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A princesa Isabel e o marco regulatório

OESP, Economia, p. B2
Autor: KUNTZ, Rolf
12 de Fev de 2004

A princesa Isabel e o marco regulatório
Como modernizar as instituições sem garantir os pilares da ordem social?

ROLF KUNTZ

Ogoverno está mais uma vez dando prioridade ao assunto errado. A grande questão não é saber o que fazer com as terras em que ocorre o trabalho escravo, mas como pegar e condenar os bandidos que escravizam pessoas. A escravidão no Brasil é fato público e notório, tanto quanto o tráfico de armas ou de drogas. Mas quantos exploradores de escravos foram condenados no ano passado? Ou nos últimos dez anos? É esta a pergunta realmente embaraçosa.
Não falta castigo previsto em lei. Veja-se o artigo 149 do Código Penal:
"Reduzir alguém a condição análoga à de escravo - Pena: reclusão de dois a oito anos". Para que servirá a emenda constitucional sobre a desapropriação das terras, se ninguém for condenado por escravizar trabalhadores em fazendas, carvoarias, fabriquetas do tipo sweatshop ou casas de prostituição? O primeiro problema das autoridades não é coletar terras para a reforma agrária, mas combater a escravidão com eficiência e levar os culpados à cadeia.
Não se trata só de proteger direitos humanos, um assunto que fascina os bem-pensantes. Trata-se principalmente de impor o respeito a uma lei que é um dos pilares da ordem social. Ao assinar a Lei Áurea, há quase 116 anos, a princesa Isabel estabeleceu um dos grandes marcos regulatórios da vida brasileira, um dado indispensável à modernização política e econômica do País.
A violação dessa regra, portanto, é mais que um crime comum, apesar de catalogada no Código Penal. É a negação de um dos traços que compõem a identidade política nacional e que definem o caráter do Estado brasileiro. É isso que dá um sentido especial à matança dos quatro funcionários do Ministério do Trabalho, em Minas Gerais, no final de janeiro.
As dificuldades da repressão, dramaticamente realçadas por esse crime, foram descritas por uma auditora do Ministério do Trabalho, Marinalva Cardoso Dantas, numa entrevista recente à revista Carta Capital. Segundo ela, só um fazendeiro foi até agora efetivamente punido, "por volta de 1997", por escravizar trabalhadores. As investigações têm permitido libertar escravos em vários Estados e identificar pessoas envolvidas no crime, algumas com mandato político. Mas a impunidade continua.
Além dos problemas de investigação, há os obstáculos processuais. Por exemplo, como condenar um acusado, se as vítimas desaparecem depois de libertadas? Essa dificuldade, segundo a auditora, vem sendo contornada com um "termo de declaração" obtido da vítima.
Escravidão não ocorre apenas no Brasil. O pesquisador americano Kevin Bales calcula que haja 27 milhões de escravos em todo o mundo, incluídos 200 mil no Brasil e um número entre 50 mil e 100 mil nos Estados Unidos. Ele mencionou essas estimativas - muito precárias, segundo admite - numa entrevista à Folha de S. Paulo. A auditora Marinalva Cardoso Danta mencionou e justificou um cálculo de 40 mil para o território brasileiro. Por maior que seja a disparidade entre as estimativas, todas apontam para um problema de grandes dimensões, que no caso do Brasil é agravado por uma particularidade: boa parte da escravidão ocorre em áreas em que é escassa a presença do poder público. O problema não é apenas uma gravíssima violação da lei, observável também noutros países. É a rarefação do Estado de Direito, carente de meios para cobrir todo o território.
Isso torna o problema da escravidão particularmente desafiante no Brasil. O poder público brasileiro está empenhado em definir marcos regulatórios que ofereçam referências claras e seguras para quem pretende investir na infra-estrutura. A agenda oficial inclui, além disso, projetos de reforma do Judiciário e mudanças da legislação trabalhista e sindical. São passos considerados necessários para a modernização institucional e econômica e para a maior eficácia da ordem jurídica. Ao mesmo tempo, o Estado de Direito é diariamente posto em xeque tanto pelo crime organizado quanto pela exploração impune do trabalho escravo. Se o poder público for incapaz de entender e de enfrentar esse desafio básico, será incapaz, também, de edificar inovações duradouras e seguras nos demais níveis da ordem institucional.

OESP, 12/02/2004, Economia, p. B2

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