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Rastros de Kadafi no Brasil

OESP, Economia, p. 38
20 de Mar de 2011

Rastros de Kadafi no Brasil
Fundo bilionário da Líbia tem interesse em megaprojeto de irrigação na BA, que divide moradores

Danielle Nogueira

É no sertão baiano, às margens do Rio São Francisco, que o governo de Muamar Kadafi - envolvido em uma sangrenta disputa com rebeldes para se manter à frente da Líbia - pode fazer sua grande aposta de investimento no Brasil. É lá, nas cidades de Xique-Xique e Itaguaçu da Bahia, a 500 quilômetros de Salvador, que está sendo implantado um dos maiores projetos de irrigação do país: o Baixio do Irecê, com orçamento de R$880 milhões, dos quais R$550 milhões previstos no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal.

O projeto por ora está sendo tocado pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf), estatal ligada ao Ministério da Integração Nacional, e deve ser licitado ainda este ano no âmbito das Parcerias Público Privadas. Entre os cotados para ganhar o leilão está o consórcio formado pela Codeverde - que tem como sócio majoritário o grupo Odebrecht - e o bilionário fundo soberano da Líbia, o Libian Arab Foreign Company (Lafico), controlado pelo governo Kadafi e com investimentos diversos, que inclui até o time de futebol italiano Juventus.

O consórcio já destinou US$1,5 milhão - cada parceiro arcou com metade dos custos - para o desenvolvimento de uma proposta de modelo de negócios para a região, apresentada ao governo brasileiro em 2007 e que hoje está sendo aprimorada pelo Banco Mundial. É ela que servirá de base para o edital de licitação do Baixio do Irecê. Para a elaboração do estudo foram contratados na época o banco Santander, a empresa de engenharia gaúcha Magna e a consultoria de agronegócios FNP.

Odebrecht vendeu terras à estatal

Segundo a Codevasf, a ideia é promover, às margens do "Velho Chico", o cultivo de cana-de-açúcar e frutas, além de grãos como feijão e milho. A produção deve ser iniciada em cinco anos, e a soma de terras irrigadas será de 48 mil hectares. O consórcio vencedor terá de apresentar o modelo de aproveitamento das terras e concluir as obras, até agora realizadas com recursos públicos. Hoje, já há 42 quilômetros de canais construídos - o equivalente a uma maratona - de um total de 84 quilômetros. O prazo de concessão será de 35 anos.

- Queremos atrair empresas âncoras para criar escala de produção e viabilizar a logística. A previsão é que 25% dos lotes sejam reservados para pequenos e médios produtores, que receberão assistência dos maiores - diz Clementino de Souza Coelho, presidente interino da Codevasf.

A Codeverde é uma das principais interessadas no projeto. A empresa foi constituída em 1986 com o objetivo de construir uma espécie de condomínio rural, no qual uma infraestrutura comum seria usufruída por diferentes proprietários rurais, algo semelhante ao que se pretende fazer no Baixio do Irecê. A companhia também aparece em relatório do Ministério Público da Bahia ao qual O GLOBO teve acesso como ex-titular de fazendas desapropriadas pela Codevasf para tocar o projeto de irrigação em Xique-Xique. Hoje, a Codeverde tem 170 mil hectares na Bahia, área que será reduzida a 72 mil hectares no fim do mês, após novas vendas de terras à estatal.

A Codeverde não dá detalhes sobre as negociações de terras, mas reitera seu interesse no projeto. Diz ainda que, mesmo após a Líbia ter entrado em uma guerra civil, quando o edital de licitação sair consultará o Lafico para saber se ele manterá sua participação na segunda fase do empreendimento. Caso a parceria se confirme, não será a primeira vez que o grupo Odebrecht fará negócios com o governo de Kadafi. A empresa é responsável por obras orçadas em US$5 bilhões em Trípoli.

Já o interesse da Líbia no Brasil atende à estratégia do Lafico de diversificar investimentos e fazer do projeto do Irecê uma plataforma de exportação de alimentos e biocombustíveis. Em 2010, o país importou US$456,1 milhões do Brasil, mais que o dobro dos US$204 milhões de 2009. Entre os principais itens da pauta de importações estavam minério de ferro, carne e milho. A aproximação entre os dois países também deve ser entendida como resultado da estratégia diplomática do ex-presidente Lula de estreitar laços com o mundo árabe. Logo após a visita de Lula a nações árabes em 2003, uma missão de empresários e investidores líbios aterrissou por aqui, dando início às tratativas em torno do Baixio do Irecê.

- Inicialmente pensamos em um projeto binacional, mas o fundo preferiu fazer uma parceria com a iniciativa privada - lembra Souza Coelho, da Codevasf, que adota um discurso pragmático. - Não temos vinculação societária com o fundo (líbio) nem obrigação de fazer o projeto com eles apenas porque financiaram a proposta de modelo de negócios. Mas se eles quiserem participar, a licitação será aberta. Há muitos ditadores fazendo negócios no Brasil.

