 15 anos depois das experiências em campo de que trata o livro?
Lévi-Strauss - Jean Malaurie, que fundou a coleção "Terre Humaine" [Terra Humana], me fez o pedido, quando eu acabava de atravessar crises em minha vida pessoal e profissional. Isso me faria mudar de ares.
Pergunta - Essa reação corresponde a motivos externos, quase acidentais. O senhor sentia uma necessidade ou um desejo mais interior, mais pessoal, de escrever esse livro?
Lévi-Strauss - Certamente havia motivos mais profundos, mas, à época, não-conscientes. No que diz respeito à necessidade, não, porque eu me sentia culpado por escrever esse livro enquanto deveria fazer ciência. Eu o escrevi tão depressa, em quatro ou cinco meses, que nem sequer verifiquei a ortografia das palavras em português. A primeira edição, nesse sentido, é detestável.
Pergunta - O senhor poderia falar um pouco mais sobre o que eram esses motivos "não-conscientes"? O senhor disse que escreveu "Tristes Trópicos" em parte em um estado de raiva. Raiva de quê?
Lévi-Strauss - De mim mesmo, pelo motivo que acabo de lhe dizer. Mas ao mesmo tempo, sem perceber direito, eu cedia a um desejo nunca realizado de fazer uma obra literária.
Pergunta - Em uma das cartas que enviou ao escritor brasileiro Mário de Andrade [de 15/1/36], o sr. diz o quanto admira os cadiueus. O que admirou mais particularmente?
Lévi Strauss - A cerâmica e as pinturas corporais. Eles eram grandes artistas.
Pergunta - O sr. também admirava seu modo de vida?
Lévi-Strauss - De modo nenhum. Eles viviam como agricultores brasileiros miseráveis.
Pergunta - O sr. teve com os cadiueus o mesmo tipo de relação que com os bororos e os nambiquaras?
Lévi-Strauss - Não. Os cadiueus eram muito desconfiados, temiam os avanços em seu território. Os bororos demonstravam uma certa altivez e tinham grande orgulho de suas instituições. Eles também se mantinham reservados. Por outro lado, com os nambiquaras, apesar de sua reputação de violência, foi completamente diferente. Havia uma simpatia recíproca entre nós. Eram pessoas extremamente cativantes.
Pergunta - O sr. lhes falou sobre a França?
Lévi-Strauss - Muito pouco. Os meios de comunicação eram muito limitados.
Pergunta - O sr. se identificou com os índios que estudou?
Lévi-Strauss - De modo nenhum!
Pergunta - Do ponto de vista metodológico, é importante que o etnólogo evite a identificação?
Lévi-Strauss - Depende. Alguns etnólogos escreveram coisas muito boas ao se identificarem.
Pergunta - Por que o sr. não voltou ao campo?
Lévi-Strauss - Em primeiro lugar, não pude, porque houve a guerra. Mas fui obrigado a fazer trabalhos de gabinete. Eu gosto desse gênero de vida, mas não das rotinas da pesquisa. Falta-me paciência.
Pergunta - Mas é necessário fazer pesquisa em campo pelo menos uma vez para se tornar etnólogo?
Lévi-Strauss - Sem dúvida.
Pergunta - Por quê?
Lévi-Strauss - Para saber utilizar melhor os trabalhos que outros trazem de seu campo.
Pergunta - A experiência entre os nambiquaras foi determinante para o etnólogo que se tornaria?
Lévi-Strauss - Não quero dar a impressão de dar importância demais ao meu trabalho de campo. Fiz mais do que pretendem certos críticos, mas serei o primeiro a reconhecer que no total continua sendo uma proporção muito modesta. A experiência com os nambiquaras foi em certo sentido decepcionante e, em outro, muito lucrativa.
Ela foi decepcionante porque eu vinha dos bororos, que têm uma cultura de uma riqueza e complexidade notáveis, e lá me encontrei entre pessoas extraordinariamente desprovidas e, na verdade, praticamente inatingíveis. Como eles levavam uma vida seminômade, nunca estavam lá quando devíamos encontrá-los.
Do ponto de vista da antropologia clássica, eu diria que não valeu a pena. Sob um outro ângulo, valeu enormemente, porque foi, digamos, o trabalho de campo levado a seu limite negativo. Era preciso tentar fazer alguma coisa com pouco material, levando-se em conta as dificuldades da pesquisa nessa época. Fazemos melhor desde então.
Pergunta - Essa experiência de limite lhe permitiu perceber coisas que não teria visto de outro modo?
Lévi-Strauss - Eu não diria nada parecido. Aquilo me permitiu medir, a grosso modo, o leque do trabalho em campo, desde suas formas mais ricas até suas formas ingratas.
Pergunta - O sr. explicou em uma entrevista que, na época em que escreveu "Tristes Trópicos", havia começado a escrever um romance, que depois abandonou.
Lévi-Strauss - Não nessa época. Eu havia começado o romance ao voltar do Brasil, isto é, nos poucos meses que se passaram entre minha volta a Paris e a guerra de 39. Foi nesse momento que eu havia começado e depois abandonei o romance. "Tristes Trópicos" veio 15 anos depois.
Pergunta - Qual foi o lugar desse romance não escrito ao mesmo tempo na confecção de "Tristes Trópicos" e na seqüência de sua obra? Ele teve um papel importante?
Lévi-Strauss - Ele teve um papel, de um lado porque um dos títulos possíveis do romance era "Tristes Trópicos" e, de outro, porque as páginas que formavam o início do romance se encontraram em "Tristes Trópicos": descrição de um pôr-do-sol que eu tinha visto, mas a bordo do navio que me levou pela primeira vez ao Brasil. Ao retomá-la em "Tristes Trópicos", devolvi essa descrição a sua verdadeira origem.
Pergunta - O senhor faz novamente referência a essa descrição de pôr-do-sol no "Final" de "O Homem Nu", ou seja, 15 anos depois da publicação de "Tristes Trópicos". Por quê?
Lévi-Strauss - Pareceu-me que havia aí uma espécie de constante ou de invariável em meu pensamento que fazia com que, depois de ter adotado um pôr-do-sol como o próprio modelo dos problemas etnológicos que eu deveria resolver mais tarde, ao terminar o mais complexo desses problemas, isto é, os quatro volumes das "Mitológicas", eu os revia sob a forma de um pôr-do-sol.
Pergunta - Em que um pôr-do-sol fornece o "modelo" dos problemas etnológicos que o sr. estudou?
Lévi-Strauss - Estamos diante de uma realidade extraordinariamente complexa, cujo desenrolar é imprevisível e que devemos, de todo modo, tentar descrever com precisão. E no final, uma vez encontrada uma organização, ou pelo menos tendo imaginado que poderia encontrá-la, eu a via inevitavelmente terminar como o espetáculo do sol poente.
Pergunta - De alguma maneira os mitos, ao se transformarem, seguem um caminho que parece um pôr-do-sol. Poderíamos dizer isso?
Lévi-Strauss - No sentido de que, quanto mais descobrimos conexões, menos obtemos informações.
Pergunta - No "Final" de "O Homem Nu", o senhor explica que, embora cheio de sentidos, visto do exterior o sentido dos mitos se anula. O que explica essa relação, aparentemente paradoxal, entre os mitos e o sentido?
