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Reflexões sobre cidadania: especialistas apontam quatro desafios dos próximos anos

O Globo, Caderno Especial, p. 14
29 de Jul de 2020

Reflexões sobre cidadania: especialistas apontam quatro desafios dos próximos anos
Diante da pandemia que evidencia tantas desigualdades, como facilitar a inclusão e construir uma sociedade completa

O smartphone é cada vez mais onipresente. Foi a câmera de um que captou, no início do mês, a reação de um casal a um fiscal que tentava demover cidadãos de se aglomerarem num bar do Rio em plena pandemia: "Cidadão, não. Engenheiro civil formado. Melhor que você."
Dias depois, outro celular registrou um desembargador abordado por um guarda numa praia de Santos recusar-se a usar a máscara obrigatória para todos cidadãos ali e protagonizar a clássica cena do "Sabe com quem está falando?"
O flagrante de um policial de São Paulo com a bota no pescoço de uma cidadã negra contra o asfalto choca ainda mais por remeter a outro crime recente documentado por lentes portáteis de vários megapixels: o assassinato do cidadão negro George Floyd por um policial nos EUA.
Mas o registro paulista é só mais um de abordagens policiais em periferias brasileiras, onde a violência gratuita não permite a nenhum cidadão ali retrucar, como chegou a fazer em francês aquele mesmo desembargador em outro desencontro com a lei registrado por um celular.
O smartphone ajuda a denúncia de injustiças pela imprensa, mas o uso de tão sofisticada tecnologia no registro de cenas tão anacrônicas simboliza as contradições de nossa realidade imperfeita. Avanços extraordinários convivem com o atraso histórico e perigosos retrocessos. As páginas do GLOBO não se limitam a retratá-los diariamente. Também abrem espaço para o debate em busca de soluções para a evolução da sociedade.
A crise sanitária que sublinhou tantas desigualdades reforçou ainda mais a necessidade de dar novo significado à palavra "cidadão". Por isso buscamos diferentes reflexões sobre quatro desafios a serem enfrentados nos próximos anos para alcançarmos isso.
1. Retomar o crescimento econômico com redução de desigualdades
Em abril, quando a Caixa abriu inscrições para o auxílio emergencial de R$ 600 para trabalhadores informais sem renda por causa da pandemia, o governo admitiu ter descoberto milhares de "invisíveis" sem rede de proteção social.
Nas planilhas do economista Marcelo Neri, diretor da FGV Social, os brasileiros mais vulneráveis são cada vez mais visíveis desde 2014, início da crise econômica que ainda não havia sido superada quando o vírus chegou.
Neri calcula que, entre 2014 e 2019, a extrema pobreza subiu 67% no Brasil, depois de ter caído 71% entre 2001 e 2014. Ainda que nem todos os avanços do período anterior tenham sido perdidos, para muita gente que hoje compõe essa estatística a vida piorou depois de ter melhorado.
- É muito difícil a perda para quem já teve alguma coisa. Vivemos a maior recessão da História e o maior período consecutivo de aumento da pobreza - diz o pesquisador, para quem o país precisa definir nos próximos anos uma estratégia econômica que reduza desigualdades. - Estamos numa situação fiscal delicada, necessitamos de uma estratégia responsável, mas que não deixe ninguém para trás.
Para o historiador Átila Roque, diretor da Fundação Ford no Brasil, falar em desenvolvimento só como crescimento econômico é aprofundar injustiças sociais históricas. Ele aponta uma reforma tributária progressiva como a política pública mais importante para o país nos próximos anos, para drenar recursos dos mais ricos para o financiamento de serviços públicos inclusivos, como saúde e educação:
- Precisamos de mecanismos redistributivos com foco nas populações negras e indígenas, em especial jovens e mulheres. Ninguém será cidadão enquanto muitos não o forem em igualdade de condições.
2. Recuperar a capacidade de diálogo na política e na sociedade
O mundo vive um incômodo com divisões crescentes alimentadas pelas redes sociais. Nascidas como promessas de democratização, elas são vistas hoje como instrumentos de ódio, desinformação e discórdia, que interferem na política e interditam o diálogo.
O cientista político Jairo Nicolau lembra que a polarização não é novidade na política, mas encontra hoje nas redes sociais um novo contorno, com grande reverberação. Para o pesquisador do CPDOC FGV, o avanço de regulações e ações corretivas das próprias empresas de tecnologia chamadas à responsabilidade por seus algoritmos podem suavizar o cenário nos próximos anos. Mas, no caso do Brasil, aponta como principal desafio superar a paralisia:
