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Progresso caro demais

Epoca, Especial Meio Ambiente, p.58-60
07 de Jun de 2004

Entrevista
Progresso caro demais
O diretor da Fundação O Boticário diz que o governo Lula cede à pressão da indústria para flexibilizar as leis ambientais

Miguel Milano
Posição atual
Diretor da Fundação 0 Boticário de Proteção à Natureza desde a criação da entidade, em 1990. Representante da Fundação Avina, que apóia líderes sociais e ambientais
Formação acadêmica Engenheiro florestal, professor da UFPR e da Colorado State University, nos EUA
Vida pessoal Nasceu em Palmital, Paraná. Casado. A filha mais velha se forma em Biologia neste ano

Alexandre Mansur
Mguel Milano, diretor da Fundação O Boticário de Proteção à Natureza, maior patrocinadora brasileira de projetos ambientais, está deixando o Paraná, onde passou seus 48 anos de vida. O engenheiro florestal, criador do primeiro curso de pós-graduação em Ecologia do país, muda-se para Bonito, Mato Grosso do Sul, com a frustração de não ter conseguido impedir a devastação das últimas florestas de araucária do Estado e de presenciar a aceleração no ritmo de desmatamento no resto do Brasil. Em entrevista a ÉPOCA, ele alerta que o governo Lula cede à pressão de alguns industriais para flexibilizar as leis ambientais e diz que a ministra Marina Silva virou "álibi" para a política de desenvolvimento antiecológica de Brasília.
ÉPOCA - Como o senhor avalia o desempenho ambiental do governo Lula?
Miguel Milano - Acho que os notáveis que estão no Ministério do Meio Ambiente e este governo como um todo representam bem a condição média da cultura brasileira a respeito da questão. As pessoas pensam que, se levamos cinco séculos para gastar metade do país, ainda temos outro tanto antes de acabar com o resto. O brasileiro pensa na natureza como fonte de matérias-primas para produção, mas não imagina que exista um limite de sustentabilidade para essa exploração. Não fosse assim, o governo não aceitaria a pressão de uma parte do grande empresariado para flexibilizar a legislação ambiental.
ÉPOCA - Que pressão é essa?
Milano - Começou em dezembro, com uma reunião da Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústrias de Base (Abdib), em que os empresários anunciaram que muito do investimento previsto para ser feito no país não acontecia justamente por empecilhos ambientais. Estão criticando os Relatórios de Impacto Ambiental, um sistema de ação preventiva da sociedade para evitar a privatização dos benefícios e a coletivização dos prejuízos. A pressão desses industriais é para que o ministério pare, entre aspas, de atrapalhar o desenvolvimento do país. Desde então, sistematicamente, representantes dessas indústrias vêm a público dizer que determinada empresa não investe por causa da legislação ambiental. Isso é absurdo. Nos países desenvolvidos, inclusive os Estados Unidos, a legislação é mais rígida e ninguém deixa de investir por causa disso. Em março, o próprio presidente Lula convocou publicamente o presidente do Ibama para pôr em ordem o sistema de licenciamento brasileiro, para que não impedisse a geração de empregos prometidos na campanha eleitoral.
ÉPOCA -A legislação ambiental impede os investimentos?
Milano - Há uma deficiência no aparelhamento dos órgãos ambientais federal e estaduais, que torna o processo mais lento. Mas isso é um problema menor. O que há é uma idéia errada de desenvolvimento. Continua-se achando que à destruição é o preço do progresso. Um estudo recente da UFRJ mostra que os municípios do Estado do Rio de Janeiro com maior cobertura remanescente de Mata Atlântica são os que têm o maior IDH, o índice de desenvolvimento humano da ONU. Quem desmatou, multiplicou a pobreza.
ÉPOCA - Por que um Ministério do Meio Ambiente, com figuras notáveis do movimento ambiental, não consegue conter o desmatamento?
Milano - É um problema que eles herdaram, mas não parece que estejam tomando providências consistentes para que a devastação não se repita no ano que vem. Tem outro fator: a Marina Silva corresponde a uma defesa do governo. Ela é inatacável como pessoa, como profissional e como política dedicada à causa ecológica. Porém, o governo não dá a ela condições de agir.
ÉPOCA - O que é mais importante, salvar o emprego ou o mico-leão?
Milano - É um falso dilema. Corremos o risco de matar os recursos naturais e inviabilizar o próprio desenvolvimento. Nossa população já é tão grande e nosso território já foi tão devastado que não é possível suprir primeiro as deficiências econômicas para depois discutir proteção ambiental. As duas coisas têm de ser feitas juntas.
ÉPOCA - Por que o senhor está abandonando o Paraná e se mudando para Bonito?