Lévi-Strauss - O pensamento mítico pretende tudo compreender e tudo explicar. Para nós, trata-se de compreender que ele pode ser ao mesmo tempo um imenso fracasso enquanto manifesta, como diz Comte a seu respeito sob o nome de fetichismo, "o estado plenamente normal de nossa inteligência".
Pergunta - Alguns escritores que relataram uma experiência traumática, como o Holocausto, às vezes se sentiram culpados de traírem, nos escritos, o que havia sido a experiência real. O sr. tem um sentimento semelhante?
Lévi-Strauss - Não é uma coisa tão profunda, é sobretudo o sentimento de que os meios de que dispomos, como observador e como escritor, nunca estão na medida do que vemos e do que tentamos descrever. Há uma distância que deve inevitavelmente persistir.
Pergunta - O sr. é tratado hoje como um clássico, e não é raro que o classifiquem entre os maiores pensadores de nosso tempo. O que acha disso?
Lévi-Strauss - Isso me comove, mas ao mesmo tempo me incomoda e me irrita.
Pergunta - Por quê?
Lévi-Strauss - Acredito que não seja verdade. Sinto-me pequeno ao lado de meus grandes antecessores.
Pergunta - Parece-me que o sr. nunca tentou realmente fazer escola ou exercer o papel de um líder "intelectual", à maneira de Sartre, por exemplo. Foi uma opção deliberada?
Lévi-Strauss - Não quis isso porque, confesso, não aprecio muito os contatos sociais. Meu primeiro movimento é fugir das pessoas e voltar para casa.
Pergunta - Às vezes lhe atribuem uma visão muito crítica da cultura a que o sr. pertence.
Lévi-Strauss - Sou profundamente ligado à cultura propriamente dita. Sinto-me o produto dela. É sobretudo a sociedade que me repele.
Pergunta - O que em particular?
Lévi-Strauss - São mil coisas. Mas parece-me que elas se reduzem a uma só: quando nasci, havia 1 bilhão de homens na Terra e, quando entrei na vida ativa, após a formatura, havia 1 bilhão e meio. E hoje são 6 bilhões e serão 8 ou 9 bilhões amanhã. Esse mundo não é mais o meu.
Pergunta - Que olhar o sr. tem sobre a vida cotidiana da Paris do século 21?
Lévi-Strauss - É tão fácil para um velho dizer que tudo era melhor quando era jovem que deveria ser proibido responder a perguntas desse tipo. Mas, enfim, se você quer que eu me manifeste, eu diria que, fora os progressos da medicina, que são incontestáveis e muito vantajosos para todos nós, sob todos os outros aspectos, para alguém do meu meio social e intelectual, a vida oferecia mais prazeres.
Pergunta - Como o sr. vê a situação atual da antropologia?
Lévi-Strauss - Ainda há muito a fazer, pois restam no mundo muitas coisas que foram pouco ou mal estudadas. Mas, enfim, comparado com os dois últimos séculos, será apenas questão de juntar as migalhas.
Pergunta - O sr. acredita que a antropologia está destinada a um declínio inevitável?
Lévi-Strauss - É mais uma transformação. A tarefa da antropologia foi totalmente em razão de uma conjuntura histórica: o momento em que a cultura ocidental tomou consciência de que iria dominar a terra inteira. Era preciso, pois, se apressar para recolher todas as experiências humanas que não lhe deviam nada e cujo conhecimento é indispensável à idéia que podemos ter de uma humanidade não reduzida a uma reflexão pessoal ou mesmo à civilização ocidental propriamente dita.
Penso que a antropologia cumpriu muito bem sua função durante, digamos, os dois últimos séculos, mas chegamos ao momento em que nenhuma das experiências humanas que será possível conhecer estará isenta da contaminação ocidental -e, portanto, essas experiências não podem mais nos instruir sobre o que íamos buscar antes.
Pergunta - Como o sr. vê a transformação da antropologia?
Lévi-Strauss - Vai surgir uma disciplina dedicada ao estudo dessas novas diferenças que serão criadas à direita e à esquerda, e está bem assim, mas não é mais meu problema.
Aliás, a antropologia se transformará em filologia, em história das idéias, assim como o mundo antigo, a Grécia, Roma, a Índia védica desapareceram, mas deixaram trabalho a fazer, há séculos, e isso continuará durante séculos. A massa de materiais antropológicos que existem e nunca foram destrinchados ou publicados é imensa.
Pergunta - Em "Tristes Trópicos", o sr. evoca a possibilidade de uma tabela periódica das estruturas sociais existentes e possíveis. O que o sr. responde aos críticos que dizem que essa concepção do espírito retira do homem um de seus valores fundamentais -a liberdade?
Lévi-Strauss - É uma linguagem para mim tão opaca quanto uma língua desconhecida. Não sei o que isso quer dizer. Eu acabo de lhe dizer que, quando é preciso levar em conta o indivíduo, havia muitas abordagens que poderiam ser legítimas, mas não o estruturalismo. Porque o estruturalismo implica estarmos em condições de fazer a abstração do próprio indivíduo.
Se você tem um microscópio com vários aumentos, e utilizar um aumento fraco, em uma gota de água verá pequenos animais que se alimentam, que copulam, que se afeiçoam, que se odeiam e para os quais a liberdade existe. Se você utilizar um aumento um pouco maior, não verá mais os animais em si, mas as moléculas que compõem seus corpos. O tema da liberdade perde então o sentido. Ele só é aplicável em outro nível da realidade.
Pergunta - Acredito que minha pergunta era: até que ponto os níveis estruturais determinam nossas experiências, nossas maneiras de perceber, tais como as vivemos no nível em que funcionamos como indivíduos, vivos e atuando no mundo.
Lévi-Strauss - Há tantos determinismos que funcionam em todos os níveis, em níveis ligados à biologia molecular, outros à fisiologia animal e outros ainda que não conheço, que o modo como todos esses fatores se imbricam é de uma complexidade enorme, que retira todo o sentido desse gênero de pergunta.
Pergunta - O sr. não escreve mais?
Lévi-Strauss - Não é tão simples. Ainda faço pequenas coisas. Mas não é uma questão de escrever ou não escrever, é uma questão de ter um pensamento que ainda seja fecundo ou que deixe de sê-lo.
Pergunta - A religião enquanto prática religiosa desapareceu?
Lévi-Strauss - Pelo menos na vida civil; é a maneira como a religião atesta sua realidade.
Pergunta - Creio que podemos parar aqui.
Lévi-Strauss - Eu gostaria disso. Começo a não encontrar mais palavras para lhe responder.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Obras de Lévi-Strauss no Brasil
Pela Companhia das Letras (tel. 0/xx/ 11/3707-3500)
Tristes Trópicos (1955), tradução de Rosa Freire d'Aguiar, 400 págs., R$ 55,50.
Saudades do Brasil (1994), tradução de Paulo Neves, 228 págs., R$ 118
Saudades de São Paulo (1996), tradução de Paulo Neves, 108 págs., R$ 109
Olhar, Escutar, Ler (1993), trad. de Beatriz Perrone-Moisés, 156 págs., R$ 38
História de Lince (1991), trad. Beatriz Perrone-Moisés, 260 págs., R$ 41,50

