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Quilombolas x Vale

CB, Brasil, p. 10
30 de Jan de 2007

Quilombolas x Vale
Destruição de torre de linha de transmissão construída por mineradora em terras dos remanescentes de escravos aumenta tensão. Comunidade reclama do baixo valor das indenizações pagas pela empresa

Hércules Barros
Da equipe do Correio

Comunidades remanescentes de quilombos do Pará estão em pé de guerra com a mineradora Vale do Rio Doce. Desde dezembro do ano passado, cerca de 300 quilombolas mantêm bloqueada uma estrada de acesso ao canteiro de obras da empresa na comunidade de Santa Maria de Tracuateua, no município de Moju, a 82km de Belém. Na última sexta-feira, a Comarca de Castanhal (PA) concedeu liminar de reintegração dos bens à empresa. O comando da Polícia Militar, que faria cumprir a ordem judicial, recuou a pedido da Casa Civil do governo estadual. O clima na região é tenso.

Os quilombolas garantem que vão resistir a qualquer tentativa de desocupação. Sem solução para o impasse, o Ministério Público do Pará chamou a empresa e representantes da comunidade para uma rodada de negociação hoje. A Vale vai tentar um acordo com os descendentes de escravos. O advogado das comunidades quilombolas diz que o grupo não acredita mais nas promessas da mineradora. "Eles bloquearam a estrada porque não confiam na Justiça. A intenção dos quilombolas é levar o caso para Brasília", afirma o advogado Ismael Antônio de Moraes. A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial desconhecia o caso. O Departamento de Regularização Fundiária do órgão federal tomou conhecimento do conflito por intermédio do Correio.

A ação dos quilombolas tem mais de dois meses. A represália é contra um suposto descumprimento pela Vale do acordo fechado com as comunidades locais ainda no ano passado. O atraso na finalização de obras de infra-estrutura prometidas pela mineradora para novembro irritou o grupo. Líderes da comunidade derrubaram uma torre de linha de transmissão de energia da empresa e bloquearam a estrada de acesso ao mineroduto, localizado nas terras do quilombo.

"Temos o direito de passagem (do mineroduto) legalizado e licença para a instalação das torres e operação de transmissão", adverte o diretor do Departamento de Projetos Institucionais e Estratégicos da Vale, Walter Cover. A linha de transmissão está em construção desde 2005. A tubulação de bauxita começou em 2000 e foi finalizada em 2004.

Benfeitorias
A empresa havia se comprometido a construir uma casa comunitária e um posto de saúde, recuperar 33km de estrada que cortam as terras quilombolas e reformar duas pontes. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Pará, que vem intermediando os entendimentos entre as partes desde 2005, as obras seriam feitas para compensar os danos ambientais, sociais e econômicos provocados pelos empreendimentos da companhia. De acordo com o padre Sérgio Tonetto, coordenador da CPT na região, um primeiro termo de compromisso foi assinado em 23 de fevereiro, após 14 horas de negociação, mas que havia sido precedida por um confronto. "Ficaram detidos três técnicos e um diretor da empresa, além de quatro técnicos do governo estadual", afirma.

Passado o prazo de finalização das obras, um termo de ajustamento foi assinado em outubro, na presença do Ministério Público em Moju. O acordo obrigava a Vale e a prefeitura do município a entregar as obras em condições de funcionamento até 20 de novembro, com água e energia elétrica. "O pagamento de uma multa diária de R$ 5 mil por não cumprimento dos prazos pactuados até hoje vem sendo descumprido", ressalta o padre.

A "dívida" por atraso nas obras é confirmada pelo coordenador jurídico da Vale, Gerson Rego, que contabiliza um débito total de R$ 250 mil. Ele assegura, contudo, que o clima é de negociação e o montante será barganhado na reunião marcada para hoje. "Vamos discutir a multa e apresentar o prejuízo de R$ 343 mil com a derrubada da torre de transmissão de energia", destaca. Rego garante que as terras por onde passam os 245km de mineroduto foram desapropriadas. "Eles (quilombolas) e todos os agricultores afetados foram indenizados", ressalta. Em Moju, a Vale diz ter pago R$ 500 mil de indenização a cerca de 40 beneficiários.

