VOLTAR

Registro esbarra em conflito de terras

O Globo, Sociedade, p. 38
04 de Jun de 2017

Registro esbarra em conflito de terras
Há mais de cinco mil imóveis com Cadastro Ambiental Rural sobrepostos a terras indígenas no país

MARIANA ALVIM
mariana.alvim@oglobo.com.br

A cerca de 6 km da BR-101, em meio às montanhas cobertas pela Mata Atlântica e no perímetro do município de Angra dos Reis, vivem cerca de 400 índios da tribo Sapukai. Eles moram em terras regularizadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai), com superfície de mais de 2,1 mil hectares. Mas, no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar), consta que a Terra Indígena Guarani de Bracuí, onde vivem, é cortada pelo perímetro de três imóveis rurais, ocupando, no total, 290 hectares.
Um filtro automático do Sicar, que identifica sobreposições de imóveis com Unidades de Conservação (UCs), Terras Indígenas (TIs) e áreas embargadas pelo Ibama, que não admitem áreas particulares em seus limites, identificou no estado do Rio, nos municípios de Angra e Paraty, seis propriedades ou posses com interseção com TIs. No Brasil, o filtro automático constatou 5.450 imóveis sobrepostos com terras indígenas, e 1.342 imóveis com interseções em UCs, como parques nacionais e estações ecológicas.
O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é um registro eletrônico destinado a todos os imóveis rurais do país, onde serão inseridas, até o fim deste ano, informações ambientais georreferenciadas destas propriedades ou posses. A ferramenta, criada pelo Código Florestal há cinco anos, é autodeclaratória.
O CAR não tem função fundiária, mas o histórico problema do conflito de terras no Brasil já bate à sua porta, como podem sugerir essas sobreposições. Outra hipótese é o equívoco na hora de cadastrar o imóvel, já que a ferramenta exige alguns procedimentos técnicos. No mapa público dos imóveis cadastrados é possível ver, por exemplo, diversos triângulos perfeitos espalhados pelo Brasil - há um, no território fluminense, que foi cancelado após análise feita pelo governo estadual do cadastro, onde constava área de 53,9 mil hectares, maior do que o município de Nova Iguaçu.
Outro sintoma desta anomalia é o descompasso entre a previsão de imóveis passíveis de cadastros - com base no Censo Agropecuário de 2006 -e o volume de registros já feitos. Apesar de haver diferenças metodológicas e temporais para estes números, alguns especialistas avaliam que eles também são influenciados pelas sobreposições. O Brasil já superou a área considerada passível de cadastro; o Acre tem área cadastrada três vezes maior do que o previsto pelos dados de 2006 - e superior à metade da própria área do estado.
As sobreposições implicam também em um problema prático: podem resultar em uma demanda gigantesca para os governos estaduais, responsáveis pela análise e validação dos cadastros.
Tatáendy-Yapuá, ou Domingos Venite, cacique da aldeia Sapukai, conta que a terra indígena em Angra não tem sido alvo de conflitos fundiários em sua história - mas, admite, esta é uma preocupação constante para os índios no Brasil. Em Bracuí, mais de 400 deles usam a terra para pequenas plantações e, mata adentro, para a caça a a extração de matéria-prima para artesanato - hoje a maior fonte de renda da aldeia.
- Tiramos daqui o material para a nossa sobrevivência, como taquara, cipó e palmito. Não vivemos ameças, mas sempre temos que ficar prevenidos. Acontece cada coisa com os índios no Norte, no Mato Grosso... - conta Tatáendy-Yapuá, de 65 anos.
As regiões brasileiras citadas pelo cacique são, também, aquelas em que as sobreposições do CAR têm denunciado os conflitos fundiários de forma mais contundente. Em área, segundo a análise automática no Sicar, é o estado do Amazonas que tem maior sobreposição com terras indígenas, seguido do Mato Grosso. O estado do Norte lidera também na sobreposição com Unidades de Conservação.
O uso do CAR em conflitos fundiários já foi até alvo de operações policiais. Em 2016, a Operação Rios Voadores desmantelou uma quadrilha no Pará que invadia florestas em terras públicas, provocava queimadas para a criação de pastos e posteriormente registrava os terrenos no CAR em nome de laranjas. Em 2015, no mesmo estado, a Operação Madeira Limpa constatou que um grupo que explorava madeira ilegalmente também recorria ao CAR .
Segundo Eliane Moreira, promotora do Ministério Público do Pará (MP-PA), os documentos exigidos pelas normas que regulamentam o CAR não garantem registros públicos válidos. É requisito para a inscrição no CAR a comprovação de propriedade ou posse mas, para Eliane, a indefinição de quais documentos devem ser exigidos abre precedentes para a apresentação de "títulos podres".
- Diante do caos fundiário no Pará, tememos que o CAR se insira como mais um vetor de conflitos. Ele é um bom instrumento, mas existe um limite claro: viver só de CAR não vai garantir nem a preservação ambiental, nem a paz no campo - aponta a promotora, citando um levantamento prévio do MP que constatou 380 cadastros em 51 territórios quilombolas no estado.
TEMOR DE MAU USO DA FERRAMENTA
Eliane aponta também o temor de que os governos passem a admitir o cadastro em procedimentos com finalidade fundiária. Um decreto estadual do Pará de 2013, por exemplo, prevê o uso do CAR como "instrumento de apoio ao processo de regularização fundiária" no âmbito da emissão do Certificado de Ocupação de Terra Pública (COTP) em municípios verdes.
Em um sobrevoo feito pelo Greenpeace no fim de 2016 em Unidades de Conservação no Sul do Amazonas, cujas áreas podem ser reduzidas por uma mobilização de parlamentares do estado, foram identificados terrenos que tinham cadastros no Sicar, mas nenhum sinal aparente de ocupação ou atividade produtiva.
- Existem tentativas de usar o CAR para promover a grilagem. Na Floresta Nacional do Jamanxim, a área aprovada para redução recente via Medida Provisória (MP) tem vários cadastros - aponta Cristiane Mazzetti, da campanha Amazônia do Greenpeace, fazendo referência a duas MPs que reduzem a área de UCs no Pará e Santa Catarina e que aguardam assinatura presidencial.
Raimundo Deusdará, diretor do Serviço Florestal Brasileiro (SFB), afirma que o órgão está trabalhando para qualificar a detecção de sobreposições:
- Temos planos de integrar dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e de quilombolas para detectar mais sobreposições. Uma das belezas do CAR é que, se desde as capitanias hereditárias as sobreposições existem, hoje podemos vê-las - comemora.
Para povos indígenas, comunidades tradicionais e assentamentos tradicionais, a responsabilidade de inscrição no CAR é compartilhada com os órgãos públicos que apoiam a gestão destesterritórios. Segundo a Funai, todas as terras indígenas que já foram delimitadas estão inseridas no sistema - como é o caso de Guarani de Bracuí, que já é registrada.