Pela Cosacnaify (tel. 0/xx/ 11/ 3218-1444)
O Cru e o Cozido - Mitológicas 1 (1964), tradução de Beatriz Perrone-Moisés, 448 págs., R$ 55
Do Mel às Cinzas - Mitológicas 2 (1967), tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura, 504 págs., R$ 55
A Origem dos Modos à Mesa - Mitológicas 3 (1968), lançamento previsto para outubro/2005.
O Homem Nu - Mitológicas 4 (1971), lançamento previsto para junho/2006
Pela Vozes (tel. 0/xx/11/ 3105-7144)
As Estruturas Elementares do Parentesco (1949), tradução de Mariano Ferreira, 538 págs., R$ 67
Pela Papirus (tel. 0/xx/19/ 3272-4500)
O Pensamento Selvagem (1962), trad. de Tânia Pellegrini, 324 págs., R$ 42
Pela Tempo Brasileiro (tel. 0/xx/21/ 2205-5949)
Antropologia Estrutural 1 (1958), tradução de Chaim Samuel Katz e Egnardo Pires, 456 págs., R$ 43
Antropologia Estrutural 2 (1973), tradução de Maria do Carmo Pandolfo, 366 págs., R$ 43

Cartas a Mário de Andrade
"As condições materiais são duras"
" Corumbá, 15 de janeiro de 1936
Meu caro senhor gostaria de manter o Departamento de Cultura mais regularmente a par de nossa viagem! Mas o senhor me conhece bem demais para que minha preguiça possa surpreendê-lo. Vive-se uma existência tão diferente e, cabe dizer, encontram-se tantas dificuldades diárias que a correspondência passa naturalmente ao segundo plano, sem nem sequer nos darmos conta do fato. Espero que o senhor possa me desculpar.
Acabamos de terminar a primeira parte de nosso trabalho: durante um mês e meio, circulamos entre os diversos grupos sobreviventes de índios cadiueus. Esse estudo concluiu-se com uma permanência de quinze dias na última aldeia ainda próspera: Nalike. Ali, todas as mulheres pintam o rosto com desenhos de um refinamento prodigioso e fazem uma cerâmica bela e sóbria, da qual recolhi numerosos exemplares. E subsistem ainda relatos interessantes sobre as lendas e a organização social do passado.
As condições materiais são evidentemente duras: no Pantanal, o calor é muitas vezes arrasador, o que não nos impediu de tremer de frio em algumas noites de Nalike, e os mosquitos são exatamente como os imaginávamos. Mas há tantos objetos de interesse e de admiração que tudo o mais assume importância bem restrita. Partiremos em seguida rumo ao alto São Lourenço, na direção dos bororos. Será o fim de nossa viagem.
Receba, meu caro senhor, nossos sentimentos de devoção e simpatia, Claude Lévi-Strauss

"Quanta coisa admirável o senhor recolheu!"
214, rua Cincinato Braga
São Paulo, 25 de outubro de 1936
Meu caro senhor, espero que o senhor possa me perdoar por ter tardado tanto a agradecer sua remessa tão amável. Mas quis ler imediatamente o seu livro, e meus parcos conhecimentos de português tornam uma empreitada dessas, se não difícil, ao menos muito lenta... Acabo de ler o seu Ensaio apenas, e gostaria de manifestar sem demora o quanto me apaixonou. Seu comentário dá a ver, no texto musical, uma quantidade de traços que uma leitura descuidada certamente deixaria escapar. Quanta coisa admirável o senhor recolheu! Com um instrumento improvisado, fabricado com uma só corda, passei uma noite inteira a decifrar essas árias que são de uma riqueza melódica, de um sabor, de uma poesia extraordinárias. O senhor permitiu que eu me aproximasse de mais um aspecto do Brasil; sou-lhe mil vezes grato.
No momento em que termino esta carta, Serge Miller telefona para me participar o acordo entre o prefeito e o senhor quanto às conferências de minha mulher. Ela me pede que lhe exprima seus agradecimentos, aos quais junto os meus, pelas horas tão encantadoras que o senhor me proporcionou. Peço-lhe que receba meus sentimentos de admiração e simpatia.
Claude Lévi-Strauss

"Seus corpos não são bonitos"
Utiariti, 17 de janeiro de 1938
Meu caro senhor, escrevo-lhe de Utiariti, aonde chegamos ontem, de caminhão, depois de uma viagem difícil: entre Rosário e Diamantino, numa espécie de deserto chamado de Serra do Tombador, uma peça essencial do caminhão se quebrou, e ficamos ali por quatro dias, enquanto um de nossos homens partia a pé, a fim de buscar socorro de Cuiabá pelo telégrafo mais próximo. Esse banho forçado -e esperado- de sertão nos permitiu caçar e experimentar o que, daqui em diante, será o melhor de nossa dieta: sopa de arara, cozido de tatu, churrasco de veado e caititu, tudo regado a licor de buriti; não é um menu digno de um clube de exploradores? [...]
Da viagem, não direi nada. Esta região do Brasil é um matagal deserto e desesperador, através do qual viajamos por 700 kms. Em Utiariti, fomos muito bem recebidos pela equipe do telégrafo, que nos havia preparado um belo rancho à beira-rio, localizado, por uma gentileza à qual fui muito sensível, junto do acampamento nambiquara. De modo que lhe escrevo entre uns quinze homens, mulheres e crianças na nudez mais agressiva (pois, é uma pena, seus corpos não são bonitos), mas de humor extremamente hospitaleiro, por mais que se trate do mesmo grupo (e provavelmente dos mesmos indivíduos) que massacrou a missão protestante de Juruena, há cinco anos. Infelizmente, o trabalho promete ser de uma dificuldade extrema: nenhum intérprete à mão, ignorância total do português e língua de uma fonética que parece inabordável à primeira vista. Mas faz apenas 24 horas...
Por outro lado, seus cantos -tivemos uma sessão musical em nossa honra- são de um corte quase europeu, e, a estrutura melódica, muito "quadrada", mas inscrita em 4/4, 5/4, faz pensar em canções populares transcritas por um compositor moderno. Sinto amargamente a falta dos gravadores do departamento. [...]
Minha mulher e eu enviamos nossos cumprimentos. Claude Lévi-Strauss
P.S.: ia me esquecendo de dizer que o aparelho de rádio, testado e inaugurado pelo telegrafista da Candos, funciona perfeitamente. De Cuiabá, escutaremos São Paulo, Santos, Campinas. Infelizmente, a rádio Pakulka não responde nem às suas mensagens nem aos meus telegramas!

