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A prioridade é a comida

O Globo, Opinião, p. 7
Autor: BOVE, José
22 de Jun de 2004

A prioridade é a comida

José Bové

Depois do fracasso da Conferência da Organização Mundial do Comércio (OMC), no ano passado, a comunidade internacional está diante de uma nova oportunidade para fazer um balanço sem complacência das políticas neoliberais que têm sido impostas às populações e aos governos pelas empresas multinacionais, nos últimos 25 anos.
Esta é uma luta freqüentemente muito dura das organizações integrantes da Via Campesina, que englobam mais de 200 milhões de pessoas nos cinco continentes e estão na batalha diária contra o neoliberalismo. Nossos amigos do Movimento dos Sem Terra, que fazem parte dos movimentos mais severamente atingidos, sabem que ela não é liderada pelo simples prazer de lutar. Ela é a conseqüência do fato de que as condições de vida de camponeses, trabalhadores agrícolas e sem-terra não param de se deteriorar.
Os preços dos produtos agrícolas afundaram, provocando uma crise sem precedentes. Os pequenos agricultores, nos países do sul como nos países do norte, estão arruinados. Expulsos das suas terras, eles vêm aumentar as favelas das megalópoles na busca desesperada de um trabalho que não existe para alimentar as suas famílias. Será preciso esperar que a população de São Paulo duplique e chegue a 50 milhões de habitantes para que os nossos governos reajam e mudem de rumo? No entanto, as soluções existem. Uma delas é o reconhecimento do direito à soberania alimentar, pelo qual a Via Campesina, cuja Assembléia Geral aconteceu na semana passada em São Paulo, luta desde 1993. Esse direito deve ser reconhecido em nível internacional
A comida não é uma mercadoria como os produtos industriais. É simplesmente vital, e é por essa razão que não pode ser regulada pelas leis do mercado. Ela dá como missão prioritária à agricultura, alimentar as populações locais, os mercados de proximidades. Ela permite a cada país e a cada grupo de países definir localmente políticas agrícolas que, garantindo aos trabalhadores do campo uma remuneração correta, que lhes permita prosseguir com suas atividades agrícolas
Essas políticas não podem em caso algum ter impacto negativo sobre as populações de outro país, o que impede todas as práticas de dumping . As exportações para mercados mundiais regulados só podem se realizar a preços superiores aos custos de produção reais dos camponeses do país para onde os produtos são mandados. Os Estados Unidos e a União Européia devem por isso reformular totalmente as suas políticas agrícolas, que, hoje, graças aos subsídios públicos, inundam os mercados mundiais e mergulham os camponeses do mundo na miséria. Isso não quer dizer, portanto, que a agricultura deva desaparecer na Europa. Significa que os camponeses europeus têm por missão alimentar os seus cidadãos
A soberania alimentar considera que praticamente todas as regiões do mundo são capazes de desenvolver uma agricultura suficientemente produtiva e adaptada às condições locais, geográficas e culturais, para poder alimentar as populações que vivem num dado território
A primeira das emergências não é o descobrimento de novas técnicas que só vão fortalecer as desigualdades, mas a implementação de uma organização radicalmente diferente da economia, das trocas mundiais e dos relacionamentos entre os povos.
O exemplo dos transgênicos é particularmente revelador. Ele mostra como uma nova tecnologia, totalmente incontrolável, é implementada para o único proveito de poucas multinacionais sementeiras. Os camponeses brasileiros têm tudo a perder quando cultivam soja transgênica. Hoje, as cotações do soja transgênica no mercado mundial estão abaixo da soja convencional. O presidente Lula deve seguir o exemplo do seu homólogo venezuelano, senhor Chávez, e impedir a produção de transgênicos. Mesmo sob o ponto de vista econômico, esta é a única opção viável porque vai oferecer aos produtores brasileiros uma vantagem sobre os agricultores americanos garantindo-lhes um acesso privilegiado aos mercados europeu e japonês
A Via Campesina considera a Unctad, agência especializada da ONU, como o único fórum internacional legítimo para discutir de maneira multilateral a questão do comércio e do desenvolvimento. Ela e o conjunto das Nações Unidas não devem e não podem se restringir ao papel de uma simples agência de implementação e de acompanhamento das políticas absurdas da OMC
As Nações Unidas e a Unctad devem retomar o espaço político que é delas, como assembléias dos povos do mundo. A aposta é, por isso, crucial. Existe uma oportunidade para mudar de rumo. Vamos agarrá-la!. Jamais aceitaremos que o comércio, e conseqüentemente o lucro, seja a regra única que regulamente o conjunto das atividades humanas

José Bové é agricultor na França e integrante da organização não governamental Via Campesina.

O Globo, 22/06/2004, Opinião, p. 7

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