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18 de Out de 2024
Principal tendência do turismo no Acre leva viajantes a experimentar o modo de vida indígena
Ao longo do ano, festivais indígenas promovem imersão em aldeias no interior do estado; além de proteger tradições, eventos geram renda para comunidades e podem ajudar na difícil tarefa de manter florestas em pé
Carlos Minuano
18/10/2024
De tempos em tempos, os Huni Kuin da aldeia Boa União se reúnem para dançar, cantar, se pintar e brincar por vários dias seguidos. Tem competições de jogos tradicionais, como a do arco e flecha, da lança, da peteca, do artesanato, da macaxeira, do mamão. Tem até desfile de moda. E todos participam, crianças, adultos, idosos, homens e mulheres. Com poucos recursos e muitos problemas, povos indígenas ainda conseguem enxergar a vida e o cotidiano pela lente do lúdico.
Boa parte dos turistas que se aventuram por lugares distantes e de difícil acesso na Amazônia brasileira para imersões em terras indígenas está em busca desse "estado de simplicidade". O etnoturismo, em que os viajantes ficam hospedados nas aldeias, se tornou a principal tendência do turismo no Acre.
ndígenas afirmam que a maior parte do público dos festivais é estrangeira, como a americana Annalisa Nicole Villar, 34, que há tempos sonhava conhecer uma aldeia na Amazônia. Segundo ela, passar mais de uma semana dormindo em uma rede dentro de uma rústica cabana de madeira na selva foi uma experiência inesquecível. "Meu corpo nunca se sentiu tão bem, pareceu tão natural e confortável. Foi muito melhor do que dormir na minha cama em casa."
Incentivar os povos originários a preservar seu modo de vida é também uma maneira de frear o desmatamento
Villar, que vive em Irvine, na Califórnia, viajou para o Acre no último mês de julho para participar do festival anual do povo Puyanawa, no município de Mâncio Lima. Ela diz ter sido profundamente tocada e que os dias na aldeia lhe ensinaram o valor das coisas simples da vida e a força da união. "Todos trabalham juntos, cantam, dançam, cozinham, ajudam e apoiam uns aos outros. Fazem isso com alegria e amor."
No total, o Acre possui 36 terras indígenas, habitadas por 18 etnias presentes em 12 municípios. Com exceção dos povos isolados, quase todos realizam celebrações. Ao longo do ano, dezenas de eventos culturais são realizados em diferentes aldeias. Atualmente, 21 deles fazem parte do calendário oficial do estado, garantindo recursos financeiros e projetos sociais de educação, saúde e infraestrutura básica para as comemorações.
Outra ajuda importante veio do Ministério dos Povos Indígenas, que, na primeira metade do ano, destinou R$ 1,3 milhão para apoiar celebrações e manifestações culturais indígenas por meio do edital Ancestralidade Viva.
As razões para fomentar esse tipo de turismo são diversas. Incentivar os povos originários a preservar seu modo de vida, cultura e tradições - como a agricultura, caça e pesca - é também uma maneira de frear o desmatamento em seus territórios. Na prática, isso significa manter um manejo sustentável da terra, contribuindo para a difícil tarefa de conservar a floresta em pé.
Ainda pouco conhecido, o etnoturismo está crescendo e se tornando uma alternativa econômica importante para as comunidades, sendo a principal fonte de recursos para algumas delas. A renda anual de aldeias que recebem turistas varia de R$ 150 mil a R$ 2 milhões, segundo o governo do Acre.
A reportagem do Valor viajou até o Acre para conferir de perto a décima edição do Festival Katxá Nawá Hô Hô Ika, realizado na aldeia Huni Kuin Boa União, próxima ao município de Feijó, a 369 km de Rio Branco, na divisa com o estado do Amazonas e na fronteira com o Peru. Da capital acreana, foram mais de quatro horas por uma das principais rodovias do país, a BR 364.
Nos restaurantes à beira da estrada, o fluxo de turistas estrangeiros é intenso na Rota Turística Caminhos das Aldeias e da Biodiversidade, que leva aos municípios de Feijó, Tarauacá, Cruzeiro do Sul, Mâncio Lima, Jordão, Marechal Thaumaturgo e Santa Rosa do Purus. Há ainda outro circuito de festivais indígenas muito frequentado no município de Assis Brasil, com acesso pela BR 317 por meio da Rota Turística Caminhos do Pacífico.
