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Raposa da discórdia

Isto E, p. 71-74
14 de Abr de 2004

Raposa da discórdia
Em nome da defesa nacional, Lula sofre pressão para excluir área de fronteira de reserva indígena

Acredite se quiser: numa área ianomâmi, em Roraima, militares hasteiam a bandeira do Brasil diante de sede de ONG, onde antes só havia o símbolo da Comunidade Européia

Florência Costa

O ponto mais ao norte do Brasil, na fronteira da Venezuela com a Guiana, está em pé de guerra. Lá, em Roraima, fica a famosa Raposa Serra do Sol, um território de 1,7 milhão de hectares habitado por 15 mil índios de cinco etnias e por cerca de 700 não-indígenas. A área, demarcada desde 1988, está pronta para ganhar um novo status: o de Terra Indígena (TI). Para isso, resta apenas um gesto: a assinatura do decreto de homologação da área pelo presidente da República. Fernando Henrique Cardoso guardou o documento durante cinco anos. Luiz Inácio Lula da Silva o mantém engavetado. Isso porque o presidente vem recebendo alertas de serviços de informação das Forças Armadas, de especialistas em defesa nacional e de parlamentares que estiveram na região de que criar uma TI na instável fronteira tríplice, em pleno coração da Amazônia, poderá custar caro para o País. Eles defendem uma nova configuração para a reserva Raposa Serra do Sol, diferente da elaborada pela Fundação Nacional do Índio (Funai): querem preservar uma faixa da fronteira, que inclui a estratégica cidade de Uiramutã, sede do Sexto Pelotão de Fronteira do Exército, e as plantações de arroz.
Abacaxi - Lula está diante do dilema que divide o governo: ele tem a obrigação de fazer justiça com os índios. Mas o presidente não quer se precipitar e colocar em risco a segurança nacional. Há também pressões de políticos, empresários e produtores rurais, muitos dos quais invadiram a área depois da demarcação e ainda contaminam os rios, segundo a Funai e ONGs como o Conselho Indígena de Roraima (CIR). Trata-se de mais um abacaxi herdado por Lula. A inquietação no meio militar é grande. "Nenhum país do mundo concede soberania a qualquer povo, indígena ou não, numa área de fronteira. Sou totalmente contra a configuração de terras indígenas em fronteiras", afirmou Geraldo Cavagnari, coronel da reserva e membro do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade de Campinas (Unicamp). O presidente da Funai, Mércio Gomes, contra-argumenta, lembrando que "historicamente os índios sempre defenderam as fronteiras brasileiras". Segundo Gomes, dos 18.500 quilômetros de fronteira seca do País, 5.770 estão em reservas indígenas. "No ano passado, madeireiros peruanos invadiram a fronteira e os índios Ashaninka deram o alarme para os militares, que os expulsaram", contou. "De fato, os índios sempre ajudaram na defesa do território nacional, mas hoje não é mais suficiente. Não vão fazer isso com arco-e-flecha", observou Cavagnari.
Na mesa de Lula há 18 decretos de homologação de terras indígenas para serem assinados, e o mais explosivo é o da Raposa Serra do Sol. A homologação da área contínua divide opiniões entre os próprios índios: os matuxi, wapichana, ingarikó, taurepang e patamona. Boa parte deles quer viver na sua histórica área contínua, sem a companhia dos não-indígenas. Eles contam com o apoio de ONGs nacionais e internacionais e setores da Igreja Católica. Mas há os que desejam manter contato com as outras culturas e se recusam a viver isolados. Estes querem a homologação em ilhas, de forma a preservarem estradas, plantações de arroz e Uiramutã, com seus cinco mil habitantes.
