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Problemas de brancos em aldeias

CB, Brasil, p.18
27 de Fev de 2005

Problemas de brancos em aldeias
Além da desnutrição, que matou cinco crianças em 45 dias, índios das etnias Bororo e Jaguapiru, que habitam a reserva de Dourados (MS), vivem às voltas com casos de suicídio e de alcoolismo, um estímulo à violência

A vida da índia caiuá Luzinete Vera Barbosa, de 35 anos, na aldeia Bororo, reflete bem os problemas que atingem a reserva de Dourados, a 218 km de Campo Grande (MS), onde cinco crianças indígenas morreram este ano por causa da desnutrição. Três dessas mortes aconteceram na semana passada. Nos últimos 13 anos, quatro dos oito filhos de Luzinete morrdram de doenças relacionadas à desnutrição. 0 último deles, que tinha paralisia cerebral, faleceu na quinta-feira passada.
A índia mora em um barraco com pouco mais de um metro de altura e dois de comprimento, coberto por lona preta. As paredes são formadas por pedaços de madeira, de telhas e outros remendos. Ela espera há um ano a Prefeitura ,de Dourados concluir a obra de uma casa, que está só no alicerce, ao lado do barraco.
Além dos filhos, Luzinete Vera cuida de três sobrinhos. A irmã dela, Marta, foi assassinada na aldeia em novembro passado pelo ex-marido, também índio, e deixou as crianças para Luzinete criar. Uma delas um menino desnutrido de um ano e meio, está internada no hospital. "Ele (o ex-marido) matou minha filha com várias facadas no rosto, nos braços, na barriga e ainda (hoje) faz ameaças. Anda de noite por aí", diz Cristina, mãe de Luzinete.
Mãe adolescente
O caiuá Emerson Vera Gonçalves, 46, marido de Luzinete, machucou a perna e não pode mais trabalhar no corte de cana-de-açúcar, que emprega grande parte dos índios. Para sobreviver, depende de cestas básicas do governo estadual. Luzinete foi mãe aos 15 anos. No ano passado, fez cirurgia de ligadura de, trompas para não engravidar mais.
"Na aldeia, tem muitas mães adolescentes. Não sabem cuidar de família. A criança não sabe falar, dizer que está com sede, e a mãe não sabe ver isso. Fica com vergonha até de ir pegar leite", diz o líder indígena caiuá Ambrózio Ricarte.
Nas aldeias de Dourados, não são raras as mães adolescentes com crianças desnutridas. Uma delas, a guarani Neuza Duarte, 19, perdeu a filha de um ano e três meses por causa da desnutrição na semana passada.
"Aqui tem um pouco de cada problema. Adolescentes bebendo e fumando droga. Muita violência. Estamos tão perto da cidade. Vamos dizer que pegamos o costume do branco", afirma o capitão (líder máximo) da aldeia Bororo, o índio guarani Luciano Arévolo, 50 anos.
Em junho do ano passado, quando dois índios da etnia caiuá de 16 e 15 anos foram mortos e decapitados por um índio que estava bêbado, a Fundação Nacional do Índio (Funai) anunciou com a Polícia Federal o fechamento das vias de acesso às aldeias para impedir a entrada de bebidas, pessoas não-índias e de drogas. "Oito meses depois, a área indígena está aberta de novo", afirma Arévolo. E a operação da Funai não impediu que o ex-marido de Mãrtá, a irmã de Luzinete, assassinas$ a mulher.
Miséria
A reserva indígena de Dourados é formada pelas aldeias Bororo e Jaguapiru. Nessas áreas onde vivem 11 mil índios, incluindo os da etnia terena, caberiam apenas 200 famílias, se fosse um assentamento nos moldes do programa de reforma agrária. Egon Heck, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entidade ligada à Igreja Católica, diz que a falta do tekoha (terra considerada território sagrado) para os índios explica a miséria nas aldeias.
Dados da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) de 2004 apontam que em Dourados existem 232 crianças desnutridas e 357 abaixo do peso considerado normal, o que equivale a 12% dos índios menores de cinco anos. "A cesta básica é pouca (são 2.900 distribuídas por mês a quase 50 mil índios). Se tivesse terra, não faltaria a lavoura", afirma Arévolo.
"Tempos atrás existia caça. Hoje até água está difícil. A criança não pode nem tomar banho e chega a desnutrição", diz Ricarte. Pelas aldeias, crianças andam descalças e com roupas sujas.
0 médico Franklin Amorim Sayão, 59, diretor do hospital da Missão Evangélica Caiuá, voltado aos índios, cita como outro problema, além da desnutrição, o alcoolismo que estimula a violência. "Temos medo de sair à noite por aí", lembra Luzinete. Sayão atende há 17 anos em Dourados.
Mesmo sem dados estatísticos, o médico afirma, com convicção, que ao menos 20% da população indígena do sul do estado é alcoólatra: "Mães dão álcool para os bebês pararem de chorar na aldeia".
Em meio há tantos problemas, estão os casos de suicídio. Foram 234 nos últimos cinco anos, segundo a Funasa, entre os índios das etnias guarani e caiuá, os mesmos de Dourados.

Terras podem ser ampliadas
A Frente Parlamentar em Defesa dos Povos Indígenas vai pedir à Fundação Nacional do índio (Funai) e ao Ministério da justiça que seja acelerado o processo de ampliação da área da aldeia Guarani-Kaiowá em Dourados (MS). Segundo o coordenador da Frente, deputado Eduardo Valverde (PT-RO), o aumento da área é a única solução efetiva para o problema de desnutrição entre as crianças da aldeia.
0 deputado explicou que sem um território de tamanho satisfatório, os índios não conseguem plantar ou desenvolver atividades de auto-sustentação. A situação é tão crítica que, somente neste ano, cinco crianças com menos de 5 anos morreram por inanição na aldeia. A última morte, ocorrida sexta-feira, foi de uma menina de apenas 1 ano e 4 meses.
Para Valverde, as medidas emergenciais adotadas pelo governo até agora, como a distribuição de cestas básicas, apenas amenizam o problema. "Amenizam mas não resolvem, já que a não geração de renda se deve ao fato de que a população indígena é superior ao que a reserva é capaz de produzir", afirmou o deputado, ao admitir que a ampliação da área deve enfrentar a resistência dos fazendeiros da região.
0 Ministério Público está com a relação e o endereço de todas as crianças internadas no Centro de Reabilitação Nutricional, o Centrinho, que funciona dentro da reserva indígena de Dourados, formada pelas aldeias Bororó e Jaguapiru.
Apenas lá, estão internadas 31 crianças. Além de investigar descaso dos governos federal e estadual, os procuradores pretendem verificar a denúncia de que alguns pais estariam trocando alimentos das cestas básicas entregues pelo governo por bebida alcoólica.

CB, 27/02/2005, p. 18

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