Igreja vê riscos para 1.200 famílias

Enquanto a licitação do Baixio do Irecê não sai, o projeto divide moradores da região. Segundo estimativas da Comissão Pastoral da Terra (CPT), há 23 comunidades, totalizando 1.200 famílias, vivendo no entorno do empreendimento. A maioria vive da pesca, da pequena lavoura e da criação de animais. A abertura de vagas com as primeiras fases das obras - a cargo de Andrade Gutierrez, da goiana Emsa e da mineira Barbosa Mello - enche os olhos de alguns, como João Vieira de Souza, de 43 anos, morador de Carneiro.
Pai de cinco filhos, Souza tirava o sustento da pesca e da plantação de mandioca e melancia. Após a chegada das empreiteiras, trabalhou um ano e sete meses no projeto de irrigação, com carteira assinada e um salário de R$550 mensais. Com o dinheiro, ergueu uma casa de alvenaria - antes morava em uma de taipa - e conseguiu comprar uma TV colorida.
- Acho que, para quem quer trabalhar, (o projeto) vai ser bom.
Na comunidade vizinha, Boa Vista, é fácil encontrar pessoas contrárias ao empreendimento. A razão é simples: as terras onde os moradores criavam seus animais hoje estão cercadas. Foram desapropriadas pela Codevasf e serão concedidas às empresas vencedoras do leilão. João Ferreira Santos, de 37 anos, criava suas seis cabeças de gado nas antigas fazendas sem ser incomodado pelos ex-proprietários. Agora, sabe que terá de encontrar outra fonte de renda.

- Tive que colocar os bois no circo (um cercado atrás de sua casa). Só vai piorar daqui para a frente - diz ele, que ganhava cerca de R$200 por mês com o gado e a pesca.

O educador da CPT Mauro Jakes Farias da Cruz teme que os moradores sejam excluídos do projeto.
- A lógica do agronegócio não respeita a cultura das famílias tradicionais. Eles ocuparam essas terras há décadas e têm de ser respeitados.

Procuradoria investigará impacto sobre pesca no Rio São Francisco
À margem do velho Chico: Para TCU, "risco de superfaturamento" em contratos
Apesar da TV ligada nas casas o dia todo, moradores desconhecem ditador líbio

Danielle Nogueira

XIQUE-XIQUE (BA) e SÃO PAULO. Por sua magnitude, o projeto de irrigação Baixio do Irecê atraiu a atenção do Ministério Público (MP) do estado da Bahia. Este mês, o órgão abre licitação para contratar uma consultoria com o objetivo de avaliar os impactos ambientais. Entre os temores, está a diminuição da vazão do Rio São Francisco, o que poderia comprometer a pesca local, e o desmatamento das áreas que serão destinadas ao plantio.

Quem está à frente da iniciativa é a promotora Luciana Khoury, coordenadora do Núcleo de Defesa da Bacia do São Francisco do MP, que abrange 115 municípios. Segundo ela, o núcleo elegeu 30 empreendimentos em implantação na região para que sejam acompanhados com lupa.

- Estamos, no momento, levantando informações sobre o projeto. Vamos cobrar responsabilidade - diz ela.

As obras também estão na mira do Tribunal de Contas da União (TCU). Auditoria feita em 2009 apontou "risco potencial de superfaturamento" em um contrato firmado entre a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba (Codevasf), estatal responsável pelo projeto, e a empresa de engenharia Emsa. Também constatou disparidades no recolhimento de ISS pela gaúcha Magna, que fazia a supervisão das obras.

Irregularidades foram corrigidas, diz Codevasf

Clementino de Souza, que ocupa a presidência da Codevasf interinamente, diz que as irregularidades já foram corrigidas. A Magna esclarece que houve uma confusão nas guias de recolhimento do município de Xique-Xique - base do projeto -, mas que a situação já foi normalizada. Procurada, a Emsa não retornou as ligações do GLOBO. Segundo o TCU, as respostas das empresas estão sob análise.

Apesar do interesse no Baixio do Irecê, os promotores desconhecem o interesse da Líbia no projeto. Entre os moradores do entorno do empreendimento também reina o desconhecimento. Como as casas têm energia elétrica, as TV ficam ligadas o dia todo. Mas apesar da veiculação diária de notícias sobre a Líbia, praticamente ninguém ouviu falar em Muamar Kadafi.

Morador da comunidade de Carneiro, Lucas Neto da Silva, de 59 anos, é uma exceção. Perguntado se já ouvira o nome Kadafi, respondeu afirmativamente e ainda decretou sua deposição, antes mesmo de uma possível intervenção armada das Nações Unidas na Líbia.

- É aquele ex-presidente daquele país que eu esqueci o nome, que aparece na TV.

BC líbio é acionista de banco que atua no Brasil

Além do interesse no Baixio do Irecê, o governo da Líbia tem investimentos no sistema bancário brasileiro. O Banco ABC Brasil, voltado para crédito a pequenas e médias empresas, é controlado pelo Arab Bank, com 58% das ações. E este tem entre seus controladores o Banco Central da Líbia (59,4% do capital). Em 2003, o ABC pagou R$300 mil ao Pão de Açúcar pela marca Sé Supermercados. A ideia era revendê-la para outro investidor, mas isso não aconteceu. Embora ela não tenha sido ressuscitada, integra o ativo do banco.

No Banco Central, não há registro de estoque de investimentos diretos entre 1995 e 2000. E o fluxo entre 2001 e 2006 (dados disponíveis) soma apenas US$510 mil. Mas isso não quer dizer que a Líbia não tenha investimento direto no país. Este pode ter vindo via paraísos fiscais, movimento que o BC não consegue verificar.

COLABOROU Aguinaldo Novo

OESP, 20/03/2011, Economia, p. 38

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