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Quarup o adeus aos mortos

CB, Caderno C, p.1
22 de Ago de 2004

Manifestação cultural dos povos indígenas do Alto Xingu é a maior reverência dos vivos aos mortos
Quarup o adeus aos mortos

Dad Squarisi
Enviada especial

Era uma vez um pajé poderoso. Chamava-se Mavutsinin. Como todos os pajés, conhecia muitas magias. Um dia lhe pediram que ressuscitasse seis mortos. Ele concordou. Mas impôs uma condição. Ninguém poderia manter relações sexuais durante aquela noite. Aceita a exigência, ele pôs mãos à obra.

Escolheu quatro troncos escuros e dois claros. Levou-os para o centro da aldeia. Lá, enfeitou-os com penachos, colares, fios de algodão, braçadeiras de penas de arara. Chamou dois sapos cururus e duas cutias para cantar junto deles. Índios entoavam mantras em frente às toras chamando-as à vida.

Mavutsinin transformaria as ex-árvores em seres humanos. As escuras seriam os homens. As claras, as mulheres. Na noite do dia seguinte, as toras começaram a se mexer. Os braços cresceram. Uma das pernas criou carne. 0 peito apareceu. A cabeça também. Ao meio-dia, eram mais gente que madeira. 0 pajé chamou os moradores para ver a obra.

Um deles havia mantido relações sexuais com a parceira. Sem conter a curiosidade, deu uma espiadinha no milagre da ressurreição. Na mesma hora, os troncos ficaram paralisados. Voltaram a ser paus. Mavutsinin desistiu do propósito. Jogou-os na água.

Desde então, os mortos permanecem mortos. Parentes e amigos guardam luto. Mas, no fim da estação das chuvas em Mato Grosso - entre julho e setembro -, índios da região homenageiam seus finados ilustres. São, em geral, caciques, pajés, grandes guerreiros ou pessoas de suma importância para a comunidade.

Reproduzem, então, o ritual de Mavutsinin. É o Quarup. 0 nome pertence à família de quarar. Significa expor ao sol. Troncos - tantos quantos forem os mortos merecedores da saudação - são levados para o meio da aldeia. Enquanto são decorados, um grupo dança em torno deles e outro se reveza a entoar cânticos cerimoniais.

Os parentes escolhem o local onde os troncos serão fincados - sempre em frente à oca dos homens. As mulheres, sem vez nos preparativos, ficam no interior das malocas. Só deixam a casa quando os índios dão um grande grito. E o sinal para que elas saiam e levem adornos que seus ascendentes ou descendentes usavam em vida- plumas, colares, braçadeiras.

Em torno dos troncos, que simbolizam quem partiu, elas emitem lamentações sem cessar. São mantras entoados o dia inteiro e a noite inteira. Só cessam ao amanhecer. É quando entram na aldeia os convidados para participar do torneio da ressurreição. A partir desse momento, é proibido chorar.

Os reclusos - rapazes e moças que, ao chegar à adolescência são presos em cubículos para aprender os afazeres da vida adulta - ganham a liberdade. Interdições são levantadas e permissões outorgadas. Quem quiser pode se casar. O luto termina. O status definitivo é afirmado àqueles cujo falecimento se honra.

A festa

O Quarup manifestação cultural dos povos indígenas do Alto Xingu, constitui a mais alta homenagem prestada aos que se foram e deixaram herança marcante na caminhada pela Terra. São oito tribos -Calapalo, Matipu, Nafucuá, Cuicuro, Aveti, Camaiurá, Meinaco e Iavalapiti.

Todas promovem a cerimônia individualmente. Quando marca a data, o cacique convida as demais etnias para participar do ritual. Às vezes, as cinco do Médio e Baixo Xingu também são chamadas. (Há quem diga que a festa fez que muitos desses índios, outrora inimigos, convivam hoje pacificamente no Parque do Xingu.)

No fim de semana passada, o palco da celebração foi aldeia Caiamurá. Cinco mortos receberam a honraria - quatro índios e o jornalista Roberto Marinho. Há apenas quatro anos não-índios passaram a merecer o culto. O antropólogo Darcy Ribeiro e os sertanistas Orlando e Cláudio Villas Bôas foram os primeiros.

Os convidados chegam no sábado - a pé, de bicicleta, de carona em carrocerias de caminhão. Estacionam nas árvores, onde amarram as redes, não raro uma em cima da outra. Para esquentar- a temperatura pode cair a cinco graus - acendem fogueiras. Os anfitriões lhes oferecem comida - beiju e peixe assado. No dia seguinte, às 5h, homens, mulheres e crianças mergulham na lagoa para o banho.

Lá pelas sete, os convidados entram no pátio da celebração. Nus e pintados, cerca de 600 guerreiros ostentam os mais belos adornos. São os mais fortes e valentes das várias etnias. Passaram a noite em claro porque acreditam que, se sonharem, perderão a luta. ;Os homens ficam no centro do terreno. As mulheres, no canto. O dono da festa chama seus lutadores.

Eles se colocam de joelhos com as mãos no chão, ,,em frente ao grupo a ser desafiado. Huca huca parece luta livre. De início, se desenvolve individualmente. ,Quando os homens se defrontam, começa o combate entre os rapazes que saíram da reclusão e enfrentam o confronto pela primeira vez.

A disputa termina quando um deles consegue pegar a parte posterior da coxa do adversário. Depois, tocadores de flauta indicam que o Quarup vai chegando ao fim. Os convidados recebem um cesto com peixe e se vão. Os troncos ganham a água. A alma, o céu.

A jornalista viajou a convite da Funai

CB, 22/08/2004, Caderno C, p. 1

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