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Procura-se o mel e a abelha

OESP, Paladar, p. D1, D4-D5
31 de Out de 2013

Procura-se o mel e a abelha
Você viu a jataí por aí? E a jandaíra? E a borá? Como suas primas do mundo todo, essas e outras abelhinhas, até a Apis mellifera (a que está aí na foto), estão ameaçadas de um misterioso sumiço. E com elas um acervo de méis raros e delicados que só os abelhudos mais atentos conhecem. Para preservar as pequenas operárias é preciso respeitá-las, protegê-las, estudá-las. Elas costumam pagar com bom mel.

Por Junior Milério
Especial para o Estado

A verdade é um ferrão: as abelhas estão ameaçadas. Um fenômeno ainda sem explicação está levando ao desaparecimento de colmeias inteiras. E junto com o mel, o sumiço das abelhas põe em risco não só os produtos diretos gerados por elas (geleia real, cera), mas lavouras e pomares que podem minguar na ausência das polinizadoras universais. O risco é geral, afeta diferentes países e independe da espécie de abelha.
No Brasil, a ameaça é ainda mais preocupante, pois o ambiente é especialmente favorável à produção de méis. Há por aqui tanto os méis de Apis mellifera, aquela amarela e preta, com ferrão, trazida pelos jesuítas no final do século 19 para o Rio de Janeiro, como um patrimônio único e incalculável do ponto de vista gastronômico, de méis produzidos por centenas de espécies nativas, de nomes populares que vão de jataí a mamangava. Esses méis podem desaparecer antes mesmo de serem devidamente conhecidos. Antes de serem reconhecidos e liberados para a venda.
Para entender a gravidade do caso, tome como exemplo a abelha canudo, típica da América tropical. Segundo o Slow Food Brasil, essa espécie é responsável pela polinização de 80% da flora na Amazônia. Manejadas por índios sateré-maués, as abelhas canudo produzem um "mel fluido, saboroso e aromático, com grande potencial gastronômico", como explica o professor de história da gastronomia do Senac, Sandro Dias. Se elas sumirem, vão junto o mel, o saber fazer indígena e o guaraná amazônico, que é polinizado por elas.
Os desdobramentos do eventual sumiço das abelhas são tema do documentário Mais que Mel, que estreia amanhã no Brasil. Dirigido pelo cineasta suíço Markus Imhoof, o documentário percorre o mundo em busca de colmeias para tentar explicar a situação das abelhas e sua importância na dieta humana. As viagens ao longo de cinco anos retratam um cenário preocupante e ainda sem solução.
Ninguém sabe a causa exata do sumiço. Estresse, desmatamento, uma doença desconhecida, manejo apícola inadequado e uso de pesticidas são suspeitos... Mas certeza não há.
O fenômeno corresponde a uma rápida perda da população de uma colmeia, que inexplicavelmente não volta à colônia. Na União Europeia, agrotóxicos associados ao sumiço desses insetos foram temporariamente banidos. No Brasil, algumas medidas preventivas estão em análise. Os técnicos do Ibama estão estudando a situação desde 2010 (já registraram dois casos) e alertam para o risco de que a síndrome afete colmeias por aqui.
O custo da substituição das abelhas na função de polinizadoras seria inviável para a agricultura, não há dúvidas. A abelha tem a anatomia ideal para penetrar nas flores e carregar grande quantidade de pólen em uma única e longa viagem.

