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Regras de Kyoto superestimam impacto das emissões de metano

OESP, Vida, p. A38
16 de Dez de 2007

Regras de Kyoto superestimam impacto das emissões de metano
Brasil não concorda com metodologia do protocolo e tentará rever parâmetros para o próximo acordo climático

Herton Escobar

A metodologia usada pelo Protocolo de Kyoto para calcular a contribuição de cada país para o aquecimento global tem uma falha fundamental, segundo alguns especialistas brasileiros. O problema está na importância que é atribuída ao metano (CH4), o gás mais relevante para as mudanças climáticas depois do dióxido de carbono (CO2). A métrica atual diz que cada molécula de metano lançada na atmosfera tem um efeito sobre o clima equivalente a 21 moléculas de CO2. Segundo cientistas, entretanto, essa equivalência deveria ser muito menor: da ordem de 1 para 5.

A influência do metano sobre o aquecimento global, portanto, estaria supervalorizada. Conseqüentemente, a influência de cada país sobre as mudanças climáticas também estaria inflada nas contas do protocolo - principalmente no caso de países tropicais em desenvolvimento, como o Brasil, que emitem muito metano. O tema será levantado pela delegação brasileira nas discussões do futuro acordo climático pós-Kyoto, que começou a ser negociado na 13ª Conferência das Partes (COP-13) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, concluída ontem em Bali, na Indonésia.

"É algo que deveria ser revisto para o segundo período de compromissos", disse ao Estado o coordenador-geral de Mudanças Globais do Clima do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), José Miguez. Índia e China também estão atentos ao problema, segundo ele.

Para calcular e comparar as emissões de cada país, o protocolo utiliza uma medida chamada CO2 equivalente, que permite somar as emissões de vários gases do efeito estufa em um único número. Para isso, utiliza-se um fator de equivalência chamado "potencial de aquecimento global" (GWP, em inglês), que converte as emissões de cada gás em um valor equivalente em dióxido de carbono. O GWP do metano é 21. O do óxido nitroso (N2O) é 310.

O problema é que o GWP (apesar de ter "aquecimento" no nome) mede apenas a quantidade de radiação que é retida na atmosfera pela molécula de um determinado gás - o que não representa, necessariamente, o quanto cada uma dessas moléculas contribui para as mudanças climáticas a longo prazo. Para isso, seria preciso um equivalente de temperatura, segundo o especialista Luiz Gylvan Meira Filho, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP).

"O GWP é correto, do ponto de vista físico, mas ele não mede o que precisa ser medido, que é a influência de cada gás sobre o aumento da temperatura", explica Gylvan, que já foi vice-presidente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC).

POLÍTICA CLIMÁTICA

Ao agregar todos os gases numa mesma balança, o CO2 equivalente dá flexibilidade aos países para cortar emissões de diferentes gases, de diferentes setores, com o mesmo resultado final. Mas significa que, para cada molécula de metano que deixa de ser emitida, o país pode debitar 21 moléculas de CO2 da sua conta de emissões - quando o certo seria debitar algo entre 4 e 7. Da mesma forma, cada molécula de metano emitida é supertaxada como se fosse 21 moléculas de CO2 - outro exagero.

O Brasil discorda oficialmente do GWP e por isso não calcula suas emissões em CO2 equivalente. O inventário nacional de gases do efeito estufa lista apenas as emissões de cada gás separadamente: 1 bilhão de toneladas de CO2, 13 milhões de toneladas de CH4 e 550 mil toneladas de N2O. Com o GWP aplicado ao metano e ao óxido nitroso, a emissão total do Brasil é de 1,477 bilhão de toneladas de CO2 equivalente - número que aparece nos documentos da convenção, apesar de o País não concordar com essa conta.

Se o GWP do metano fosse reduzido de 21 para 5, por exemplo, esse total cairia para 1,266 bilhão de toneladas de CO2 equivalente - uma diferença de 211 milhões de toneladas, o que corresponde a mais de 13 anos de emissões da cidade de São Paulo, segundo o inventário municipal produzido pelo Centro Clima da Coordenação dos Programas de Pós-graduação de Engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

"Todas as políticas climáticas internacionais são baseadas no GWP. É um número político, que influi na atribuição de responsabilidades sobre as mudanças climáticas", aponta o especialista Luiz Pinguelli Rosa, diretor da Coppe e secretário do Fórum Brasileiro de Mudanças Climáticas.

O Brasil é signatário do Protocolo de Kyoto, mas, por ser um país em desenvolvimento, está isento de metas compulsórias de redução de emissões - pelo menos até 2012, quando expira o primeiro período de vigência do protocolo. Caso o País tenha de assumir metas no futuro, o GWP pode se tornar um problema sério.

O metano representa quase 20% das emissões totais do País em CO2 equivalente, e quase 70% dessas emissões provêm da fermentação entérica: a digestão de fibras vegetais no estômago de bois e vacas, que exalam o gás naturalmente pela respiração. Gasolina pode ser substituída por etanol, o desmatamento pode ser reduzido, mas ninguém descobriu ainda uma forma de impedir que uma vaca emita metano.

