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Racismo e ciência

FSP - https://cienciafundamental.blogfolha.uol.com.br/
Autor: INGLEZ, Mariana
30 de Nov de 2020

Racismo e ciência - Ciência Fundamental

Por Mariana Inglez

O que temos feito para romper com o legado da justificativa "biológica" para a opressão?
*No artigo "O Escravo do Naturalista", publicado na revista "Ciência Hoje", Ildeu de Castro Moreira revela como importantes naturalistas que estiveram no Brasil no século XIX se beneficiaram do conhecimento de povos indígenas e de pessoas escravizadas para a coleta e identificação de espécies nativas. O próprio Museu Imperial de História Natural da época, por exemplo, teve sua coleção formada a partir do trabalho de pessoas escravizadas. Ao longo da minha formação, sempre fui uma das poucas biólogas negras da turma e não me lembro de aulas que revisassem esses episódios ou estimulassem uma reflexão sobre o tema.
Lideranças científicas fundadoras e proeminentes em antropologia física ou biológica, hoje minha área de atuação, usaram suas pesquisas e sua crença na superioridade de pessoas brancas europeias para justificar e fomentar políticas que resultaram em desigualdades e violências que se mantêm até hoje contra pessoas não brancas. Vale lembrar dos zoológicos humanos com exposições antropológicas, tanto para entretenimento do público quanto para interesses de pesquisadores. Espalhados sobretudo na Europa e nos Estados Unidos, e atuantes até o final dos anos 1950, esses zoológicos exploraram diferentes etnias indígenas, povos asiáticos e, mais frequentemente, povos africanos.
Foi só depois da Segunda Guerra Mundial que cientistas de diferentes áreas, e da antropologia física em especial, começaram a reavaliar as definições sobre "raças" humanas. A discussão continuou até 1996, quando a American Association of Physical Anthropologists (AAPA) produziu um documento definindo que todos os humanos pertencem a uma única espécie que não está estruturada em raças; que as diferenças entre populações resultam tanto de fatores hereditários quanto ambientais e sociais; que não existem evidências que provem a inferioridade ou superioridade de uma ou outra "raça"; finalmente, que todos os seres humanos têm o mesmo potencial para assimilar conhecimento e cultura, ou seja, não existem diferenças biológicas entre supostas raças que definam o potencial intelectual ou cultural de cada um.
Em junho deste ano, em resposta ao movimento Black Lives Matter, a mesma AAPA publicou carta em apoio às populações negras e indígenas. Enquanto cientistas dessa disciplina que forneceu uma justificativa "biológica" para o colonialismo, a escravidão e a opressão contínua, é importante que atuemos efetivamente para romper com este legado. Assim como no passado houve um movimento para que as esferas dominantes aderissem aos preceitos da comunidade científica da época, hoje precisamos nos engajar contra o racismo e seus impactos na sociedade.
Acredito que a produção científica em geral deva ser mais autocrítica e comprometida com pautas sócio-raciais, já que reconhecer diferentes vozes é uma maneira de restituir autoridade a minorias discriminadas. Enquanto não existir diversidade, não seremos capazes sequer de identificar as desigualdades e atuar para resolução de problemas delas decorrentes.
Esse artigo é um chamado à reflexão e à ação, em especial aos pares brancos que seguem maioria em todas as ciências acadêmicas. O que tem sido feito para impulsionar a inclusão racial, valorizar a diversidade e promover os direitos humanos? Estamos tentando tornar nossos campos de estudo mais diversos e descolonizar os saberes dentro da universidade?
Mais do que estudar a variação e a biologia em nossa espécie, precisamos movimentar as estruturas internas do próprio fazer científico nacional, ampliando o diálogo com públicos mais diversos e apoiando as pautas de inclusão racial.
Mariana Inglez é doutoranda no Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva (LAAAE), no Instituto de Biociências (USP), e coordenadora do projeto de divulgação científica "Evolução para Todes".

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