Milano - Parte da resposta é o reconhecimento de uma frustração. Quando nasci, há 48 anos, o Paraná tinha 35% de suas florestas em pé. Hoje não sobraram mais de 6%. Apesar de toda a minha luta pela preservação das últimas florestas de araucárias do Estado, elas sumiram. Todos os argumentos pela preservação da espécie-símbolo do Paraná caíram diante da ganância das madeireiras e da inércia dos governos. As pessoas plantam araucária nas chácaras e nos jardins. Já o ecossistema da floresta de araucária, que tem uma estrutura biológica única, está praticamente extinto. A única esperança agora é desapropriar a terra agricultável para implantar unidades de conservação que recuperem os últimos vestígios ainda existentes das únicas florestas de coníferas do Brasil. Mas o que vem ocorrendo é o contrário. Em setembro de 2003, os sem-terra invadiram a Floresta Nacional de Três Barras, em Santa Catarina, que guarda um dos últimos remanescentes, e montaram um acampamento. Unidades de conservação públicas e reservas legais de propriedades privadas são alvos prioritários das ocupações porque a sociedade as vê como terra improdutiva.
ÉPOCA - Dá para fazer assentamentos que usam a floresta?
Milano - Entre a devastação total e um processo intermediário, que respeita parte da natureza, é preferível o segundo. O plantio consorciado de espécies nativas da floresta como açaí, pupunha ou guaraná é melhor do que a monocultura de soja, algodão ou eucalipto. Mas é um perigo achar que a conservação da natureza é compatível com a presença humana. Uma pesquisa do BID sobre as reservas extrativistas da América Latina concluiu que nenhuma delas foi manejada para conservação. O brasileiro Carlos Peres, da Universidade East Anglia, da Inglaterra, publicou um artigo na revista Science questionando a sustentabilidade do extrativismo de castanha-do-pará. Para conservação mesmo, o que funciona são parques e reservas biológicas.
ÉPOCA - E as populações tradicionais, como caiçaras, seringueiros e ribeirinhos, que estão há anos usando aquele ambiente de forma sustentável?
Milano - Não é bem assim. Caiçara é uma cultura de integração de açorianos com indígenas locais, de certa forma marginalizados e com pouco poder econômico. Essas culturas não são milenares na relação com a natureza. Os seringueiros do Acre estão lá há menos de meio século. O que esses grupos sociais têm em comum é a pouca capacidade tecnológica de agressão e falta de dinheiro - ainda - para comprá-la. No mais, são humanos como quaisquer outros. É o mesmo com os índios. Nenhum grupo nas Américas antes de Colombo tinha dominado o ferro e o aço. Nunca conseguiram uma ferramenta mais eficiente do que um machado de pedra para cortar lenha. Isso explica sua capacidade limitada de agressão ambiental, ainda que tenham provocado estragos enormes. Na América antes da chegada de Colombo, impérios inteiros já tinham se extinguido porque abusaram dos recursos naturais. Os povos anasazi, que dominavam o sudoeste dos Estados Unidos, construíram prédios de vários andares, feitos de madeira, as maiores edificações pré-colombianas, em pleno deserto do Novo México. Recentemente descobriu-se que o deserto foi criado por eles, que desmataram tudo entre 800 e 1200 d.C. e inviabilizaram a própria civilização. Talvez a questão dos cintas-largas seja o paradoxo mais concreto. Eles próprios exploram o garimpo na terra deles. Nada contra o cacique ter sua caminhonete importada. Mas há menos de três décadas eles estavam na idade da cerâmica. Foi uma apropriação tecnológica muito rápida e inconseqüente.
ÉPOCA - Os cintas-largas não seriam uma exceção?
Milano - Isolados, sem contato, com baixa tecnologia, os índios acabam preservando bem a natureza em seu território. Mas só por isso. É possível que alguns grupos, por conta de lideranças muito boas, tenham conseguido estabelecer uma relação mais poética com a tecnologia. Parece acontecer assim no Xingu. Mas talvez isso seja a exceção. No sul do Pará, os caiapós venderam a maior parte do mogno. Na Ilha do Bananal, os índios arrendam as terras para os pecuaristas e conseguiram também parte da área que era do Parque Nacional do Araguaia. Esses índios não fazem isso porque são maus, mas porque querem condições melhores de vida. E o país oferece poucos caminhos para conseguir esses benefícios sem passar pela destruição.
ÉPOCA - Onde há progresso sem devastação no Brasil?
Milano - Enquanto a Abdib pede a flexibilização das leis ambientais, a fundação que dirijo só existe porque a Boticário destina 1% do faturamento liquido para preservação. Em alguns lugares, a sociedade já acordou. Em Bonito, por exemplo, há um reconhecimento público da importância da preservação. Políticos e empresários sabem que o que sustenta o lugar é o ecoturismo. Todas as belezas naturais exploradas pelo turismo lá são reservas naturais privadas. São elementos de negócio das pessoas, que cuidam de sua integridade como sua galinha de ovos de ouro. É claro que não resolve tudo. Não dispensa as obrigações do governo. Mas esse tipo de valorização econômica do patrimônio natural é uma saída para enfrentar a visão do progresso destruidor.

Época, 07/06/2004, p. 58-60

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