"A expedição marcará época"
São Paulo, 14 de [?] de 1938
Meu caro senhor, na confusão da chegada, não tenho como enviar mais que uma palavra apressada, mas não quero perder este primeiro correio.
A alegria do regresso foi bastante diminuída pela ausência de tantos amigos; sobretudo o senhor e Paulo Duarte. Quanto à viagem, foi longa e difícil. Mas jamais esquecerei esses oito meses, repletos de experiências apaixonantes. Em termos científicos, creio que recolhemos um belo material, e muita coisa nova. O suficiente para alterar profundamente os conhecimentos atuais. Sinceramente, penso que a expedição marcará época.
As coleções começarão a chegar na semana que vem. Vou me pôr imediatamente ao trabalho. Adoraria vê-lo, conversar com o senhor. O senhor deve vir a São Paulo neste mês ou no próximo? Talvez eu mesmo tenha que ir ao Rio.
Concluo às pressas. Queira receber, meu caro senhor, minha amizade fiel e devotada.
Claude Lévi-Strauss
As cartas acima serão publicadas pela "Revista do Instituto de Estudos Brasileiros", no segundo semestre deste ano. Traduções de Samuel Titan Jr.

UM DOS PRINCIPAIS CRÍTICOS DE LÉVI-STRAUSS, O NORTE-AMERICANO CLIFFORD GEERTZ FAZ RESTRIÇÕES AOS ARGUMENTOS ETNOGRÁFICOS DE "TRISTES TRÓPICOS", MAS RESSALTA SUA CONTRIBUIÇÃO À FILOSOFIA E À LITERATURA
As provações de um jovem herói
Juntamente com Claude Lévi-Strauss -ainda que em pólos antagônicos-, Clifford Geertz (1926) pode ser considerado um dos mais importantes nomes da antropologia contemporânea. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele presta tributo a "Tristes Trópicos", livro a que já se referiu como uma espécie de "ovo cósmico" de toda a obra lévi-straussiana, não sem marcar suas diferenças em relação ao estruturalismo .
Além de grande pesquisador de campo, Geertz repensou os fundamentos epistemológicos de sua ciência. A antropologia "hermenêutica" que ele advoga é uma disciplina que, analogamente à crítica literária, lida com textos culturais, escritos ou não -isto é, com "teias de significados" que não pairam no ar, como coisas externas, objetivas e impostas às consciências, sendo, ao contrário, scripts dinâmicos, feitos e refeitos a cada momento pelos mais diversos agentes de uma sociedade.
Daí que a escala de observação geertziana não seja a das estruturas abstratas e universais, e sim a dos modos de pensar e de viver de sujeitos de carne e osso, com as quais o estudioso deve interagir em busca de sua própria interpretação para a massa de interpretações que vivifica cada cultura em particular.
Professor emérito do Instituto de Estudos Avançados da Universidade Princeton, Geertz escreveu livros como "A Interpretação das Culturas" (ed. LTC), "Saber Local" (Vozes) e "Negara - O Estado Teatro no Século 19" (Bertrand Brasil). (CAIO LIUDVIK)
Folha - Quando e em quais circunstâncias o senhor leu "Tristes Trópicos" pela primeira vez?
Clifford Geertz - Eu li pela primeira vez "Tristes Trópicos" em fins da década de 50 e início dos anos 60. Mais tarde, eu li a tradução resumida de [John] Russell e, depois, a versão mais completa, mas de algum modo menos evocativa, de [John e Doreen] Weightman nos anos 90.
Voltei a lê-lo várias vezes no original e, bem detalhadamente, quando preparava minha análise desse livro para "Obras e Vidas" [ed. UFRJ], de 1988. "Tristes Trópicos" foi um livro de que gostei muito de ler e que achei muito instrutivo.
Folha - Qual foi sua primeira reação? Ela mudou com o tempo?
"Tristes Trópicos" teve grande impacto sobre a forma de escrita das ciências humanas, encorajando a saída do discurso frio
Geertz - Minha primeira reação, que nunca se alterou, talvez seja resumida do melhor modo possível numa formulação que certa vez fiz: ""Tristes Trópicos" pode não ser o melhor livro de antropologia já escrito, mas pode ser o melhor livro já escrito por um antropólogo". Ele me parece uma maiúscula contribuição para a literatura e filosofia ocidentais, lindamente escrito e realizado, quaisquer que sejam as reservas que eu possa fazer em relação aos argumentos especificamente etnográficos e socioantropológicos que o livro apresente.
Folha - Que aspectos ou passagens do livro o tocam mais?
Geertz - O aspecto mais atraente do livro, para mim, é o modo como Lévi-Strauss insere a si mesmo no seu texto sem, todavia, torná-lo "subjetivo", "impressionista" ou excessivamente pessoal. Ele faz sua experiência como um jovem antropólogo refugiado nos trópicos surgir maravilhosamente viva, embora mantendo uma adequada perspectiva acerca do que é revelado diante dele.
Folha - Qual a maior contribuição de "Tristes Trópicos" para a antropologia, senão para a cultura ocidental em geral? O que sobrevive ou está ultrapassado no livro?
Geertz - Penso que "Tristes Trópicos" teve grande impacto sobre a forma de escrita das ciências humanas em geral, encorajando a saída do discurso frio, objetivista, que é tão típico delas. Enquanto um modelo de "como escrever", ele se mantém e se manterá como uma inspiração para quem tenha a coragem de segui-lo, embora, na verdade, ele seja inimitável. O que temo que esteja ultrapassado é o estruturalismo, embora eu nunca tenha tido muita afinidade com esse "approach" teórico, conforme meu artigo "O Selvagem Cerebral" (1967) mostra.
Folha - Nesse artigo, o senhor diz que "Tristes Trópicos" é uma narrativa de uma típica "busca heróica". Por quê? E, na medida em que tem essa estrutura "mítica", o livro negaria, em grau maior ou menor, aquele "objetivismo "hard'" que aparentemente impregna outros trabalhos e a metodologia de Lévi-Strauss? Seria possível dizer que "Tristes Trópicos" revela um Lévi-Strauss mais próximo de sua "antropologia hermenêutica"?
Geertz - Concordo em que "Tristes Trópicos", mais que qualquer outro trabalho de Lévi-Strauss, parece meu (ou o meu parece com ele) em sua resistência contra esse "objetivismo hard", e suponho que algo disso é possível ser identificado ao longo de suas obras, embora com freqüência acobertado por grandes gestos em prol da grande teoria e um tipo de reducionismo materialista.
Com relação ao modelo da busca: assim é de fato como "Tristes Trópicos" está organizado: um jovem herói desce num mundo selvagem, caminha errante e passa por provações e emerge com uma consciência clarificada, como um Rousseau, um Buda. Lévi-Strauss nunca disse nada de muito positivo sobre a hermenêutica, a minha ou de qualquer outro -ele a chamou de "uma filosofia de balconista"-, mas você pode ter razão em que ele freqüentemente é um hermeneuta "malgré lui".
Em todo caso, fico feliz em saudá-lo pelo qüinquagésimo aniversário de seu grande livro e me lembro do famoso psicólogo alemão Koehle, que, desde que seu primeiro livro foi publicado, adotou aquela data como a de seu verdadeiro aniversário.

