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Quando a transparência é geneticamente modificada

Valor Econômico, Opinião, p. A12
Autor: CORRÊA, Izabela
02 de Jul de 2015

Quando a transparência é geneticamente modificada
Produtos modificados em menos de 1% de sua composição aparecerão como iguais a produtos não modificados

Izabela Corrêa

Aprovada na Câmara em mais uma votação que dividiu PT e PMDB, a proposta de alteração da Lei da Biossegurança mina a transparência da informação sobre produtos modificados geneticamente, ao trocar o símbolo "T" dos rótulos dos alimentos por "contém transgênico", em letra, tamanho e local indefinidos, exigível apenas para os produtos em que a substância supere 1% da composição.
O autor do texto, deputado Luís Carlos Heinze (PP-RS), alegou que o consumidor não conhece o significado do símbolo "T". Se mais sinceros ou menos preocupados com a opinião pública, os demais deputados que apoiaram a proposta não demonstraram qualquer apreço à transparência ou aos consumidores. No mês seguinte ao trimestre em que o Brasil registrou queda pontual de aproximadamente 47% na exportação da soja para China em relação ao mesmo período de 2014, tornou-se urgente garantir também o mercado interno para venda dos transgênicos. "Nós não podemos, nós mesmos, criar obstáculos para o consumo dos nossos produtos. O agronegócio é que alimenta o país", argumentou o deputado Valdir Colatto (PMDB-SC), relator da matéria na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio.
O Brasil é o segundo maior produtor mundial de produtos geneticamente modificados, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Em 2014, eram mais de 42 milhões de hectares dedicados à produção de transgênicos no Brasil - nos EUA era de mais de 73 milhões. Na sequência estava a Argentina, com 24,3 milhões de hectares, seguida da Índia e Canadá, com 11,6 milhões cada. O produto transgênico mais produzido no Brasil é a soja, sendo 90% dela geneticamente modificada. Em 2014, 71% da soja brasileira exportada foi absorvida pela China, um dos países com regulação menos rígida para compra e produção de transgênicos em todo o mundo. Na União Europeia, os transgênicos têm produção praticamente proibida.
O deputado Moroni Torgan (DEM-CE) questionou "Por que a diferença entre corante, conservante, agrotóxico e transgênico na embalagem? Se é para colocar letra grande para transgênicos, por que estão usando dois pesos e duas medidas?" A diferença entre os transgênicos e o corante, o conservante e o agrotóxico reside nas divergências em relação aos riscos dos primeiros para a saúde e para o meio ambiente. Com a eventual aprovação da proposta no Senado, o cidadão brasileiro normalizaria o consumo dos produtos geneticamente modificados em sua dieta, pelo completo desconhecimento de sua presença nos alimentos que consome. Para a bancada ruralista, a ignorância do cidadão é uma dádiva.
Um estudo não muito recente de dois professores de Harvard e um da Universidade de Boston, "Full Disclosure", provou que quando se trata de transparência, leva-se tempo e medidas de conscientização para que os cidadãos internalizem as informações.
Isso quer dizer que ainda que se tratasse apenas da mudança do símbolo "T" para "Contém transgênico", se a estrutura de divulgação não facilitasse o entendimento, os cidadãos precisariam de tempo para aprender como encontrar e interpretar a nova informação e, enquanto isso, provavelmente fariam escolhas sub-ótimas.
Mas a proposta nas mãos dos senadores faz muito mais que isso: se aprovada, ela excluirá a possibilidade da escolha informada de todos os transgênicos e, consequentemente, afetará a competição de vários produtos, uma vez que passaremos a comparar produtos geneticamente modificados com não modificados, como se fossem a mesma coisa. É tudo que qualquer sistema regulado por medidas de transparência precisa para não funcionar. E é exatamente essa a mensagem Quando a transparência é geneticamente modificada que os ruralistas querem passar: a de que produtos geneticamente modificados em menos de 1% de sua composição são iguais aos produtos não modificados.
Em outro momento, o autor da proposta contradisse sua preocupação com os consumidores e afirmou que "o símbolo em questão vincula o alimento que contenha DNA ou proteína obtida por meio de organismo geneticamente modificado a circunstâncias de perigo, nocividade, cuidado, alerta e outras mais para as quais a apresentação gráfica é usualmente destinada".
Diferentemente do que alega o deputado, o símbolo não foi criado para criminalizar os transgênicos, mas para informar.
Quem atribui o julgamento negativo é o usuário da informação. Se a reação dos consumidores ao identificar o símbolo deveria ser outra, o aprimoramento da regulação demanda informar mais, não menos. Na prática, o "T" funciona muito bem para quem o usa, e é por isso que corre o risco de ser alterado.
Para piorar, o debate ocorre em um cenário desfavorável de acesso dos cidadãos e entidades de proteção do consumidor ao Congresso e ao órgão federal responsável pela aprovação da produção de produtos modificados geneticamente, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBio. Na atual composição da Câmara dos Deputados, mais da metade dos membros estão ligados ao setor de agronegócio - ou seja, as empresas estão muito bem representadas no Congresso.
Já a CNTBio é alvo de constantes críticas por atuar em favor de produtos geneticamente modificados. De fato, a Comissão não deixou de acatar sequer um pedido autorizativo de registro de transgênicos. O próprio Palácio do Planalto noticiou em seu website a nota de repúdio do Fórum Nacional de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos à CNTBio, publicada em março. O Fórum, composto por entidades da sociedade civil, órgãos de governo, Ministério Público e setor acadêmico-científico, alega que a Comissão "tem sofrido a influência de outros interesses, opostos aos que deveria proteger", em referência às empresas do agronegócio e à autorização indiscriminada de organismos geneticamente modificados.
Por fim, a proposta para apreciação dos senadores mantém a permissão para que os produtos que não contenham alimentos geneticamente modificados utilizem em suas embalagens a expressão "livre de transgênicos", desde que comprovado o fato em análise específica. Trata-se de uma mudança significativa da regulação: é a premiação de quem não oferece o risco, em vez da indicação daquele que o oferece. Isso caso os produtores de não transgênicos tenham condições de pagar pela análise exigida. É um erro regulatório significativo. Mas ao que tudo indica, para favorecer alguns interesses, no Brasil até transparência pode ser geneticamente modificada.

Izabela Corrêa é doutoranda em ciência política pela London School of Economics and Political Science (LSE), onde estuda regulação e transparência pública. Pode ser seguida no twitter em @IzabelaCorrea.

Valor Econômico, 02/07/2015, Opinião, p. A12

http://www.valor.com.br/opiniao/4117784/quando-transparencia-e-genetica…

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