O foco da atuação militar em defesa da soberania brasileira é hoje a gigantesca e esvaziada fronteira amazônica, com seus 11 mil quilômetros fazendo limite com sete países. Por estar desguarnecida, a fronteira tornou-se porta de entrada para narcotraficantes e garimpeiros de outros países, alvo fácil de guerrilheiros da Colômbia. Desde meados dos anos 80, as Forças Armadas voltaram sua mira para o Norte do País, procurando tornar a vulnerável fronteira mais "viva" através da presença de unidades militares e da população civil. "O Norte é a parte mais desguarnecida do País. Há um enorme vazio, de 1.600 quilômetros na fronteira amazônica, sem nenhuma presença do Estado", observou o general Luiz Gonzaga Schroeder Lessa, comandante militar da Amazônia em 1998 e em 1999, hoje presidente do Clube Militar. Um dos pontos mais estratégicos na região é justamente o Pelotão de Fronteiras, em Uiramutã. A presença do Exército no meio da Raposa Serra do Sol chegou a ser questionada nos tribunais pelo CIR, mas a Justiça decidiu pela permanência das Forças Armadas, por motivo de segurança nacional.
Sapo - A demarcação de uma imensa área contínua na complicada fronteira com Venezuela e Guiana - onde vivem índios da mesma etnia existente no lado brasileiro - também deixou apreensivos estudiosos em defesa nacional. Até hoje os venezuelanos não engoliram o sapo de terem perdido uma boa fatia de suas terras para a ex-colônia britânica. "É um conflito não resolvido. Está em banho-maria. É preciso tomar muito cuidado na fronteira", advertiu Braz Araújo, coordenador do Núcleo de Análise Interdisciplinar de Política e Estratégia da USP (Naippe). "A Venezuela quer morder dois terços da Guiana. Só não a invadiu até agora porque o Brasil não deixou. A presença militar ali é fundamental", completou Cavagnari. Na última semana de março, a polêmica sobre a homologação da Serra do Sol nos moldes da demarcação feita pela Funai ganhou mais munição. O deputado federal Lindberg Farias (PT-RJ), da comissão que avalia a tensa situação local, elaborou um relatório que reafirma todos os temores militares e dos especialistas em estratégia de defesa. O relatório ainda está sendo debatido na Câmara e será entregue ao presidente Lula como mais um subsídio para que ele bata o martelo. Lindberg propõe que se exclua da reserva indígena uma faixa de 15 quilômetros na fronteira, onde possam permanecer índios e não-índios e onde as Forças Armadas, a Polícia Federal e a Receita Federal possam agir sem nenhum obstáculo. Ele defende ainda a exclusão da área da reserva das plantações de arroz, o que reduziria a área em 15%.
O relatório afirma que não se pode levar em consideração apenas aspectos antropológicos e considera imprescindível ouvir o Conselho de Defesa Nacional (órgão consultivo da Presidência da República) antes de homologar a área. "A questão da defesa nacional tem sido negligenciada no debate sobre a situação das reservas indígenas em faixa de fronteira. A Funai não tem condições políticas de avaliar se a criação de uma reserva indígena em determinada zona de fronteira atenta contra os interesses nacionais ou não", afirmou Lindberg. O presidente da Funai, Mércio Gomes, reagiu: "É um projeto de um extra-terrestre. Há um lobby de políticos de Roraima contra essa demarcação porque eles querem manter as plantações de arroz e controlar as terras que são dos índios." O deputado petista protestou: "O presidente da Funai deveria respeitar o Parlamento." No Senado, há outra comissão que analisa as demarcações, presidida por Delcídio Amaral (PT-MS), que concorda com Lindberg.
A demora na homologação fez com que o Conselho Indígena de Roraima denunciasse o governo, no dia 29 de março, na Organização dos Estados Americanos (OEA). Advogada do CIR, Joênia Wapichana, ela própria índia nascida na área, lembrou que 21 índios já foram assassinados desde 1981 por conflitos de terra. A pressão sobre Lula cresce com a aproximação do 19 de abril, Dia do Índio. A expectativa era ganhar de presente a homologação contínua. Mas, no meio das pressões, o presidente tem preferido agir com cautela e bom senso. Afinal, o que está em jogo é a soberania nacional.