"TRISTES TRÓPICOS" É O "LIVRO-ACONTECIMENTO" DO ESTRUTURALISMO
O medo da decadência
A experiência brasileira e seu relato em "Tristes Trópicos" contêm, "em germe, várias das questões que Lévi-Strauss vai tratar" e fornece bases para debates contemporâneos da antropologia, diz Carlos Fausto, 42.
Na entrevista a seguir, o coordenador da pós-graduação em antropologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, comenta ainda um certo espírito "passadista" do francês, que abrigaria o temor constante "de que o mundo está se transformando para pior, que as coisas se corrompem, que os índios estão desaparecendo". (RC)
Folha - Qual é a importância do livro para a obra de Lévi-Strauss e para a antropologia?
Carlos Fausto - Os "Tristes Trópicos" ocupam um lugar muito particular na obra do Lévi-Strauss. É quando ele tenta se candidatar ao Collège de France e é rejeitado. Ele diz que naquele momento não sabia o que fazer, achou que sua carreira acadêmica não teria sucesso e resolve escrever um livro em que não tivesse obrigação científica estrita.
Folha - Nesse momento, o que ele havia publicado eram "As Estruturas Elementares do Parentesco"?
Fausto - Exatamente, em 1949. A tese maior foram as "Estruturas..." e, a menor, "A Vida Social e Familiar dos Nambiquaras". Quando os "Tristes Trópicos" saem, têm um sucesso estrondoso e projetam seu nome para uma audiência maior do que aquela de etnólogos. É o "livro-acontecimento" do estruturalismo.
Folha - Mas é um livro que ainda faz um registro de uma antropologia pré-estruturalista, não?
Fausto - É um livro no estilo de crônica de viagem, que não é propriamente a afirmação de um tipo de antropologia, mas que já contém, em germe, várias questões que Lévi-Strauss vai tratar e que descreve. Ao mesmo tempo, desde o pós-guerra, vinha publicando artigos que serão depois reunidos no "Antropologia Estrutural".
Folha - Quão importante é essa experiência do Brasil para o aparecimento das "Estruturas"?
Fausto - O Lévi-Strauss acabou, dentro da disciplina, se consagrando como um teórico. Ele, de fato, não fez pesquisa de campo no sentido moderno do termo -ele fez viagens a campo. Por essa razão, a gente tende a não olhar para o que essa experiência sul-americana produziu e influenciou aquilo que seria sua obra.
Os nambiquaras aparecem nas "Estruturas" na primeira parte, mas estão num certo sentido aquém das estruturas elementares, porque não têm grupos, clãs, metades. Mas fornecem para Lévi-Strauss o modelo mínimo do que seria essa relação de reciprocidade. Que está lá na sua forma mais pura, no casamento de primos, mas ainda não institucionalizada por classes matrimoniais, metades exogâmicas, coisas do gênero.
Esse modelo nambiquara e depois o modelo bororo, com metades exogâmicas, vão fornecer para ele a base da intuição do que seria o princípio de reciprocidade que está no fundamento das estruturas elementares.
Folha - Essa experiência marca toda sua obra posterior?
Fausto - É fundamental, e não se entende sua obra, se se quiser julgá-la apenas como uma obra teórica. Quem não lê aquilo como uma obra americanista, sobre populações indígenas da América, não é capaz de julgar o trabalho do Lévi-Strauss.
Folha - Quanto esse livro heterodoxo influencia a produção antropológica para além de Lévi-Strauss?
Fausto - Aí não são apenas os "Tristes Trópicos". A experiência americanista como um todo, em particular nambiquaras e bororos, vai direcionar dois grandes campos de questões. Um, sobre o que é o dualismo. Será tema de debates gerais na antropologia. E, outro, a discussão sobre o lugar da afinidade ou, de modo mais geral, da alteridade e da identidade nas filosofias sociais dos povos ameríndios.
Ele vai retomá-la em 1991, associando o que chamará de um dualismo em perpétuo desequilíbrio, no qual a identidade é um estado sempre revogável, com a abertura ao outro. Essa necessidade, para a reprodução da sociedade, de que ela busque na alteridade aquilo que lhe permite ter uma dinâmica produtiva.
Folha - Mas ele parece sempre temer pelos índios, que os nambiquaras estão ameaçados...
Fausto - Ele tem um lado absolutamente racionalista, ferrenho. Ao mesmo tempo, tem um negócio passadista, uma idéia de que o mundo está se transformando para pior, que as coisas se corrompem, que os índios estão desaparecendo, que essas culturas estão sendo transformadas de maneira horrorosa -o que não corresponde à nossa experiência e ciência pós-moderna, de que a hibridização é uma coisa positiva. Hoje, [o crítico] José Ramos Tinhorão falando sobre o samba e a tradição é um porre. Nos anos 60, a gente gostava, ele estava defendendo a pureza. Hoje a gente gosta do que o Hermano Vianna diz -a mescla, a mistura.

