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Recomeçar a vida... no Mercadão

FSP, Ilustrada
Autor: HORTA, Nina
07 de Jun de 2007

Recomeçar a vida... no Mercadão

Nina Horta

Fomos, minha cunhada e eu, ao Mercadão, num dia de semana, ver os produtos da floresta. É uma pena, não sei quem organiza esses eventos, são de uma pobreza incrível, tão diferente da própria Amazônia. Sabe aqueles bazares de fim de ano quando cada mãe leva alguma coisa para vender? Uma bolsinha, um crochê, umas goiabas, castanhas e bombom de cupuaçu, ele não falta nunca. É um eterno ingrediente ubíquo e com mil e uma utilidades. Imagino que as pessoas que norteiam as artesãs também se inspiram no que há de mais impossivelmente sem graça no mundo.

Bem diferente do próprio Mercadão, onde a inspiração para a moda anda solta, principalmente agora no inverno, com sapatões, superposições de lã e organza, chapéus de aba, boinas, inspiração urbana a ser copiada por um Herchcovitch.

A nossa esperança era acharmos fornecedores da Amazônia, pois os daqui seria impossível, alertadas por um aviso numa barraca: "Nosso fornecedor é Jesus".
A turma do mercado é diferente.
Todos estão lá para comprar do bom e do melhor, o ingrediente que conhecem bem, que provam e discutem com o vendedor. Isso é a base de uma "cuisine", segundo Sidney Mintz. Sabem o que pedem, e os vendedores adoram expor os produtos, falar sobre eles e dar um pouco para provar, uma manguinha aqui, um rambutan ali, um figo turco se abrindo inteiro, muito doce e que só dura um mês, atemóias enormes, as alcachofras já aparecendo e mexericas do Rio. A barraca de miúdos é um susto, tem inclusive aquela redinha que é boa para assados, o redanho (a crépine), que envolve e unta os patês e os frangos.

Geralmente são chineses os que compram os miúdos, e há que ficar um bom tempo parado lá, assuntando, enquanto eles escolhem entre testículos, rabos, orelhas, estômagos, fígados, mil folhas. Muito de vez em quando, depois que quase já gastamos nosso estoque de sorrisos, abrem o bico e dão receitas. Quase sempre um miúdo estranho, muito bem lavado, branqueado, picadinho, salteado, temperado e cozido depois em fogo lento. Timo não tem. Nem a Neide, dona da banca, que se diverte com palavras cruzadas, a Neide que sabe que Ur é na Caldéia, pode nos indicar onde vão parar os timos. Jogados fora, com certeza. As famosas mollejas argentinas.

Num botequim mínimo, há um sujeito sentado numa escada apertada e curva, fazendo o papel de elevador de carga. Os de cima passam os ingredientes para ele, que repassa para os de baixo, mas isto ininterruptamente, porque o bar é muito freqüentado. Ele mora ali.

No meio daquele excesso de comida, há os mendigos remexendo o lixo e saindo com belos meios sanduíches de mortadela, pois se o sanduíche tem 300 g de mortadela, um de 150 g já é um belo achado.

Na saída, olhamos os pequenos prédios tão decadentes e subitamente ficamos com vontade de comprar um apartamento pequenininho ali, descermos todo dia para o Mercadão, as compras fresquíssimas na madrugada, os peixes, os mexilhões, os frangos vivos, e voltarmos diretamente para a cozinha e recomeçarmos a eterna faina da cozinha que a nossa vida nos impede de exercer. Adoro brincar desse sonho em que, mudando de cidade ou de bairro, sua vida pode tomar outros rumos completamente diferentes. Questão de uma viagenzinha de ônibus e estamos noutro mundo, com outras gentes, nascidos de novo para a aventura de viver. Mas daí, já resolvemos ocupar o telhado do prédio e enchê-lo de samambaias, e a comida com certeza vai ser tão boa que compraremos o térreo para um restaurante, e centenas de pessoas logo estarão se acotovelando lá na frente para a sopa das seis horas, no frio, e os mexilhões ao vinagrete. E assim voltaria a vida da qual estaríamos fugindo. É uma tendência a repetir o script, própria dos "filmes B".
ninahorta@uol.com.br

FSP, 07/06/2007, Ilustrada

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