- É preciso encontrar territórios em que as pessoas possam dialogar sobre o que realmente importa, como no Congresso, na imprensa, na universidade, resguardando o respeito ao outro no debate. Não acredito em uma sociedade complexa, sem conflitos. Mas, para as questões centrais, temos que ter o diálogo - diz o professor, para quem dados, estatísticas e outras evidências podem ser a base de decisões em políticas públicas.
A historiadora Maria Aparecida Aquino, pesquisadora da USP, já identifica um movimento de reação à paralisia provocada pelo desalento em relação à política provocado pelos escândalos de corrupção e pelo processo eleitoral radicalizado em 2018. Ela avalia que, na medida em que ameaças institucionais ameaçam passar do campo da retórica para a prática, uma articulação em torno de interesses comuns se restabelece.
- Existe uma reação. As pessoas, de certa forma, saíram do susto. Sou otimista, acho que poderemos restabelecer o diálogo nos próximos anos - analisa Maria Aparecida. - As redes sociais vieram para ficar. Temos que aproveitar o que elas têm de melhor.
A filósofa e psicanalista Viviane Mosé observa que a sociedade está em mutação porque também passou a se organizar em redes, mas os líderes da velha hierarquia não desapareceram. Aderiram à guerra narrativa. Para ela, o antídoto é justamente o princípio da colaboração, intrínseco às redes.
- Isso é o futuro. A colaboração nas redes salvou vidas na pandemia. Nas mesmas que espalham fake news. A gente tem que inverter o uso da rede, mas isso envolve desenvolvimento intelectual. Nos próximos anos temos de investir numa educação da responsabilidade. É preciso ser ativo nas redes e na sociedade, e não passivo, levado por ondas de cancelamento ou de exaltação a alguém.
3. Resgatar o papel estratégico da ciência e da educação
Professor do Departamento de Sociologia da USP, Glauco Arbix nunca pensou ver a ciência tão questionada e tão necessária.
O populismo relativiza o discurso da ciência, mas é dela que o mundo espera uma solução para a crise global do coronavírus: uma vacina.
Ex-presidente da Finep e do Ipea, Arbix admite que certa acomodação das universidades em relação a problemas brasileiros contribuiu para o afastamento da sociedade, mas vê na reação da comunidade acadêmica à pandemia o caminho para a reconexão. Destaca a intensa cooperação internacional e a formação de redes de pesquisadores voluntários, como a de 60 especialistas de várias áreas que integra na USP. Eles ouvem demandas de diferentes setores e apontam caminhos em boletins semanais.
- Essa mobilização pode trazer uma mudança nos próximos anos. A pandemia rompeu o isolamento. Hoje há um trânsito livre de diálogo com empresas, instituições, ONGs como não tínhamos há muito tempo - diz Arbix. - É impensável para um país que aspira ser civilizado desacreditar sistematicamente a ciência.
Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da FGV, Claudia Costin avalia que, nos próximos anos, o país precisará de inovações e tecnologia para acelerar a superação do atraso agravado pela pandemia na educação básica. E também de envolvimento dos cidadãos com a escola pública, independentemente das falhas do governo:
- Temos que conhecer, ajudar as escolas. É impressionante como, neste momento difícil, a comunidade está ajudando. Tenho recebido relatos de secretários de várias cidades sobre gente levando materiais para crianças que estão em casa, oferecendo internet para quem não tem acesso às aulas on-line. Há muita coisa acontecendo nesse sentido.
Claudia recusa a tese de que o brasileiro não valoriza a educação e lembra da conversa com uma mãe da Rocinha, quando foi secretária de Educação do Rio. A mulher insistiu em matricular o filho em uma escola distante porque soube que o ensino lá era melhor:
- Há um grande preconceito social nessa visão. Os pais querem o melhor para seus filhos e sabem que a única forma de eles construírem suas vidas é pela educação.
4. Proteger o meio ambiente com uso racional da natureza
O mundo está de olho no Brasil por abrigarmos aqui a maior parte da Amazônia, maior floresta tropical do mundo, e demonstrarmos atualmente ter problemas para preservá-la. Para além das marcas definitivas no coração da floresta e na vida de suas comunidades, o avanço do desmatamento já produz um dano de imagem para empresas brasileiras que atuam no exterior.