DA AMIZADE COM OS MODERNISTAS EM SÃO PAULO AO CONTATO COM AS TRIBOS DE MATO GROSSO, O BRASIL SERIA DETERMINANTE PARA O FUTURO DA CARREIRA DE LÉVI-STRAUSS
A nação experimental
Fernanda Peixoto
Apesar de breve, o período brasileiro de Lévi-Strauss (1935-1939) mostra-se fundamental para a compreensão da carreira e da obra futura do etnólogo, assim como para o exame da cena universitária brasileira em seus primórdios, na qual as presenças francesas são decisivas. A consideração desses anos permite lançar luz sobre o lugar do Brasil no itinerário de Lévi-Strauss e sobre as ressonâncias de sua estada sobre os contornos assumidos por parte das ciências sociais entre nós.
Ainda que responsável pelo ensino de sociologia na Universidade de São Paulo recém-criada (1934), os temas de curso de Lévi-Strauss variavam segundo amplo leque: de sociologia primitiva a antropologia urbana, passando pela lingüística, pela etnolingüística e pela antropologia física. O que chama a atenção nesses programas de curso é que eles continham, de modo concentrado, os tópicos sobre os quais ele irá trabalhar ao longo de sua obra: o parentesco, o totemismo, os mitos.
Além dos cursos regulares na universidade, os professores franceses eram obrigados a realizar conferências periódicas. Em 1935, temos o registro de cinco palestras de Lévi-Strauss, das quais, infelizmente, não restaram senão os títulos: "Progresso e Retrocesso", "A Crise do Evolucionismo", "A Hipótese Evolucionista", "Existem Culturas Superiores?", "A Caminho de uma Nova Filosofia do Progresso".
De 1938, mais um: "Os Problemas Criados pelo Estado Atual da Etnografia Sul-Americana". Em 1937, as fontes falam alternadamente de um curso de extensão e de uma conferência sobre um mesmo tema: "Os Contos de Perrault e Sua Significação Sociológica".
Ensino e pesquisa
É possível localizar ainda alguns artigos em revistas e jornais da época. Um dos primeiros foi editado na "Revista do Arquivo Municipal", em 1935, "O Cubismo e a Vida Cotidiana", que permite flagrar o interesse precoce do autor pelas artes.
Outro artigo, do mesmo ano, "Em Prol de um Instituto de Antropologia Física e Cultural", aparece na mesma publicação. Destaca-se aí a defesa da articulação entre ensino e pesquisa, da formação prática de pesquisadores e dos cursos interdisciplinares. Tal plano precocemente elaborado realiza-se, de forma distinta, anos mais tarde, no Collège de France, quando da criação do Laboratoire d'Anthropologie Sociale [Laboratório de Antropologia Social].
No ano de 1936, constam mais três artigos de Lévi-Strauss: "A Contribuição para o Estudo da Organização Social Bororo" ("Revista do Arquivo Municipal"), "Entre os Selvagens Civilizados" ("O Estado de S. Paulo") e "Os Mais Vastos Horizontes do Mundo" ("Anuários da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP").
Em 1937, a "Revista do Arquivo" divulga a última colaboração do autor, antes de seu regresso à França: "A Propósito da Civilização Chaco-Santiaguense". Vale lembrar que o ensaio sobre os bororos é considerado por Lévi-Strauss o único texto relevante de sua produção brasileira.
Outras publicações do jovem etnólogo são veiculadas pelo "Boletim da Sociedade de Etnografia e Folclore". O que não soa estranho. O "Boletim" e a "Revista do Arquivo" são órgãos oficiais do Departamento de Cultura de São Paulo, dirigido por Mário de Andrade entre 1935 e 1938.
É Mário quem atrai o casal Claude e Dina Lévi-Strauss para os projetos culturais e científicos implementados em sua gestão. Aliás, é a municipalidade de São Paulo, por meio do poeta, uma das financiadoras da expedição de Lévi-Strauss ao Brasil central, realizada em 1937 e 1938.

São Paulo fornece ao professor e aos seus alunos um laboratório de experiências sociológicas
As relações intelectuais e pessoais do casal Lévi-Strauss com os expoentes do movimento modernista em São Paulo são destacadas por ele: "Fui muito amigo de Mário e Oswald de Andrade. Eles vinham sempre à minha casa, saíamos juntos. Minha comunicação com os modernistas brasileiros era muito fácil e se fazia realmente em pé de igualdade, porque eu estava ao corrente dos movimentos intelectuais e literários na França" (1).
Numa cidade de feições ainda provincianas, o jovem casal Lévi-Strauss e os demais professores franceses circulam com desenvoltura. Além dos encontros periódicos na redação de "O Estado de S. Paulo", espécie de "salão literário da época", as perambulações pela cidade e o registro atento de suas transformações são fixados pela pena do escritor em "Tristes Trópicos" e pelas imagens capturadas nas lentes da câmara Leica, reunidas em "Saudades de São Paulo".
Flanando em São Paulo
Na apresentação dessas imagens, ele observa: "Naquele tempo podia-se flanar em São Paulo. Não como em Paris ou em Londres, diante de lojas de antigüidades (...). Mas justamente não era preciso pedir à cidade outros objetos de contemplação e reflexão que não ela mesma: imensa desordem em que se misturavam, numa confusão aparente, igrejas e prédios públicos da época colonial, casebres, edifícios do século 19 e outros, contemporâneos, cuja raça mais vigorosa tomava progressivamente a dianteira". A cidade de São Paulo fornece ainda ao professor e aos seus alunos um laboratório de experiências sociológicas que eles exploram no dia-a-dia do trabalho, descrevendo aspectos da paisagem e da sociabilidade urbanas.
Mas, se as cidades constituem o solo de investigações primeiras, são as pesquisas de campo nas sociedades indígenas o principal legado da estada brasileira do antropólogo francês. Lévi-Strauss e Dina realizam duas importantes missões etnográficas na época, relatadas 20 anos depois em "Tristes Trópicos": em 1935/6, visitam os cadiueus e os bororos, no Mato Grosso central e, em 1938, vão até os nambiquaras, quando encontram também os bororos e os tupi-cavaíbas do vale do Machado. O período brasileiro mostra-se essencial para o desenvolvimento da futura carreira de Lévi-Strauss, como ele afirma em diferentes ocasiões. O Brasil assinala um momento de passagem fundamental na construção da sua futura identidade profissional como americanista.
Não apenas a carreira mas também a obra de Lévi-Strauss é devedora da experiência brasileira. A primeira fase de sua produção apóia-se na matéria-prima obtida no Brasil, sobretudo o artigo sobre os bororos e a tese sobre os nambiquaras, "A Vida Social e Familiar dos Nambiquaras" (1948).
Seus trabalhos posteriores, ainda que reúnam informações etnográficas de várias regiões americanas, são também beneficiados pela etnografia das terras baixas sul-americanas, universo de experiência que funciona como uma espécie de ponto de partida a partir do qual a obra se projeta.
Poderíamos dizer que a obra espiralar de Lévi-Strauss contém um movimento permanente que se traduz na incorporação de novos objetos e questões e em um retorno sistemático a antigos resultados, ao começo -os bororos, os nambiquaras; basta olharmos os resumos de seus cursos, as "paroles données"-, ao longo dos anos.
Do mesmo modo, nas "Estruturas Elementares do Parentesco", a troca matrimonial se inspira no exemplo nambiquara. As "Mitológicas", por sua vez, tomam como ponto de partida um mito bororo.
Estruturalismo no Brasil
A chegada das idéias de Lévi-Strauss ao Brasil não coincide, nem poderia, com os seus anos brasileiros. Ela se dá de fato a partir do final dos anos de 1950, com as discussões acerca da noção de arcaísmo em etnologia, com o reexame de tópicos como a organização dualista entre os povos do Brasil central e, anos depois, com os estudos do parentesco amazônico. O que não deve nos levar a pensar que o estruturalismo tenha se tornado uma "moda" da antropologia brasileira na década de 1960, como observado em outras searas (nos estudos literários, por exemplo).
Talvez menos que uma influência da análise estrutural propriamente dita é a questão das organizações dualistas -um dos primeiros problemas importantes da etnologia americanista-, colocada por Lévi-Strauss e introduzida no país pela leitura crítica de David Maybury-Lewis, que tem verdadeiro impacto nos estudos antropológicos realizados no país.
Indagado sobre o assunto, Lévi-Strauss observou recentemente: "Eu não diria que nenhum entre eles (os antropólogos brasileiros) se declara estruturalista, mas penso que eles, como outros, absorveram em uma síntese pessoal um grande número de contribuições saídas do estruturalismo" (2).
Notas
1.Napoleão Sabóia, "O Personagem da Semana - Entrevista com Lévi-Strauss", "Suplemento Cultura", in "O Estado de S. Paulo", 6/6/82.
2."Le Brésil et les Sciences Humaines: Passé-Présent - Entretien avec Claude Lévi-Strauss", "Cahiers des Amériques Latines", no 28/29, 1999, págs. 95-100.