Antes de seguir para a comunidade Huni Kuin, a reportagem fez uma primeira parada na aldeia Morada Nova, do povo Shanenawa, localizada às margens do rio Envira, que ficou conhecida após receber visitantes famosos. Entre eles, o ator Fábio Assunção, que passou alguns dias por lá em 2019.
A aldeia Morada Nova, onde vivem cerca de 800 indígenas, também se preparava para realizar um festival. Bem organizada, conta com uma cozinha comunitária e uma área de alojamentos composta por quatro cabanas, cada uma com capacidade para até cinco pessoas, acomodadas em redes.
"Antigamente, nossas comemorações eram festas, depois, começaram a ser chamadas de festival do matxu [bebida fermentada da macaxeira]. Desde quando eu era criança, me lembro que já existia", conta Maria Cibele, 25, ou melhor, Awa Shanenawa, seu nome indígena.
Ela explica que, na época em que foi registrada, há pouco mais de duas décadas, ainda era proibido usar o nome original de sua etnia. "Essa é uma conquista bem recente", diz Awa, que se orgulha hoje pela filha, a pequena Kene Meni, 6, ter apenas o nome indígena.
No entanto, essa conquista não é para todos. Segundo a Ouvidoria-Geral da Defensoria Pública do Acre, alguns cartórios acreanos ainda se recusam a registrar recém-nascidos indígenas com nomes em suas línguas tradicionais. Após denúncias e relatos de lideranças locais, o Ministério Público Federal recomendou aos cartórios do estado que realizem esses registros, mas a orientação não tem força judicial.
Awa Shanenawa faz parte da liderança jovem e feminina da aldeia, um grupo que luta para resgatar tradições originais de seu povo. Ela conta que os festivais indígenas mantêm a tradição e os costumes, como eram antigamente, com brincadeiras, competições e comidas tradicionais.
São momentos para se divertir, relaxar e também para cuidar da mente e do corpo, diz Awa. "A gente usa muita força, se mela na lama, é um momento para descarregar, não pensar em problemas, apenas brincar e interagir."
"É o dia inteiro tomando matxu, e a noite também", detalha a jovem indígena. "Na nossa tradição é assim, o homem serve para a mulher, e a mulher serve para o homem, mas, por exemplo, se eu te oferecer e você recusar, eu tenho a liberdade de jogar [a bebida] em cima da tua cabeça, te molhar com ela." Mas é tudo na brincadeira, garante Awa. "Na maioria das vezes não precisa, mas acontece."
E a festança segue embalada por muita cantoria. "Nosso povo é muito musical." Segundo Awa, tem música para tudo, plantar, engravidar, brincar, paquerar, agradecer, curar, abençoar. A lista é extensa. Além de receber turistas, os festivais são momentos para a visita de familiares de outras aldeias - em Feijó, há 14 territórios da etnia Shanenawa.
O povo Shanenawa também realiza vivências para imersões na aldeia, geralmente pequenos grupos com cerca de dez pessoas. A divulgação, embora rudimentar, toda feita por um perfil no Instagram (@povoshanenawaoficial), funciona. "A maioria vem de fora do Brasil, de vários países, já recebemos pessoas de Taiwan, Alemanha, França, Estados Unidos, Canadá, entre outros."
"Não temos vínculo com nenhum tipo de agência, fazemos toda a comunicação diretamente", observa a indígena. E a barreira do idioma não é um problema. "Grupos costumam trazer um tradutor, mas quando não tem, usamos o celular." Conduzidos de forma autônoma, os festivais e vivências mudaram a realidade da aldeia Morada Nova. "Hoje é nossa maior fonte de renda", diz Awa.
No dia seguinte, é hora de seguir viagem rumo ao Festival Katxá Nawá Hô Hô Ika. De um precário porto em Feijó, são mais alguns quilômetros pelas águas do rio Envira até chegar à aldeia Huni Kuin Boa União, onde vivem 38 famílias com aproximadamente 140 pessoas. Durante a travessia, um assunto inevitável é o cenário de extrema seca.