A selva amazônica é depositária de uma rica biodiversidade, cujo potencial econômico precisa ser mais estudado. Mas, para a ambientalista Adriana Ramos, integrante do Instituto Socioambiental (ISA), a exploração racional de recursos naturais no Brasil envolve fomentar cadeias produtivas e serviços locais que não impliquem perdas de vegetação, bem como apoiar a pesquisa científica de biomas e incentivar o turismo não predatório.
- Para isso é fundamental a presença do Estado para fazer cumprir a lei, proteger o patrimônio público, os direitos dos mais vulneráveis - diz Adriana.
Para a ambientalista, os principais desafios dessa área nos próximos cinco anos serão deter a agenda de desregulamentação ambiental do atual governo - que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, definiu como "passar a boiada" - e proteger as populações indígenas sob a ameaça de garimpos e fazendas.
- O país precisa de regulações alinhadas a parâmetros de sustentabilidade já existentes e compatíveis com os direitos das populações tradicionais que vivem e mantêm as florestas em pé.
Vice-diretora da Coppe/UFRJ e uma das cientistas que integraram o grupo do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) em 2007 agraciado com o Nobel da Paz, Suzana Kahn diz que o Brasil é o país no mundo que mais tem a ganhar com a transição global para uma economia sustentável, um movimento que não tem mais volta, mas precisa se organizar para se beneficiar disso:
- Nossa enorme biodiversidade é matéria-prima para a bioeconomia, a insolação que o país recebe nos fornece um potencial imenso de energia solar, o mapa eólico do Brasil aponta inúmeras áreas para grandes fazendas eólicas. Ou seja, o país pode ser o que tem maior capacidade de geração de energia elétrica sem emissão de carbono e, consequentemente, tudo que for produzido aqui terá uma menor "pegada" de carbono e maior valor no comércio internacional.
Ela continua:
- Nossa costa e o oceano indicam uma possibilidade ainda inexplorada para o uso sustentável de suas riquezas. No entanto, este nosso capital natural só se tornará um benefício real e competitivo se houver planejamento e investimento em ciência, tecnologia e inovação, além de capacitação de nossos recursos humanos.
Suzana também ressalta que o avanço da fronteira agrícola sobre áreas ambientais desconsiderava que o uso da terra para plantações corre o risco de esgotar a fertilidade do solo.
- No entanto, as novas gerações já se dão conta de que o desenvolvimento do agronegócio só é possível com sustentabilidade. A tecnologia é de grande ajuda para promover um aumento de produtividade sem que isso cause impacto adicional ao ambiente. Tanto é assim que é um setor que tende a se sofisticar cada vez mais, com enorme potencial de ganhos e inovação tecnológica.
Para Marina Grossi, presidente do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável, as empresas também precisam renovar seus paradigmas em relação ao meio ambiente. No mês passado, grupos empresariais enviaram uma carta ao vice-presidente Hamilton Mourão, que lidera o Conselho da Amazônia, pedindo mudanças na política ambiental para não causar danos aos negócios de empresas brasileiras que atuam no exterior ou exportam para mercados sensíveis à questão, como a Europa.
- É possível dar escala às boas práticas a partir de políticas consistentes de fomento à agenda ambiental, social e de governança - diz Marina.
Para a executiva, existe um enorme potencial econômico a ser explorado:
- Há um elevado potencial econômico já dimensionado da floresta em pé. Para os negócios, a biodiversidade é considerada hoje um ativo extremamente estratégico, inclusive do ponto de vista financeiro. Ou seja, não se trata apenas da importância da preservação, mitigação e compensação ambientais para a conter as mudanças climáticas. Se considerarmos que o Brasil detém 20% da biodiversidade global, a maior do planeta, nosso país tem uma vantagem competitiva enorme. O desafio é aliar esse enorme ativo com a tecnologia, agregando valor à economia. Isso pode colocar o Brasil numa posição de destaque numa nova economia, com destaque para o agronegócio nacional.

O Globo, 29/07/2020, Caderno Especial, p. 14

https://oglobo.globo.com/95-anos/reflexoes-sobre-cidadania-especialista…

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