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As raízes da devastação

OESP, Espaço Aberto, p. A2
Autor: NOVAES, Washington
03 de Set de 2004

As raízes da devastação

Washington Novaes

No mesmo dia em que a Agência Estado divulgava a notícia de que o Brasil vai entrar no Livro Guinness de Recordes em 2005 como o campeão do desmatamento, este jornal publicava reportagem do correspondente do New York Times segundo a qual perdemos para a Bolívia o posto de maiores exportadores de castanha-do-pará, com as vendas ao exterior caindo de 19 mil toneladas em 2000 para 7 mil em 2003. Uma das razões apontadas está no preço ínfimo pago pela família que monopoliza há um século o comércio da castanha na região de Marabá (PA), que é a maior produtora. Isso levou os coletores de castanha a vender ou arrendar suas terras a criadores de gado e madeireiras, "num processo que desflorestou vastas áreas da Amazônia e enriqueceu ainda mais a elite brasileira" (Estado, 27/8).
É um processo que vem de longe. E que soma muitas das causas que infelicitam a Amazônia - como o autor destas linhas pôde testemunhar muitas vezes, mas especialmente há dez anos, quando, a pedido do Unicef, fez, com mais dois consultores, uma avaliação de programas de desenvolvimento sustentável naquela região.
De Marabá, "capital" do Polígono dos Castanhais, a São Geraldo do Araguaia, 200 quilômetros adiante, só se via uma terra desmatada, arrasada, em que sobravam apenas as castanheiras, cuja derrubada era proibida por lei. Mas, isoladas, elas tinham a base do tronco queimada pelo fogo ateado aos pastos.
Apodreciam lentamente e caíam. Só restava intacta a área de reserva dos índios, cercada de ameaças.
Perto de São Geraldo do Araguaia se implantara - por temor do ressurgimento da guerrilha que ali se instalara na década de 1970 - um projeto de reforma agrária. Abertas as "linhas" (estradas) e demarcados os lotes, os assentados haviam sido abandonados à própria sorte - sem assistência técnica, sem crédito, sem equipamentos, sem transporte para a produção. Tinham de coletar castanhas e entregá-las ao único comprador - a empresa da família Mutran, que as exportava ou revendia no mercado externo. Num supermercado de Belém, custavam mil vezes mais (isso mesmo, mil vezes mais) do que era pago a quem coletava.
A situação era de desespero. Num final de tarde, de costas para os consultores que chegavam a seu lote, sem perceber sua entrada, um assentado, aos prantos, foice na mão extirpando todo o pequeno cafezal que plantara quatro anos antes, clamava aos céus: "Eu queria ser empresário, pagar imposto. Mas não tenho pra quem vender o café, não tenho jeito de levar pra lugar nenhum." E cortava os cafeeiros, para plantar pasto e arrendá-lo ao fazendeiro vizinho.
E assim era com praticamente todos os assentados. Derrubavam uma parte da mata para fazer a casa de palha, outra para plantar a "lavoura branca" (mandioca, arroz), outra ainda era entregue a madeireiras, para, depois de "limpa", arrendar ou vender o lote aos pecuaristas - e sair em busca de um novo pedaço de terra em assentamento, engrossando o "desmatamento itinerante", que respondeu durante anos por mais de 50% do desflorestamento total na Amazônia, até que se proibiram assentamentos em áreas de floresta primária (mas os lotes já ocupados ainda têm forte participação no processo de desmatamento, pois as condições não se alteraram muito).
Nesse quadro, os jovens tinham de sair em busca de outra ocupação - e quase só a encontravam nos garimpos que espalhavam mercúrio por grande parte da Amazônia. Não tinham qualificação para quase mais nada, depois de freqüentar escolas - como viram os consultores - em que as professoras não tinham sequer giz ou quadro negro para ensinar classes multisseriadas. Elas ganhavam em média US$ 8 (R$ 24 reais) por mês. Não podiam beneficiar-se de cursos de formação ministrados nas cidades próximas, porque precisavam caminhar a pé durante horas, mas não tinham onde hospedar-se nem onde comer.
Num projeto de desenvolvimento sustentável que pretendia usar energia solar para purificar água, transformando cloreto de sódio (sal de cozinha) em hipoclorito, os beneficiários não tinham dinheiro para comprar o sal. Como escreveu um dos consultores, teria sido mais prático comprar água sanitária para adicionar à água, o preço do equipamento daria para comprá-la durante mais de mil anos. Em outro projeto, os geradores a diesel ficavam parados porque os beneficiários da energia não tinham dinheiro para o óleo. Nem a prefeitura.
Outra parte do desmatamento se devia aos grandes projetos de reflorestamento (com incentivos fiscais), em que empresas do Sul primeiro desmatavam e vendiam a madeira por preço ínfimo para produzir ferro gusa destinado à exportação para países industrializados; depois, replantavam em monoculturas, com o mesmo objetivo.
Muitos jovens, com Serra Pelada esgotada e sem outra possibilidade, já estavam de volta. E, com eles, a aids, ameaçando o pequeno povoado de Nova Esperança (que nome!), sem água encanada, sem rede de esgotos, sem energia elétrica, sem médico, sem dentista, sem unidade de saúde. Bem perto de Curionópolis, assim chamada em homenagem ao coronel Sebastião Curió, líder dos garimpeiros egressos de Serra Pelada, quando esta esgotou as camadas acessíveis. Foi lá - e onde mais poderia ser? - o grande massacre de 1996.
Passada, entretanto, quase uma década, nada parece haver mudado. Como registrou a reportagem do dia 27, "o problema é que não há um único monitor para vigiar isso", disse um biólogo da Embrapa. "Assim, isso é um virtual convite à destruição." Mas não bastaria o monitoramento, seria preciso muito mais, políticas públicas adequadas e competentes.
Não apenas no Polígono dos Castanhais. Quem tem visitado lugares os mais diversos da Amazônia - mas principalmente as chamadas bordas, na divisa com Mato Grosso - volta impressionado com a devastação mais recente. Não por acaso, as queimadas deste ano estão sendo recordes.
Ou se consegue realmente fazer sentar à mesa todos os atores do drama amazônico - agricultores, pecuaristas, madeireiros, mineradores, juntamente com representantes do governo e da ciência -, como propôs a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), ou continuaremos seguindo em direção ao pior.
Não há tempo a perder.

Washington Novaes é jornalista

OESP, 03/09/2004, Espaço Aberto, p. A2

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