Fernanda Peixoto é professora no departamento de antropologia da USP, autora de, entre outros, "Diálogos Brasileiros - Uma Análise da Obra de Roger Bastide" (Edusp/ Fapesp). Este texto é uma versão bastante reduzida de artigo publicado no no 82 do "Cahier de l'Herne", dedicado a Lévi-Strauss (éditions de l'Herne, 2004, ed. Michel Izard).

LEIA O PREFÁCIO ESCRITO PELO ANTROPÓLOGO À ÚLTIMA EDIÇÃO JAPONESA DE "TRISTES TRÓPICOS", PUBLICADA EM 2001
Japão frente e verso
por Claude Lévi-Strauss
Eu ainda não havia visitado o Japão quando foram publicadas as primeiras edições desse livro. Entre 1977 e 1988, pude ir cinco vezes ao país, graças a várias instituições às quais gostaria de exprimir novamente minha gratidão: a Fundação Japão, a Fundação Suntory, o Japan Productivity Center, a Fundação Ishizaka e, enfim, o Centro Internacional de Pesquisa em Estudos Japoneses ("Nichibunken").
Depois de Tóquio, Osaka, Kyoto, Nara e Ise, a Fundação Japão, ciosa de me apresentar o país ao longo de seis semanas sob os aspectos mais diversos, cuidou que dois distintos colegas, os professores Yoshida Teigo e Fukui Katsuyoshi, me levassem à península de Noto e às ilhas Oki, no mar do Japão. À Fundação Suntory devo a oportunidade de ter conhecido o mar Interior e Shikoku.
Em 1983, o já mencionado professor Yoshida Teigo fez a gentileza de me convidar a acompanhá-lo às ilhas Iheya, Izena e Kudaka, no arquipélago das Ryukyu, e a participar modestamente de sua pesquisa etnográfica. Três anos mais tarde, por ocasião de uma outra estada, quis visitar Kyushu. Essa viagem de mais de uma semana não teria sido possível sem a companhia da senhora Watanabe Yasu, que, desde minha primeira estada, foi uma guia e intérprete incomparável.
Para com o professor Kawada Junzô, minhas dívidas de gratidão são inumeráveis (a começar pela tradução deste livro). A essas, acrescentou-se, em 1986, a revelação de uma Tóquio desconhecida da maioria dos visitantes estrangeiros, quando ele me fez subir o Sumidagawa numa embarcação tradicional e seguir os meandros dos canais que sulcam a cidade a leste e oeste do rio.
À época de minhas primeiras visitas, meu laboratório de Paris incorporara a seu programa o estudo da noção de trabalho assim como o concebem diferentes sociedades em épocas diversas e meios diferentes.
Manifestei então o desejo de que minhas viagens fossem organizadas em razão desse tipo de problema, de tal modo que me permitissem travar contato com artesãos de cidades ou de aldeias, mesmo nos cantos mais recônditos do país. Por mais que conserve recordações imperecíveis dos museus, dos templos, de Nara, dos santuários de Ise, a maior parte de meu tempo foi consagrada a encontros com tecelões, tintureiros, pintores de quimono (profissão que interessava também à minha mulher, especialista em artes têxteis) e ceramistas, ferreiros, torneiros, ourives, laqueadores, carpinteiros, pescadores, destiladores de saquê, cozinheiros, padeiros, além de marionetistas e músicos tradicionais.
Relação de intimidade
Colhi assim preciosas informações sobre a representação que os japoneses fazem do trabalho: não como ação do homem sobre uma matéria inerte, à maneira dos ocidentais, mas como estabelecimento de uma relação de intimidade entre o homem e a natureza.
Confirmam-no, em outro plano, certas peças nô, que reservam lugar de honra a humildes tarefas domésticas, conferindo-lhes um valor poético (fazendo assim coincidir a significação artística e a etimologia grega dessa última palavra).
A relação do homem com a natureza, que, pensando no Japão antes de visitá-lo, eu idealizara em alguma medida, me reservava ainda outras surpresas. Viajando pelo país, percebi que o culto das belezas naturais que ilustram, aos olhos do Ocidente, seus maravilhosos jardins, o amor às cerejeiras em flor, a arte floral e mesmo a cozinha podem se associar a uma brutalidade extrema para com o meio natural. Para mim, que continuava a imaginar o Sumida a partir do refinado álbum de Hokusai, "Sumidagawa ryôgan ichiran", foi um choque subir esse rio.

