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Quem paga a conta das mudanças climáticas?

ISA- https://www.socioambiental.org
Autor: Ines Zanchetta
24 de Ago de 2016

Com menos recursos para comprar insumos, os quilombolas, assim como os demais pequenos agricultores, são os mais prejudicados, os que pagam a conta com o atraso nos plantios, as colheitas menores e incertezas quanto ao futuro por conta das mudanças climáticas. O excesso de chuvas, as altas temperaturas e até geadas, pouco comuns nessa região de Eldorado, sul do Estado de São Paulo, estão atrasando o início dos plantios. E também das colheitas, que estão encolhendo. Havia mês certo para plantar, para colher. Agora a natureza mudou e o jeito de trabalhar também teve de mudar. Os quilombolas que vivem nesse pedaço da Mata Atlântica não conseguem mais saber quando é tempo do frio ou do calor no Vale do Ribeira.

Essas constatações foram comuns nos relatos dos quilombolas durante encontro realizado em Eldorado, no dia 19 de agosto, com a participação de representantes de 23 comunidades. Para quem vive em harmonia com a natureza e dela depende para viver, as mudanças climáticas e seus impactos na agricultura tradicional já estão sendo sentidas. Os relatos foram feitos durante o seminário "Agricultura Tradicional e Mudanças Climáticas", a uma plateia de mais de 100 pessoas, promovido pelas Associações Quilombolas, pelo ISA e parceiros que atuam na região. O evento precedeu a realização da nona edição da Feira de Trocas de Sementes e Mudas dos quilombolas do Vale do Ribeira.

"Antigamente, a gente plantava um litro de feijão e colhia 40 litros. Hoje, com um litro, se Deus ajudar, colhemos 20", contou Vandir Rodrigues, do quilombo de Ivaporunduva. "O rico tem como fazer muda em laboratório, comprar semente transgênica, mas nós não. Vamos passar fome e com a gente os brasileiros, porque somos nós que produzimos a comida que vai para a mesa dos brasileiros".

O grande desafio da humanidade

Outra constatação é a diminuição das frutas na mata por conta da confusão do clima. Assim, os quilombolas precisam dividir a produção das roças com os bichos porque a quantidade de alimento da mata já não é mais suficiente para todos. A revolta do clima tem produzido fatos antes desconhecidos dos quilombolas.

"Sempre plantamos feijão e arroz em julho e agosto. Agora não dá mais", relatou Benedito Alves da Silva, o Ditão, liderança do quilombo de Ivaporunduva. "Sei que teve gente que plantou arroz em fevereiro e deu, o que não é comum". Mesmo os quilombolas que vivem da produção de ostras em Cananeia, no litoral do Vale do Ribeira, têm histórias para contar, experiências que nunca viveram antes e que atribuem às mudanças climáticas.

De fato, ninguém mais tem dúvidas de que o clima mudou. "É o maior desafio que a humanidade terá de enfrentar neste século. O que está em questão é o aumento progressivo da temperatura", afirmou o sócio fundador do ISA, Márcio Santilli. Ele explicou que esse aumento da temperatura é consequência direta da poluição que as pessoas jogam na atmosfera, principalmente causadas pelos combustíveis fósseis, como o petróleo e também provocado pelo desmatamento. Daí a necessidade urgente de falar sobre o assunto e propor ações que contribuam para a queda das temperaturas. Uma delas é trabalhar para a que a temperatura não aumente 1,5o, recomendação do documento final Acordo do Clima de Paris, assinado por 195 países no final de 2015.

Entre as metas que o Brasil se comprometeu a cumprir quando assinou o Acordo do Clima de Paris, no final de 2015, está a recuperação de 12 milhões de hectares de áreas degradadas até 2030. "Se dependesse do cultivo dos quilombolas, não haveria desmatamento", cravou Suzana Maria Pereira de Brito, uma das coordenadoras da Associação do Quilombo Morro Seco. E alertou que algumas comunidades vêm utilizando produtos químicos nas roças. "Usam porque acham que a terra está fraca, está cansada. Mas não é isso. A gente tem de saber trabalhar corretamente", rebateu.

Agrobiodiversidade fortalecida

Uma questão relevante lembrada nos depoimentos dos quilombolas foi em relação às nascentes. Antes abundantes em várias comunidades, agora estão diminuindo. Preocupante. Daí a importância de fortalecer os conhecimentos tradicionais das comunidades em relação às roças, de resgatar sementes e mudas, de promover e fortalecer a agrobiodiversidade. Quanto maior a variedade de sementes plantadas, maior a segurança alimentar e a qualidade de vida das comunidades.