A experiência dos quilombolas com o CAR está sendo acompanhada de perto por Milene Maia Oberlaender, assessora do Instituto Socioambiental (ISA). E esta trajetória não tem sido fácil: começou, segundo Milene, com a ausência das particularidades das comunidades tradicionais no desenho na nova lei; depois, significou uma indefinição de como estes povos deveriam fazer o CAR - no software para imóveis rurais comuns ou em um módulo específico, e em registros individuais ou coletivos.

- O CAR quer enquadrar todo mundo na lógica da propriedade privada, mas os territórios das comunidades tradicionais têm uma lógica diferente. A Reserva Legal, para estes povos por exemplo, não é necessariamente estática. Como será, por exemplo, para os quilombolas no Tocantins, que fazem uma agricultura que drena áreas úmidas de APPs? A nova lei prevê atividades de baixo impacto, mas não há nada especificado - aponta Milene.

Somente neste ano foi lançado um módulo do CAR especialmente voltado às comunidades tradicionais - já durante período prorrogado para as inscrições e com um novo prazo para 31 de dezembro de 2017. Agora, representantes destes povos tentam ampliar este prazo.

- Não houve orientação de como as comunidades tradicionais deveriam se inscrever no CAR. Muitos fizeram no módulo comum, em registros individuais, quando estes territórios são coletivos. Até o momento, não sabemos se estas informações migrarão para o módulo destinado às comunidades tradicionais - denuncia a assessora do ISA.

O Globo, 04/06/2017, Sociedade, p. 38

https://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/meio-ambiente/novo-codigo-fl…

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.