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Quando Tupã é levado ao Calvário

Gazeta do Povo-Curitiba-PR
Autor: LUÍS HENRIQUE PELLANDA
16 de Fev de 2002

Campanha da Fraternidade tenta redimir os erros da catequização

Teodoro Sampaio fez-nos o santo favor de registrar que, até o começo do século 18, "a proporção entre as duas línguas faladas na colônia era mais ou menos de três para um, do tupi para o português". Quase um idioma oficial, o dos índios brasileiros, preferido até por boa parte dos invasores brancos. Esse fenômeno de carisma lingüístico foi também documentado pelo padre Antônio Vieira. Escrevia ele que, em meados de 1600, falava-se o tupi perfeita e naturalmente pelo país todo, enquanto que o português apenas "estudava-se". Era elemento cultural necessário - mas secundário. Já o nhengatu, musical e insolente, soava mais bonito na boca e na opinião do povo. Câmara Cascudo definiu-lhe a sonoridade com um adjetivo escolhido a dedo: "dúctil".

Conta-se que somente em 1755 a língua portuguesa partiu para a conquista popular. E isso devido a sabe-se lá quantos e que decretos e campanhas. O Brasil era inegavelmente indígena: em 1500, de cinco a seis milhões de nativos espalhavam-se pelo território nacional, divididos em 970 etnias distintas. Um grande contingente a ser catequizado, portanto. Os jesuítas empolgaram-se, então, com a possibilidade abençoada de erigir no Pindorama uma nova sociedade baseada em valores puramente cristãos, de homens ainda distantes da contaminação civilizatória.

Engendrou-se, assim, um plano ousado de evangelização. A maioria entre a indiarada brasileira cultuava, como força criadora de tudo, uma entidade de poderes assombrosos, Jurupari, deus de amplos alcances dentro da cosmogonia ameríndia. Os missionários logo trataram de relacioná-lo com o diabo bíblico, sobrecarregando de angústia o séquito de seus admiradores. Porém, havia ainda a necessidade urgente de se encontrar um deus que correspondesse a Javé. Os padres iniciaram, sem demora, um trabalho pesado de garimpagem pelo Olimpo dos tupis. Enfim, desenterraram uma divindade quase esquecida pelos índios, um deus menor, sem representação alguma. Era Tupã: deidade que a Companhia de Jesus moldou como quis, recheando-a com as características do Todo-Poderoso hebraico. Grosseiramente, pode-se entender que o famoso Tupã, unificador das crenças INDÍGENAS brasileiras, seria apenas a adaptação de antigos ideais católicos. Começava o processo de perda de identidade cultural dos nativos.

Houve quem tenha ido além nas artes da catequese. O padre José de Anchieta presenteou os índios com belíssimas peças e poesias, compostas em tupi fluente e encantador, repletas da mais irresistível propaganda religiosa. No auto "Na Aldeia de Guaraparim", por exemplo, Anchieta põe na boca do demônio Guairaxó um discurso em que o inferno assume e defende a prática de costumes INDÍGENAS milenares. Hoje, por mais que se considerem positivos os esforços jesuíticos em preservar, nas reduções, a vida e certos aspectos culturais dos ameríndios, não se ignora que a catequização forçada de tantos povos enfraqueceu-lhes a identidade e a auto-estima, facilitando a aproximação dos agentes exterminadores.

A Igreja parece, finalmente, admitir a sua parcela de culpa nessa história toda. E tenta redimir-se de alguma forma. A Campanha da Fraternidade 2002, "Por uma Terra sem Males", traz, em seu texto de apresentação oficial, uma espécie de pedido de desculpas. Exige dos fiéis a erradicação do preconceito, e, do governo federal, a demarcação imediata de terras e a aprovação de um estatuto para os povos indígenas, envolvendo questões de meio ambiente, saúde, educação, desnutrição e miséria. De modo surpreendente, a CF prega que, dos índios, "vêm a boa nova, as experiências concretas de partilha, os valores evangélicos".

As seitas predatórias

Atualmente, as comunidades INDÍGENAS ainda sofrem com o problema religioso, causador de segregação e, em casos mais extremos, ondas de suicídio. No Mato Grosso, segundo o indigenista Edívio Battistelli, aproximadamente 100 adolescentes caiuás enforcam-se por ano, atormentados por crises de identidade espiritual. Marcolino da Silva, cacique dos guaranis da aldeia Karuguá, em Piraquara, conta que sua tribo abandonou a reserva de Mangueirinha, no interior do Paraná, devido à afluência incontrolável de seitas fanáticas e predatórias que cercaram seu acampamento. Na catedral de Curitiba, durante a missa de lançamento da CF, na quinta-feira, Marcolino frisava que, em sua tribo, não há católicos nem leitores do Evangelho. Os 56 moradores de Karuguá adoram uma divindade chamada Nhanderu, criador do céu e da terra. Quando rezam, cantam, dançam e acendem cachimbos. E só. Marcolino sorri, tranqüilo, ao lembrar que, por enquanto, não está percebendo, na Igreja Católica, quaisquer ânsias tardias de conversão.

Battistelli, no entanto, também assessor especial para assuntos INDÍGENAS do Paraná, diz que as principais causas da tragédia do nativo brasileiro são as questões fundiária e habitacional. "No Brasil, produzir era a regra. Os índios seriam um estorvo ao desenvolvimento", esclarece. No sul do país, a imigração de europeus agricultores só fez piorar a situação, diminuindo o espaço para as reservas e desencadeando peregrinações desordenadas. Depois de 25 anos de indigenismo, Battistelli identifica rapidamente os pontos nevrálgicos das comunidades que atende. "Índios são imediatistas, não poupam, não conhecem o hábito. E, passados 500 anos de contato, a sociedade continua tentando fazê-los assimilar um regime de capital. Logo eles, que representam o segmento mais pobre dos pobres." A nova ordem indigenista, portanto, passa longe das políticas integracionistas do passado.

Quanto aos motivos da morosidade e do descaso políticos e judiciários que parecem reger a questão indígena, pode-se apenas especular. De acordo com Battistelli, dos 11 mil índios paranaenses que ainda resistem ao extermínio, apenas 5 mil têm título de eleitor. Talvez seja uma pista.

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