Entre a fidelidade ao passado e as transformações induzidas pela ciência e pelas técnicas, o Japão foi provavelmente a única nação que soube, até agora, encontrar um equilíbrio
É bem verdade que um visitante estrangeiro que conhecesse Paris por meio de gravuras antigas teria a mesma reação que eu diante das margens do Sena de hoje, por mais que o contraste seja menor e a transição entre o passado e o presente, menos abrupta (contudo, ao contrário do que eu esperava, a Tóquio moderna não me pareceu feia. A implantação irregular dos edifícios cria uma impressão de diversidade e de liberdade, à diferença das cidades ocidentais, onde o alinhamento monótono das casas ao longo das ruas e das avenidas força o transeunte a caminhar entre duas paredes).
De resto, é provavelmente essa ausência de distinção nítida entre o homem e a natureza que explica o direito que se arrogam os japoneses (por um desses raciocínios perversos aos quais às vezes recorrem, como no caso da caça à baleia) de dar prioridade ora a um, ora à outra e, quando é o caso, de sacrificar a natureza às necessidades dos homens. Ela e eles não são, afinal, solidários?
Eu entrevia assim uma explicação particular desse "double standard", que, conforme ensinavam meus colegas japoneses, oferecia uma chave para compreender sua história.
Num certo sentido, pode-se mesmo dizer que, diante do maior problema de nossa época -que, no curso de um século, a população mundial tenha passado de menos de 2 bilhões a mais de 6 bilhões de indivíduos-, o Japão encontrou, na parte que lhe toca, uma solução original, fazendo coexistir, em seu território, regiões costeiras tão densamente povoadas que formam uma seqüência ininterrupta de cidades e um interior montanhoso, desabitado ou quase isso: oposição que é também a de dois universos mentais, o da ciência, da indústria e do comércio e um outro que continua a se prestar às crenças oriundas da noite dos tempos.
Pois esse "double standard" possui também uma dimensão temporal. Uma evolução prodigiosamente rápida fez o Japão transpor em algumas décadas uma distância que o Ocidente precisou de séculos para percorrer; graças a isso, o Japão pôde se modernizar ao mesmo tempo que conservava um elo estreito com suas raízes espirituais.
Vitalidade dos mitos
Consagrei a maior parte de minha vida profissional ao estudo da mitologia e a mostrar em que medida esse modo de pensamento permanece legítimo. De modo que eu não podia deixar de ser profundamente sensível à vitalidade que os mitos conservam no Japão. Nunca me senti tão próximo de um passado distante como nas ilhotas de Ryukyu, entre bosques, rochedos, grutas, poços naturais e fontes considerados como manifestações do sagrado.
Em Kudakashima, levaram-nos ao lugar em que apareceram os visitantes divinos, portadores das cinco espécies de grãos com que foram semeados os campos primordiais. Para os habitantes locais, tais acontecimentos não se deram num tempo mítico. São de ontem, de hoje, de amanhã mesmo, de vez que os deuses que fincaram pé aqui retornam a cada ano, de vez que, em toda a ilha, os ritos e os lugares sagrados atestam sua presença real.
Talvez porque sua história escrita remonte a uma data relativamente recente, os japoneses a enraízam muito naturalmente nos mitos. Convenci-me disso em Kyushu, que foi, segundo os textos, o teatro da mais antiga mitologia japonesa. Nesse estágio, as questões de historicidade não se colocam: sem o menor constrangimento, dois lugares podem disputar a honra de ter acolhido, quando de sua descida dos céus, o deus Ninigi-no-mikoto.
E a deusa Amaterasu, senhora do lugar em que se ergue o santuário de Ô-Hirume, pede adesão ao velho relato de sua retirada para a gruta, sagrada demais para que se possa chegar mais perto, mas que se entrevê de longe. Basta contar os ônibus que derramam visitantes em peregrinação para persuadir-se de que os grandes mitos fundadores, as paisagens grandiosas em que a tradição os situa, mantêm uma continuidade vivida entre os tempos lendários e a sensibilidade contemporânea.
Há quase meio século, escrevendo "Tristes Trópicos", eu exprimia minha angústia diante dos dois perigos que ameaçam a humanidade: o esquecimento de suas raízes e seu esmagamento por seus próprios números. Entre a fidelidade ao passado e as transformações induzidas pela ciência e pelas técnicas, o Japão foi provavelmente a única nação que soube, até agora, encontrar um equilíbrio. Sem dúvida, ele o deve ao fato de ter ingressado nos tempos modernos por meio de uma Restauração, e não, por exemplo como a França, por meio de uma Revolução.
Seus valores tradicionais foram assim protegidos de uma derrocada. Mas ele o deve igualmente a uma população por muito tempo disponível, ao abrigo do espírito crítico e do espírito de sistema, cujos excessos contraditórios minaram a civilização ocidental.
Ainda hoje, o visitante estrangeiro admira o zelo de cada qual a cumprir suas tarefas, a boa vontade alegre que, comparada ao clima social e moral de seu país de origem, parecem-lhe ser as virtudes capitais do povo japonês. Que esse possa manter por muito tempo esse equilíbrio precioso entre as tradições do passado e as inovações do presente; e não apenas para seu próprio bem, pois toda a humanidade encontra nele um exemplo digno de meditar.
Tradução de Samuel Titan Jr.

+ cronologia
1908 Nasce no dia 28 de novembro, em Bruxelas, na Bélgica.
1927 Começa a estudar filosofia e direito na Universidade de Paris. Conclui os estudos em 1932.
1935 Membro da missão francesa ao Brasil, após dois anos ensinando nos liceus de Mont-de-Marsan e de Laon, leciona sociologia na USP, onde permanece até 1938, chefiando pesquisas de campo sobre comunidades indígenas em Mato Grosso e na Amazônia.
1939 Volta à França, de onde partirá para os Estados Unidos, após o início da Segunda Guerra Mundial.
1941 Dá aulas, como professor visitante, na New School for Social Research, em Nova York, onde permanece até 1945; funda a Escola Livre de Altos Estudos de Nova York, juntamente com nomes como H. Focillon e J. Perrin.
1944 É chamado de volta à França pelo Ministério de Assuntos Estrangeiros; retorna aos EUA como conselheiro cultural da Embaixada da França.
1949 Publica seu primeiro grande trabalho, "As Estruturas Elementares do Parentesco".
1950 É nomeado diretor de estudos na École Pratique des Hautes Études da Universidade de Paris, cargo que ocupou até 1974.
1955 Conquista reconhecimento internacional com a publicação de "Tristes Trópicos".
1959 É indicado para lecionar a disciplina de antropologia social no Collège de France.
1958 Sai "Antropologia Estrutural".
1962 Publica "O Pensamento Selvagem".
1964 Sai o primeiro de quatro volumes das "Mitológicas", "O Cru e o Cozido".
1967 Recebe a medalha de ouro do Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França.
1973 É eleito para a Academia Francesa e recebe o Prêmio Erasmo.
1982 Torna-se professor honorário do Collège de France.

FSP, 22/05/2005, Mais, p. 1, 4-9, 12

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