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Quem regula nosso território?

Valor Econômico, Opinião, p. A13
Autor: UGEDA, Luiz
13 de Nov de 2017

Quem regula nosso território?

Luiz Ugeda

Há quase cem anos, o filósofo espanhol Ortega y Gasset escrevia a obra "Espanha Invertebrada". Mostrava como se desarticula um território nacional e se desconstrói um país por meio dos particularismos. Para o filósofo, uma nação se faz com regras, não exceções. E quando o assunto é território, a regra básica é a construção de um grande mapa público, atualizado, interoperável e aberto a todos.
O conceito é simples: um país que não se enxerga não existe. Dom Pedro I dizia que, para se conhecer, o brasileiro primeiro precisava saber onde poderia exercer o seu direito de ir e vir. Por isso criou as condições para litografar mapas em 1831, a preços módicos. Mas o mundo mudou. Para o Comitê Geoespacial da ONU, os países serão, neste século, mais reguladores e menos produtores de mapas, os quais, por sua vez, terão importância análoga à energia elétrica no século XX.
Nesse sentido, é natural que exista hoje uma corrida da iniciativa privada para o provimento de sistemas de mapeamento. Segundo o Goldman Sachs, o mercado de mapeamento para carros autônomos, por exemplo, deverá bater US$ 25 bilhões em 2040. Em um mundo em que os países se dividirão entre os que programam e os que são programados, União Europeia, Rússia e China têm investido grandes somas para criar um sistema alternativo ao GPS americano.
Diversos países têm criado autarquias para regular o seu território. Em regra, armazenar e manter dados geográficos são atividades reguladas por lei. Os usuários são obrigados a comunicar informações cartográficas incorretas aos produtores dos mapas, e há, ainda, uma política rigorosa de garantia da qualidade. Na Holanda, cuja extensão territorial é pouco menor do que o Rio de Janeiro, os registros chegam a escalas detalhistas, de até 1:500, e o setor de geoinformação gera cerca de 1,5 bilhão de euros por ano e emprega 15 mil pessoas.
Para citar um exemplo mais próximo, na Colômbia, o Instituto Geográfico Agustin Codazzi (Igac) é a entidade responsável pela produção do mapa oficial e mapeamento básico do país. Desenvolve o cadastro nacional de imóveis; o inventário das características dos solos; dá suporte à pesquisa geográfica de avanço e desenvolvimento do território; coordena a infraestrutura de dados espaciais, entre outros.
Este é o principal trunfo para que os colombianos tivessem êxito na sua política de desenvolvimento de cidades inteligentes. Partiram de mapas públicos.
No Brasil, o retrocesso nessa área vem de décadas. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), criado em 1938 como autarquia e, portanto, com capacidade regulatória, foi transformado em fundação em 1967, desabilitado de seu poder pelo Regime Militar. A regulação territorial, que estabeleceu tantos marcos no país, como na transferência da capital para o planalto central, deixou de existir há mais de 50 anos. Se estávamos na vanguarda mundial na década de 1930, hoje somos vistos pelo retrovisor: nossa política setorial se equipara à de alguns países subsaarianos, em que há receita para implementar uma infraestrutura de dados espaciais, mas não existe interesse político ou econômico.
Os particularismos sempre venceram no Brasil. Grilagem, favelas, deficiências nas demarcações de áreas ambientais, terras indígenas ou quilombolas são faces de um mesmo processo: a incapacidade de criar e operar uma regra em nosso ordenamento territorial, com mapas confiáveis, atualizados, oficiais e interoperáveis como política pública.
As consequências dessa desarticulação são abundantes. Até hoje, não conseguimos cobrir o território nacional com mapeamentos na escala 1:100.000 - mínima requerida para o planejamento territorial. O Brasil tem uma das maiores sobreposições de títulos de propriedade do mundo. Nos cartórios, somos 10% maior do que na realidade - um Estado de Minas Gerais a mais. No Cadastro Ambiental Rural (CAR), instrumento criado para regularizar as propriedades rurais de acordo com o Código Florestal (2012), diversas regiões apresentam sobre cadastramentos. E, ainda, órgãos públicos se utilizam de mapas privados para desenvolver suas políticas públicas, como exemplifica o ajuste da cobrança do IPTU por imagens espaciais, em um evidente descumprimento da Constituição, que atribui à União competência para criar uma geografia e cartografia oficiais.
Na ausência do Estado, quem suporta as políticas públicas territoriais do Brasil são basicamente as imagens armazenadas no Vale do Silício. É um problema de soberania, como se nossos ossos estivessem expostos para estudo científico no exterior. Como a sociedade brasileira irá, de fato, regular as informações do seu território obtidas por empresas estrangeiras? Como deve ser sua aplicação para finalidade pública? A que custo?
O fato é que não existem redes, cidades ou territórios inteligentes sem mapas públicos. A globalização utiliza-se dos mapas para o fortalecimento de seus valores, mas alguns países, como o Brasil, ainda não sabem como aplicá-los para a promoção de cidadania. Entendem que, para isso, basta lançar licitações no mercado para a compra de mapas pontuais, atendendo a particularismos de ocasião.
Como países mundo afora têm feito, inclusive nossos vizinhos, como o Uruguai, é preciso discutirmos a concepção de um órgão público que regule o território e estruture uma geografia e cartografia oficiais para o país. Por exemplo, uma agência reguladora. Se isso não ocorrer, seguiremos discutindo integração nacional no escuro e criando redes, cidades e territórios "inteligentes" sob plataformas analógicas. Se não deixarmos os particularismos de lado, seguiremos como nação invertebrada, como já indicava, lá atrás, Ortega y Gasset. Está na hora.

Luiz Ugeda é advogado e geógrafo, presidente da Geodireito e autor do livro Direito Administrativo Geográfico - Fundamentos na Geografia e na Cartografia oficial do Brasil, de 2017.

Valor Econômico, 13/11/2017, Opinião, p. A13

http://www.valor.com.br/opiniao/5191199/quem-regula-nosso-territorio#

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