"Embora as comunidades sejam muito afetadas pelo clima, são elas que conservam e levam adiante essa agrobiodiversidade", afirmou a agrônoma Patricia Bustamante, da Embrapa Silvipastoril, que fez uma palestra aos quilombolas. "É com a agricultura tradicional que está a diversidade e ela está com as comunidades tradicionais". Por isso, o reconhecimento dos sistemas agrícolas tradicionais são fundamentais para fortalecer a agrobiodiversidade e as comunidades.

Vale lembrar que o sistema agrícola quilombola do Vale do Ribeira está em processo de reconhecimento pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pode se tornar patrimônio cultural brasileiro.

Embora os relatos dos quilombolas sejam perturbadores, há quem ainda acredite que nem tudo está perdido, como o sr. Benedito de Paula Moura, do quilombo Cedro. "É o desmatamento, a poluição, o fogo nas florestas, é o agrotóxico que traz morte e doença. Mas acho que o mundo ainda tem jeito de consertar. Precisamos de políticas públicas para limpar os rios, as praias".

Além dos debates, aconteceram três oficinas diferentes: uma para os jovens, outra sobre sementes e a de culinária, com a colaboração da equipe do Slow Food, que fez sucesso com pratos tradicionais da cultura quilombola como bolo de cará espinho, roda de forno, refogado de pupunha, caponada de coração de banana. A oficina dos jovens terminou com uma carta onde eles reivindicam uma formação de professores específica, para que os quilombolas tenham uma educação diferenciada, que valorize o trabalho nas roças, parte de sua cultura. E solicitam às autoridades governamentais que continuem os programas de aquisição de alimentos e de merenda escolar que geram renda para as comunidades.

Feira 2016 trouxe 130 variedades de sementes e mudas

Carás, inhames, mudas de coração magoado ou batata doce, como é mais conhecido, um café da manhã reforçado com pratos feitos com produtos das roças, como cuscuz de arroz, bolo de mandioca, beiju com amendoim e outras delícias animaram a manhã fria e garoenta que tomou conta de Eldorado no sábado, dia 20. Mesmo assim, o pessoal não desanimou. Armou suas barraquinhas e fez a delícia dos visitantes que por lá passaram. Taioba, banana chips, farinha de mandioca, bolo de roda, rapadura, mel e outras guloseimas estavam à venda ao lado das mudas e sementes. O grupo de Capoeira Bernardo Furquim, de São Pedro, fez uma apresentação da luta, o grupo do quilombo Sapatu apresentou a tradicional dança da Nhá Maruca, todos muito aplaudidos. A feira encerrou-se com um grande almoço comunitário no salão paroquial da Igreja Nossa Senhora da Guia, feito com produtos doados pelos quilombolas.

Sementes de ostras

Francisco Salles Coutinho, o Chico Mandira, líder do quilombo de Mandira, em Cananeia, litoral do Vale do Ribeira, se criou na agricultura. Mas na década de 1970 o quilombo migrou para a criação de ostras. Ele conta que são notórios os fenômenos da natureza que estão ocorrendo em função das mudanças climáticas. "As ostras estão sofrendo com pragas", conta. "As cracas colam nas conchas. Elas sempre existiram, mas agora a quantidade de mexilhões grudados é muito grande. Quando a gente tira tudo o que sobra é uma ostra menor, que não cresceu como crescia antes". Chico nunca tinha visto nada parecido. E ele está no viveiro desde 1978. "Nessa época, julho, agosto, deveriam aparecer os robalos, mas não apareceram". Ele atribui essas alterações às altas temperaturas e ao excesso de chuvas na região. "Este ano, principalmente, não houve desova de ostras, enquanto que a de mexilhões aumentou". Ninguém sabe explicar por quê.

A produção no quilombo que girava em torno de 450 a 500 dúzias de ostras por semana até o ano passado, agora devem estar em torno de 150. Redução drástica com forte impacto na renda da comunidade. "Será que vamos ter de fazer sementes de ostra pra gente se manter?", pergunta Chico. E acrescenta que o mangue está coberto de lama preta, que não existia ali antes. "Essa lama deve estar atrapalhando o desenvolvimento das ostras", acredita. Por outro lado, a água, cuja análise é feita regularmente pela Cetesb, não está contaminada. Para tentar resolver o problema os quilombolas estão pleiteando junto à Defensoria Pública que a Secretaria Estadual de Agricultura faça um estudo mais detalhado para diagnosticar as causas desse transtorno e encontrar as soluções.

https://www.socioambiental.org/pt-br/noticias-socioambientais/quem-paga…

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