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Realismo ingênuo

Valor Econômico, Opinião, p. A11
Autor: VEIGA, Jose Eli da
24 de Mar de 2016

Realismo ingênuo

José Eli da Veiga

Como reagem jovens universitários se instigados a tomar conhecimento da agenda que deverá orientar todas as políticas públicas até 2030, os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)?
No aguardo de bem-vinda pesquisa do Ibope, Datafolha ou Instituto Análise, é preciso dar atenção ao principal resultado de uma repentista "qualitativa", pois com certeza poderá ajudar muito na formulação de boas perguntas.
É quase unânime a curta e grossa exclamação "não vai dar certo" logo após a leitura dos cinco primeiros ODS: acabar com a pobreza e a fome; assegurar vida saudável e educação inclusiva de qualidade; alcançar equidade de gênero via empoderamento de todas as mulheres e meninas.
Tão forte desconfiança inviabiliza, é claro, qualquer insistência para que continuem a leitura dos demais objetivos que, pela ordem, são saneamento, energia, emprego, inovação, desigualdades, cidades, padrões de produção/consumo, clima, oceanos, biodiversidade, governança, justiça e paz.
Razoável hipótese para futura pesquisa parece ser, então, que tamanho ceticismo entre os mais educados segmentos da juventude seja simultaneamente dos mais saudáveis e muitíssimo pueril. Saudável ao demonstrar boa capacidade de comparar o discurso normativo comum às 193 nações que no âmbito da ONU pactuaram a Agenda 2030 a qualquer análise, mesmo que superficial, da gélida realidade dos fatos. A garotada está bem antenada e inteiramente coberta de razão ao logo notar que será impossível alcançar tão ambiciosos níveis de desenvolvimento em parcos quinze anos.
Não deixa de ser uma preocupante ingenuidade, porém, supor que um pacto global dessa natureza deva ser avaliado apenas pela probabilidade de que seus objetivos sejam ou não cumpridos no prazo estipulado. Confunde-se objetivos (que em certos casos podem ser até inalcançáveis) com o atendimento parcial de suas decorrentes metas, sempre expressas em proporções ou porcentagens. Pior ainda é a rejeição, sem qualquer piedade, do mais relevante: o caráter eminentemente pedagógico, orientador e sobretudo incentivador desse tipo de agenda.
Tanta inocência certamente não prevaleceria se os jovens tivessem tido a oportunidade de conhecer a experiência anterior dos bem menos ambiciosos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), do período 2001-2015.
Não consta que algum deles tenha sido globalmente cumprido, mas as ações coletivas para atingir suas metas foram responsáveis pelo mais virtuoso processo de capacitação já ocorrido. Fizeram com que multidões de agentes estatais, lideranças da sociedade civil, e até mesmo políticos profissionais, começassem a entender quais são os reais determinantes do processo de desenvolvimento.
Foi justamente o entusiasmo gerado pelo poder persuasivo dos ODM e seu papel eminentemente esclarecedor que acabaram por engendrar excessos na preparação dos ODS, a experiência global de formulação política mais participativa da história. Como consequência, o monitoramento da Agenda 2030 será extremamente complicado, como mostram as mais de duas centenas de indicadores adotadas há poucos dias pela Comissão Estatística da ONU, agora sob a promissora direção da economista amazonense Wasmália Bivar, atual presidente do querido IBGE.
Tudo isso só aumenta a importância de que sejam disponibilizadas ferramentas voltadas a todos os que topem participar do imenso mutirão que levará à assimilação dos ODS para que sejam localmente internalizados. A começar pelas pessoas que já atuam em sistemas educacionais e outras iniciativas dirigidas à aprendizagem em geral, pois está fora de cogitação supor que sem isso muita gente venha a se interessar pelos indigestos 169 enunciados que especificam os 17 ODS da Agenda 2030. Ainda menos por duzentos e tal indicadores de avaliação.
É nesse contexto que se inserem duas novíssimas iniciativas digitais cujos públicos-alvo podem até ser bem diferentes, mas que compartilham o mesmíssimo propósito: de que as sociedades possam se relacionar com a biosfera de modo a evitar redução do leque de escolhas das gerações seguintes.
A primeira - mundoise.isebvmf.com.br - é uma forma bem-humorada de abordar o valor 'sustentabilidade' a partir de situações da vida real. Foi lançada há poucos meses como interface lúdica do ISE, o Índice de Sustentabilidade Empresarial, que assoprou dez velinhas no ano passado.
A outra, que somente entrou no ar há uma semana - sustentaculos.pro.br - é mais dirigida a educadores em geral (a começar pelos pais dos mais ingênuos que realistas jovens estudantes) com o objetivo de lhes facilitar o acesso aos melhores conteúdos, tanto sobre as dimensões conceituais da sustentabilidade do desenvolvimento (organizadas em oito temas), como sobre cada um dos ODS.
Essas duas plataformas anseiam por feedback crítico de leitores do Valor que se animem a enviar comentários e sugestões. É para isso que a primeira apresenta um "Fale conosco" e a segunda oferece uma "Caixa de Diálogo".

José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de
São Paulo (IEE/USP) e autor de "Para entender o desenvolvimento sustentável" (Editora
34, 2015). Página web: www.zeeli.pro.br

Valor Econômico, 24/03/2016, Opinião, p. A11

http://www.valor.com.br/opiniao/4496364/realismo-ingenuo#

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