Se está difícil achar a abelha, imagina o mel

Por Júnior Milério
Especial para o Estado

Com as abelhas sob misteriosa ameaça, vem o alerta: e o mel? O leitor do Paladar já sabe há tempos que as abelhas nativas, sem ferrão, chamadas melíponas, produzem méis que são tão deliciosos como difíceis de ser encontrados. E, como depois de ler isso tudo você certamente vai ficar querendo provar mais e mais méis, vasculhamos produtores e restaurantes e conseguimos reunir alguns telefones e endereços. Desta vez, você vai conseguir prová-los.
O sumiço das abelhas é especialmente preocupante para o Brasil. O país tem ambiente extremamente favorável para a produção de mel. Dos dois tipos. O clima favorece a apicultura, que é o cultivo de abelhas Apis mellifera. E a variedade de espécies nativas, sem ferrão, atua a favor da meliponicultura, que tem potencial para a produção de méis únicos.
O Brasil é o país com a maior diversidade de abelhas sem ferrão do mundo. São mais de 200 espécies, segundo Denise Araújo Alves, uma das organizadoras do livro Polinizadores do Brasil (Edusp, 2013), terceiro colocado na categoria Ciências Naturais do prêmio Jabuti deste ano.
O problema é que esse enorme acervo é apenas parcialmente explorado. Quase a totalidade do mel produzido aqui vem da apicultura. A variedade reflete florações - há mel silvestre, de flores, e monofloral, de laranja e eucalipto, por exemplo.
Mas é na meliponicultura que o País leva vantagem gastronômica. O potencial da extração de mel de abelhas nativas é infinitamente maior - a diversidade de espécies é enorme, as possibilidades de floração também, há diferentes técnicas de cultivo e, ainda por cima, os méis evoluem, maturam, ou seja, podem ser safrados. Segundo o ecólogo Jerônimo Villas-Bôas, autor do Manual Tecnológico: Mel de Abelhas sem Ferrão, seria possível até fazer combinações. "Poderíamos pensar em blends florais. Néctares diferentes, méis diferentes."
Mas, por enquanto, esse é ainda um sonho distante. A meliponicultura esbarra em duas grandes dificuldades. Primeiro, a normatização - os méis nativos não são reconhecidos como tal - e, além disso, a produtividade dessas abelhas é bem menor. "Em uma situação ideal, uma colônia de Apis mellifera produziria 200 litros de mel, enquanto, no mesmo período a nativa jandaíra produziria apenas 2 litros", compara o pesquisador Dayson Castilhos, da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), em Mossoró, no Rio Grande do Norte.
Em termos legais, atualmente, o mel nativo não é proibido nem valorizado. Apenas tolerado. O assunto é árido, mas importa por um motivo: a depender da conduta do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), um produto transita bem entre produtor e consumidor ou não - e o mel de abelhas nativas do Brasil está na segunda categoria.
Atualmente, o Mapa não estabelece padrões de identidade para esses méis. Até algum tempo atrás, o ministério determinava que "mel" tivesse as características do mel de Apis, que é mais viscoso. O mel nativo não se encaixava, o que obrigava os produtores a desidratar o mel de melíponas.
As coisas estão começando a mudar. O Mapa já reconhece a classificação "mel de abelha nativa". E, segundo o próprio ministério, a falta de padrão não é empecilho para registro desses produtos. O ambientalista Roberto Smeraldi, vice-presidente do instituto Atá, idealizado pelo chef Alex Atala, diz, no entanto, que o novo posicionamento do Mapa é mais amigável, mas não basta. Para Smeraldi, "tolerar não é reconhecer a diversidade". Ele diz que a abelha nativa precisa "sair do armário", "se assumir". E enquanto isso não acontecer seu mel não será reconhecido nem valorizado.
Apenas com identificação dos tipos de abelha e das características do mel produzido por cada uma será possível explorar o potencial gastronômico desses méis e promover seu consumo. Para Smeraldi, reduzir o mel de abelhas nativas ao termo genérico "mel" equivale a "vender caviar de esturjão por ovas de lumpo". A definição dos padrões do mel de abelhas nativas e a valorização desse produto são das principais bandeiras do instituto.
Se não há como fazer as abelhas produzirem mais, é possível, sim, incentivar o produtor e facilitar a ligação com o consumidor. E o primeiro passo para isso é criar uma regulamentação específica.

ONDE ENCONTRAR
Foi antes de se aposentar, e lá se vão 30 anos, que Paulo Menezes começou a cultivar a abelha jandaíra, em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Hoje ele tem ao menos 500 colônias dispostas entre seu quintal e uma propriedade rural. "Ganhei o primeiro enxame do monsenhor Huberto Bruening, que foi uma figura histórica aqui em Mossoró e, desde então, crio essas abelhas por amor", diz.
Em Florianópolis, Santa Catarina, a mais de 3 mil quilômetros de distância, é o mesmo sentimento que motiva o que o agrônomo Pedro Faria Gonçalves define como "uma escolha de vida".
Ele se dedica ao manejo de seis espécies de abelhas nativas brasileiras. "Faço porque me satisfaz como pessoa", diz o produtor, que acredita que a viabilização econômica da sua atividade é uma consequência natural da sua dedicação.
Ambos vendem o mel por encomenda (que pode ser feita pelo telefone ou internet) e entregam em todo o Brasil.
Mel Menezes
Abelha: jandaíra (265g, R$ 18)
Mossoró, RN, (84) 3312-1312
www.melmenezes.com.br
Sítio Flor de Ouro
Abelhas: bugia (uruçu amarela), guaraipo, manduri, mandaçaia, tubuna e jataí (70g, R$ 10, e 350g, R$ 40)
Florianópolis, SC
www.flordeouro.com
Cia. da Abelha
Abelhas: uruçu nordestina (1 kg, R$ 180) e jataí (150g, R$ 40)
Goiânia, GO, (62) 3282-2232 e (62) 8102-0918
www.ciadaabelha.com.br