"O projeto(daLindberg) é coisa de um ET, de um extra-terrestre", Mércio Gomes, presidente da Funai

"A Funai não tem condição política de avaliar se a criação de uma reserva atenta contra o interesse nacional" Lindberg Farias, deputado (PT-RJ)

Paraíso das ONGs

Triagem: Cavagnari quer saber quais os interesses da ONGs

Mário Simas Filho

A proliferação de organizações não-governamentais estrangeiras na região amazônica preocupa militares e acadêmicos do Brasil. Em áreas indígenas de Roraima, por exemplo, chama a atenção a quantidade de europeus e americanos que circulam sem embaraço por lugares que brasileiros têm dificuldade para entrar, em razão de resistências impostas pelas próprias comunidades assistidas pelas ONGs. O informe secreto número 157/2001, emitido pelo Sétimo Comando Aéreo Regional em 13 de agosto de 2001, faz um relato que demonstra com clareza os motivos da preocupação dos militares. O documento narra que, em 14 de março de 2001, um avião C-98 Caravan da Força Aérea Brasileira perdeu o controle durante pouso em Paa-Piú Novo, a cerca de 250 quilômetros de Boa Vista. Para recuperar o avião, militares da Aeronáutica foram levados à região e lá montaram acampamento. "No reconhecimento da região foi observada a presença atuante da ONG Médecins du Monde, da Comunidade Européia, que ocupa casa de madeira e 'cuida' da saúde dos índios ianomâmis", relatam os militares. Eles constataram que a entidade mantém laboratórios bem equipados na região e levantaram indícios de que "existe um rigoroso acompanhamento biológico dos índios com análises sanguíneas e avaliações dos princípios ativos dos remédios naturais utilizados pelos silvícolas".
Os militares relatam, ainda, que diversos "estrangeiros presentes na região tentavam se esconder" quando eram vistos e dois brasileiros funcionários da ONG e identificados apenas como José Melo e Elissandra lhes negavam qualquer informação sobre o grupo. "Um nosso oficial conseguiu conversar com uma senhora francesa e, quando lhe perguntou como se sentia na condição de estrangeira em uma localidade tão inóspita, ela lhe respondeu que ali não era estrangeira, pois a região amazônica também era dela", descreve o informe secreto. Na frente da sede da ONG encontrava-se o logotipo da entidade e a bandeira da Comunidade Européia; não havia, no entanto, nenhuma bandeira do Brasil. Ao serem questionados, os funcionários da organização não-governamental responderam que não havia a bandeira nacional porque "o Brasil não ajuda em nada". Mais adiante, o documento diz: "No interior da casa de madeira foi observado um mapa do Brasil com a inscrição 'Brasil 500 anos... O Brasil que nós queremos são outros 500' e com o Brasil politicamente dividido sem a região Amazônica." Revoltados, os militares hastearam uma bandeira do Brasil na porta da entidade.
"É preciso haver uma triagem e saber exatamente quais os interesses que estão por trás dessas entidades. Há muita ONG picareta", afirma o coronel da reserva Geraldo Cavagnari, membro do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp. A Médecins du Monde é uma respeitada ONG e o informe secreto da Aeronáutica não prova que a entidade esteja cometendo atos ilegais no Brasil, mas não deixa de ser absurdo o fato de ela ostentar uma bandeira da Comunidade Européia em pleno território nacional

População dobra em dez anos

Há no Brasil 700 mil índios (0,4% da população brasileira), de acordo com o Censo de 2000 do IBGE, divididos em 215 etnias, com 180 línguas e dialetos. A taxa de crescimento, de 2,5% ao ano, é superior à da média do restante da população. Em 1990, os índios somavam 358 mil. Entre as causas do crescimento estão a melhoria nas suas condições de saúde e a aceleração dos processos de demarcação, que começou em 1967, mas se intensificou a partir da Constituição, em 1988. O processo, segundo a Funai, já está na sua etapa final: 86% das áreas já foram demarcadas. No seu artigo 231, a Constituição assegura o direito dos índios a terem a posse permanente e o usufruto das riquezas do solo, dos rios, dos lagos e das terras tradicionalmente ocupadas por eles. Mas os índios não são os donos porque as terras pertencem à União. O parágrafo terceiro - que ainda não foi regulamentado - estipula que o aproveitamento das riquezas dessas terras só pode ser efetuado com a autorização do Congresso, depois de ouvir as comunidades. A elas é assegurada a participação nos resultados das lavras das riquezas minerais. Teoricamente não há impedimento de entrada das Forças Armadas nas reservas indígenas, para defesa da soberania do País, como garante a Constituição. O Estatuto do Índio, de 1973, estipula que eles sejam tutelados pelo Estado até que se incorporem ao modo de vida da sociedade.

Isto É, 14/04/2004, p.71-74

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