O Brasil tem o segundo maior rebanho bovino do mundo, depois da Índia, com 205 milhões de cabeças (mais de um boi por pessoa), segundo o IBGE. Na China, uma importante fonte de emissão é o plantio de arroz alagado. O metano é produzido pela decomposição de matéria orgânica, por isso é emitido também de aterros sanitários.

MERCADO DE CARBONO

A distorção se apresenta também no Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), dispositivo do Protocolo de Kyoto que permite aos países desenvolvidos comprar créditos de carbono pela redução de emissões nos países em desenvolvimento. No caso de projetos que reduzem emissões de metano (como vários no Brasil), cada tonelada de CH4 comprada aqui equivale ao direito de emitir 21 toneladas de CO2 lá fora. "Na prática, você autoriza os países desenvolvidos a emitir mais dióxido de carbono do que deveriam", afirma Miguez.

"Estão dando um crédito de carbono imenso para emissões que não são verdadeiras", reforça Pinguelli. "Não é bom que se alimente essa ilusão."

Miguez, que é um dos responsáveis pela avaliação de projetos de MDL no Brasil, tranqüiliza os empreendedores: projetos aprovados na vigência do protocolo atual não serão prejudicados. O GWP 21 do metano está sacramentado no Protocolo de Kyoto e só poderá ser alterado no próximo regime climático, que começará em 2013.

VIDA CURTA

A principal diferença do metano em relação aos outros gases do efeito estufa é que ele é um gás de "vida curta". O tempo de permanência de uma molécula de CH4 na atmosfera é de aproximadamente 12 anos, enquanto uma molécula de CO2 "sobrevive" de 200 a 2 mil anos. Essa diferença se perde no GWP, cujo valor é fixo num prazo de cem anos, mesmo depois que o gás já desapareceu da atmosfera e o calor que ele produziu já foi absorvido pelo oceano.

O problema, segundo Gylvan, é que o GWP trata o planeta como um sistema fechado, quando, na verdade, trata-se de um sistema aberto, que perde calor naturalmente. "Pelo GWP, a temperatura do planeta deveria aumentar infinitamente. A Terra viraria um Sol, o que obviamente não acontece", afirma Pinguelli.

Essa incongruência é conhecida pelos cientistas há anos, mas nunca houve um esforço integrado para corrigi-la, depois que o GWP entrou na certidão de nascimento de Kyoto. A expectativa é que as regras mudem a partir de 2013.

"O GWP serviu bem às políticas vagas e de curto prazo de Kyoto. Agora, se quisermos pensar em metas mais específicas e de longo prazo, vamos precisar de algo diferente", avalia o especialista Keith Shine, do Departamento de Meteorologia da Universidade de Reading, na Inglaterra. Ele é um dos proponentes de uma métrica alternativa chamada GTP (potencial de mudança de temperatura global).

Como diz o nome, o GTP mediria a influência de cada gás sobre o termômetro da Terra, enquanto o GWP mede a influência sobre o balanço energético (a "conta de luz", por assim dizer). Segundo os cientistas, essa seria a maneira mais correta de medir a importância de cada gás sobre as mudanças climáticas. Nesse caso, o fator de conversão do metano (num horizonte de tempo de cem anos) cairia de 21 para algo entre 4 e 7.

O especialista Paulo Artaxo, do Instituto de Física da USP, discorda. "Para mim é mais importante o balanço de radiação do que o de temperatura", diz Artaxo, co-autor de um capítulo sobre o tema no último relatório do IPCC. Ele faz a seguinte analogia: se as mudanças climáticas fossem uma doença, o desequilíbrio radiativo seria a gripe e o aumento de temperatura, a febre. "O que precisamos curar é a gripe, não a febre", disse.

"Claro que a causa é a radiação, mas o que vai nos matar é o sintoma", rebate Gylvan. "O que faz o clima mudar é a temperatura."

O relatório do IPCC reconhece as limitações do GWP e aponta o GTP como possível substituto. Por enquanto, porém, conclui que o GWP é válido e "permanece a métrica recomendada para comparar os impactos climáticos futuros das emissões de gases de vida longa". O relatório, inclusive, aumenta o GWP do metano para 25 - apesar de que o Protocolo de Kyoto continuará a usar o valor de 21.

"A grande vantagem do GWP é ser transparente e fácil de calcular", reconhece Shine. "O GTP seria um conceito melhor, só que mais complicado e mais discutível."

"Ninguém nunca inventou uma métrica melhor do que o GWP, por isso todo mundo continua usando", afirma Artaxo. Para ele, seria "impossível" desenvolver uma métrica equivalente de temperatura, porque, nesse caso, o efeito varia de acordo com as características da superfície, como capacidade térmica e albedo (quantidade de luz refletida). "Um quilowatt por metro quadrado no Saara esquenta muito mais do que na Amazônia", compara Artaxo.

OESP, 16/12/2007, Vida, p. A38

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