Enxame de jataís invade restaurantes

Por Redação Paladar

Em São Paulo, o mel de abelhas jataí aparece como ingrediente em pratos do cardápio de quatro restaurantes. No Clos de Tapas, é usado no vinagrete que tempera a salada servida no menu autoral da chef Ligia Karazawa. No Na Cozinha, o chef Carlos Ribeiro também usa o mel para fazer o molho que rega a salada de folhas. "Faço o molho há cinco anos e não posso mudar. Os clientes adoram", conta Ribeiro. No Esquina Mocotó, ele adoça a caipirinha de caju com limão cravo e a salada de frutas. E no D.O.M, está entre os ingredientes do ceviche de flor.
Clos de Tapas (foto acima)
Pupunha com ovas de salmão, ervas, flores, brotos e vinagrete com mel de jataí (foto). Faz parte do menu autoral da chef (R$ 150, com seis pratos).
R. Domingos Fernandes, 548, Moema, 3044-2291
Esquina Mocotó
Caipirinha de caju, limão cravo e mel de abelha jataí (R$ 16,90); e salada de frutas com mel, servida com geleia de frutas vermelhas, abacaxi, uvas, kiwi, tangerina, morango, sorbet do dia, mel de abelha jataí e folha de manjericão (R$ 12,90).
Av. Nossa Sra. do Loreto, 1.108, V. Medeiros, 2949-7049
Na Cozinha
Salada de folhas verdes do dia regada com molho à base de suco de laranja, gengibre ralado, limão, azeite de oliva e mel de abelha jataí (servida no menu executivo, inclui também prato principal e sobremesa, por R$ 40, em média). O molho também é servido no jantar.
R. Haddock Lobo, 955, Jd. Paulista, 3063-5377
D.O.M.
Ceviche de flor com mel de abelha mansa (servido no menu degustação com quatro pratos, a R$ 357, ou oito, a R$ 495)
R. Barão de Capanema, 549, Jd. Paulista, 3088-0761

Uma teia anárquica de combinações

Por Roberto Smeraldi*

Novembro de 1988. Em Brasília acaba de ser promulgada a Constituição. Na aldeia de Gorotire, no Pará, os caiapós mal sabem disso. Estou lá para preparar um evento no fevereiro seguinte, sobre as barragens do Xingu. No tocante à comida, a aldeia oferece alguma carne de caça moqueada, um pouco dura, porém saborosa. Mas eu aguardo a volta a Belém, onde d. Ana Maria Martins, mãe do chef Paulo, vai me paparicar. Em certa hora, um jovem me oferece uma cuia contendo algo que parece sopa. Dois goles depois, fico deslumbrado com a intensidade do fluido: explosão de acidez, doçura, picância. Nem suspeito que seja mel, pelas minhas referências. Pergunto se a sopa é feita por eles na aldeia. Explicam-me: "São as abelhas, na mata".
Conhecer o mel de abelhas indígenas foi uma das muitas experiências pelas quais a Amazônia me obrigou a rever conceitos. Mas foi só nos anos 1990 que me aproximei do produto com fins culinários. Ou dos produtos, pois a primeira lição foi a de aprender a lidar com a diversidade como oportunidade, em vez de obstáculo (pelo menos na cozinha, se não na vida). Testava o de jataí e das próximas vezes vinham os de mandaçaia, manduri, guaraipo, uruçu, tujuba... Um começava com nota floral e acabava com frutada, outro, o contrário. Um quase não deixava rastro, outro tinha persistência. Um trazia fragrâncias delicadas; outro, vigor pré-alcoólico. Demorou a reparar o diferencial: eles não são estáveis. Evoluem, maturam como vinho, aliás, mais rapidamente. No caso da Apis mellifera, há uma variável só: a florada. No caso das abelhas indígenas, temos a espécie, a florada e a idade, formando uma teia de combinações. Talvez seja essa anarquia, essa relutância à padronização que geram a obstinação - por parte dos tomadores de decisão governamentais - em negar a esses produtos identidade e trânsito.
Comecei a associar os méis à comida por contraste. Mais adiante, aprendi a fazer isso também por semelhança. Não conheço maneira melhor de valorizar um castelmagno, reblochon ou stilton do que um mel de tiúba do Maranhão. Dificilmente alguém discorda do uso dos mais florais (como uns de manduri) em molhos para saladas, dos mais doces, como jataí, em infusão com cachaças, dos mais frutados e intensos, como tubuna, em associação com carnes: recentemente, com o instituto Atá, os testamos em eventos com grande diversidade de público.
Há outros usos que apaixonam alguns, mas são mais desafiadores: é o caso do emprego dos mais ácidos, maturados ou fermentados, para marinar peixes e frutos do mar crus. Mandaçaia e alguns de uruçu são excepcionais nessa tarefa, assim como em preparos com carnes de caça, por exemplo, junto com cacau.
Por qualidade, versatilidade e presença territorial nos vários biomas, considero o mel de abelhas indígenas, ao lado da mandioca, o produto que melhor caracteriza o Brasil: os princípios de sua Constituição gastronômica. Alô, Esplanada?
JORNALISTA E GASTRÔNOMO, É DIRETOR DA OSCIP AMIGOS DA TERRA - AMAZÔNIA BRASILEIRA E VICE-PRESIDENTE DO INSTITUTO ATÁ

OESP, 31/10/2013, Paladar, p. D1, D4-D5

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