No fim de julho, o estado decretou emergência por causa das erosões nos leitos dos rios Acre, em Rio Branco, e Envira, em Feijó. "Talvez a viagem demore um pouco mais", diz o líder indígena Décio Barbosa, ou Biná Huni Kuin, 50, que acompanhou a reportagem no pequeno barco até a aldeia.
Segundo ele, todo verão amazônico é assim, o nível do rio fica muito baixo dificultando a navegação. "Mas este ano está pior", admite ele. "Muitos barcos ficam encalhados em alguns pontos."
Pouco antes da chegada à aldeia, Biná avisa a todos para se prepararem para o jeitinho especial e animado que o povo Huni Kuin tem para receber os visitantes. Em um portal construído com folhagens de bananeiras, quem chega é agarrado pelos braços e levado para o centro da aldeia, o "terreirão", como é chamado por eles. É onde a festa acontece, desde bem cedo até o raiar do dia seguinte.
Entrelaçados por indígenas, turistas são conduzidos por uma dança circular ao redor de uma canoa com frutas. Canções tradicionais e boas porções de banana prata e da bebida matxu fazem parte das boas vindas do povo Huni Kuin. Apesar de o festival acontecer desde 2012, a aldeia Boa União, assim como outras do estado, somente agora está se abrindo para visitantes. Entre os cerca de 800 participantes, em torno de 50 não eram indígenas.
Neste ano a festa foi incluída no calendário oficial do Acre. Biná espera que com o apoio do estado a aldeia consiga melhorar a estrutura para receber mais visitantes. "O Festival Katxá Nawá Hô Hô Ika é a festa dos legumes", diz o líder Huni Kuin.
Ele explica que, além das danças, cantoria, brincadeiras e competições, o objetivo é chamar e celebrar a fertilidade. Por isso, indígenas de aldeias de outras regiões trazem sementes que são colocadas na canoa que fica no centro da aldeia durante todos os três dias da festa.
Trata-se de um ritual antigo que neste ano tem um significado ainda mais especial após as enchentes de rios e igarapés no início do ano que atingiram mais de 20 comunidades indígenas no interior do Acre. Foi a maior cheia do estado e para alguns municípios, como Feijó, o maior desastre ambiental já registrado.
"Perdemos toda a nossa produção de alimentos na alagação", desabafa o cacique Carlos Robeni, o Shane Huni Kuin, 46, da aldeia Nova Olinda, no médio rio Envira. Para participar do festival, ele e um grupo com mais 30 indígenas de sua comunidade passaram quase uma semana em um barco. "Saímos na terça e chegamos na sexta, por causa da seca a viagem está bem mais lenta."
É difícil quantificar o fluxo de turistas no circuito dos festivais, já que a operação é realizada diretamente pelos indígenas desde a origem. No entanto, a Secretaria de Estado de Turismo e Empreendedorismo do Acre estima que mais de 10 mil pessoas participam anualmente dos diversos festivais.
De acordo com dados de 2023 da ForwardKeys, empresa de análise de dados de viagens, e da Embratur, os turistas internacionais no Acre são principalmente dos Estados Unidos, Alemanha e Portugal. Acredita-se que a maioria venha para participar dos festivais e vivências indígenas.
Não é necessário passar muito tempo em uma aldeia para compreender o encantamento que esses lugares e comunidades geram, especialmente entre os estrangeiros. A alegria do povo indígena é contagiante, embora acompanhar o ritmo deles possa ser desafiador. Grupos se revezam constantemente nas danças, nos cantos e nas competições, como a do arco e flecha, onde quem acerta o alvo - um peixe espetado em um tronco de madeira - ganha o alimento.
A energia que colocam nas brincadeiras é impressionante, mesmo em uma simples disputa por um mamão - uma espécie de handebol indígena. A correria pela fruta no chão de terra da aldeia levanta tanta poeira que quase impede a plateia de enxergar o jogo. Mas não importa, logo eles já estão correndo para outra brincadeira.
E o resultado do jogo? Pouco importa, comenta um idoso indígena que acompanhava a competição. O modo de vida indígena é assim: simples e alegre. "Quem ganhou, ganhou; quem perdeu, perdeu", acrescenta o ancião com um sorriso tranquilo.
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