As comunidades de quilombolas dizem ter recebido de indenização valores menores. Alegam que as famílias atingidas diretamente pela passagem do mineroduto de bauxita receberam valores entre R$ 100 e R$ 9 mil. Pela passagem da linha de transmissão os valores da indenização, segundo a Pastoral da Terra, ficaram entre R$ 700 e R$ 15 mil. "Todas as 14 comunidades quilombolas do território do Jambuaçu foram atingidas pelo projeto da Vale", ressalta padre Sérgio Tonetto.

De acordo com a CPT, depois das obras da Vale houve danos ambientais na região. O mais grave teria sido o assoreamento dos igarapés que fazem parte da bacia do Jambuaçu e do próprio rio, com a mexida de terra na colocação dos tubos e da passagem da linha de transmissão. "A Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Tecnologia reconhece que pelo menos 150 castanheiras produtivas foram abatidas e outras estão prestes a cair porque suas raízes foram atingidas pelas escavações", ressalta. Dados fundiários das associações quilombolas da região dão conta de 674 famílias afetadas pelo empreendimento da Vale.

Outra briga é com índios

Os quilombolas não são os únicos a se desentender com a Vale do Rio Doce no Pará. Índios xicrins também vivem um impasse com a mineradora. Em outubro, cerca de 150 índios das aldeias Cateté e Djudjêkô invadiram as instalações da empresa em Carajás. A ação paralisou a produção de minério de ferro por dois dias. A Vale anunciou prejuízo de US$ 10 milhões e decidiu cessar o repasse anual de R$ 9 milhões de um convênio com a Associação Indígena Bep-Noi, dando início a uma batalha judicial.

A Funai e o Ministério Público no Pará intervieram e a Vale perdeu o primeiro round na Justiça. Teve de voltar com o benefício. O repasse é feito em conta judicial e, para ter acesso ao dinheiro, os índios precisam prestar contas. Apesar de se tratar de decisões liminares de primeira e segunda instância, a mineradora levou o caso à Organização dos Estados Americanos (OEA). Denúncia apresentada pelo advogado Hélio Bicudo, em nome da Fundação Interamericana de Direitos Humanos, alega que o governo Lula não tem uma política indigenista. A expectativa da companhia é que o governo federal faça uma proposta adequada. Caso isso não ocorra, até fevereiro de 2008 a OEA deverá tomar uma decisão.

Atendendo à decisão da Justiça, a Vale voltou a pagar indenização aos índios. R$ 569 mil foi o valor do depósito em juízo, baseado em despesas apresentadas pela Funai, a partir de informações da comunidade. No entanto, a companhia esclarece que a justiça só repassou aos xicrins R$ 300 mil, porque teriam sido consideradas pela Justiça apenas despesas com saúde, educação, atividades produtivas, vigilância e administração.

"A denúncia da mineradora na OEA é cínica", avalia o advogado Jorge Luís Ribeiro dos Santos. Representante da associação indígena Bep-Noi, Santos ressalta que o governo brasileiro não tem dado assistência ideal aos índios como deveria, mas a Vale também não tem cumprido com a obrigação de mitigar os impactos de extração mineral na região. "A empresa não assumiu seus compromissos", reclama.

A decisão de levar o problema para a esfera internacional irritou o presidente da Funai, Mércio Pereira Gomes. Ontem, Gomes esteve reunido com os xicrins, no Pará, para explicar a atuação do órgão. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA deve realizar no próximo mês uma audiência temática e convocar a Funai, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a fundação presidida por Bicudo e representantes indígenas. A mineradora não deverá ser chamada a se pronunciar. A partir da audiência, deverão ser levantados casos específicos de violação aos direitos indígenas. (HB)

CB, 30/01/2007, Brasil, p. 10

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