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A preservação nas mãos de ribeirinhos

O Globo, Razão Social, p. 12-14
06 de Abr de 2010

A preservação nas mãos de ribeirinhos
Bolsa Floresta beneficia mais de 30 mil pessoas no Amazonas e mantém floresta em pé

Martha Neiva Moreira*
martha.moreira@oglobo.com.br

Aos 11 anos, Isolina da Silva Guerra pisou em uma escola formal pela primeira vez. Até então aprendia em casa com a mãe, que alfabetizou os sete filhos, e com professoras leigas chamadas pelo pai, carpinteiro de barcos da região do baixo Rio Negro, no Amazonas. A recordação deste dia só pode ser entendida por quem mora em meio à natureza imponente da Amazônia e precisa lidar com os obstáculos que ela impõe.

- Foi uma longa viagem. Durou mais ou menos seis horas de barco. Fui da minha casa até a vila mais próxima, onde havia uma escola municipal - conta Isolina, que acabou ficando por lá, longe dos pais e junto com alguns irmãos, até terminar os estudos.

Nascida e criada no Igarapé Tumbira, no Rio Negro, ela sentiu na pele o esforço que a população ribeirinha faz para conseguir aprender a ler e escrever. Pensando nisso, formou-se em Pedagogia. Atenta à importância que a natureza tem para a população local, e preocupada com a preservação da floresta, Isolina foi além. Fez pós-graduação em Gestão Ambiental. Hoje, aos 35 anos, será uma ferramenta importante do Programa Bolsa Floresta, criado em 2008 pela Fundação Amazonas Sustentável com o objetivo de combater o desmatamento em 14 Unidades de Conservação do estado do Amazonas. A partir dos próximos dias, a professora vai dirigir a escola técnica do Núcleo de Conservação e Sustentabilidade do Rio Negro, uma das áreas beneficiadas pelo Programa, que concede R$ 600 anuais a famílias ribeirinhas que se comprometem a não cortar uma árvore sequer. Lá, ela pretende disseminar a consciência nos alunos de que a floresta vale mais em pé do que derrubada.

- Essa idéia ainda é muito nova para eles, mas é urgente - diz a professora. E é a chave das ações da Fundação Amazonas Sustentável, criada em 2007 por uma parceria entre o governo, sociedade civil e setor privado, para desenvolver projetos de combate ao desmatamento com a população que mora e tira seus rendimentos a partir do que a floresta oferece.

A escola técnica, construída com madeira certificada e alguns sistemas sustentáveis, como o de tratamento da água residual, começa a funcionar em poucos dias em regime de alternância com as instituições de ensino da rede estadual do Amazonas. Oitenta alunos de sexta a nona série passarão parte do mês aprendendo sobre técnicas sustentáveis de agroecologia, permacultura e sistemas agroflorestais. Todo este conhecimento será reconhecido e validado pela Secretaria Estadual de Educação do Amazonas, parceira da FAS no projeto junto com empresas do porte do Banco Bradesco e Coca-cola.

- Sem essas parcerias não seria viável desenvolver os projetos - observa João Tezza Neto, economista e diretor técnico-científico da Fundação. Ele explica que na ocasião da criação da FAS o governo do Amazonas e o Banco Bradesco investiram R$ 40 milhões, que constituiu um fundo permanente. A Coca-Cola, em 2009, fez um aporte de mais R$ 20 milhões - valor de cada cota oferecida às empresas que quiserem se tornar parceiras da Fundação. E Hector Nuñez, presidente do Walmart Brasil, se comprometeu no Fórum Internacional de Sustentabilidade, realizado em Manaus, no final do mês, a avaliar a possibilidade de a rede de varejo dar seu apoio com a compra de mais uma cota.

São esses investimentos aplicados a longo prazo que, segundo Tezza, garantem a perenidade dos projetos da FAS, entre eles o Bolsa Floresta, que em 2009 beneficiou 6.325 famílias -ou 30.717 pessoas -de 541 comunidades, espalhadas por quatros regiões: Solimões, Jutai-Jurua, Negro-Amazonas e Madeira.

Para fazer parte do Programa, cada família -representada sempre pela mulher - assina um termo de compromisso com a FAS, condicionado ao fato de crianças e jovens da família estarem matriculados na escola e a mulher-representante ter número de CPF. Além dos R$ 600, o Bolsa Floresta paga ainda R$ 50 mensais por família que aderiu ao compromisso, e reserva uma verba para investimento em educação, saúde e transporte nas áreas onde está presente. A escola técnica do Rio Negro é um exemplo. As associações de moradores também recebem um percentual (10%) do total do valor repassado às famílias. Em todas as Unidades em que está presente, 11 associações já recebem apoio.

- Se a família desistir, a associação perde recurso. É uma forma que temos de garantir o compromisso das famílias - conta Tezza.

O fato de as famílias receberem para não derrubar a floresta ainda gera, segundo a professora Isolina Garrido, desconfianças de alguns ribeirinhos.
Sua prática era outra: estavam habituados a receber R$ 600 por metro cúbico de madeira cortada no mercado ilegal.

- Algumas pessoas perguntam-me porque estão recebendo para deixar a árvore em pé, e não cortá-la - diz a professora, que explica ser sinal de um tempo em que já é necessário pensar em como explorar a floresta sem ter que acabar com ela e, mais do que isso, como oferecer às populações que vivem dos produtos florestais uma renda de forma sustentável.

- É preciso projetos de geração de renda para esta população - aponta Mario Mantovani, diretor da Fundação SOS Mata Atlântica e membro do Conselho de Administração da FAS.

No Núcleo do Rio Negro, onde mora a professora Isolina e onde a escola funcionará, a FAS está investindo também em projetos de ecoturismo e manejo florestal sustentável, para os quais foram destinados em 2009 um valor de cerca de R$ 140 mil. As atividades foram escolhidas pelos próprios moradores da região. Seis projetos na área de manejo já foram aprovados.

- Muitos moradores daqui viviam da venda de madeira, por isso escolhemos o manejo da floresta - conta Roberto Garrido, presidente da Associação de Moradores da Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Rio Negro, área da UC em que está localizado o Núcleo. A exploração será iniciada ainda este semestre e vai render para cada uma das 25 famílias moradoras do local, um valor de até R$ 4 mil anuais.

- Já tem uma fábrica de São Paulo interessada.

Vamos entregar a eles a madeira já beneficiada - informa Garrido, que explica que nos 500 hectares do Núcleo já existem 200 árvores possíveis de serem cortadas. - Para cada árvore cortada, no plano de manejo, é preciso ter duas da mesma espécie nas proximidades. Chamamos de árvores avó, mãe e filha. Cortamos a avó - completa Garrido.

A partir deste ano, a Fundação Amazonas Sustentável conta com um reforço de R$ 19,2 milhões.
O recurso foi repassado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), via Fundo Amazônia.

- O valor será investido em projetos de educação, em melhorias nos projetos de combate ao desmatamento e em projetos de verificação do resultado do Programa, ou seja, quanto foi preservado - diz João Tezza Neto.

Fórum debate o tema

Projetos como o Bolsa Floresta servem de exemplo para o tema que dominou os debates no Fórum Internacional de Sustentabilidade. Entre os dias 26 e 27 de março, em Manaus, empresários, representantes do governo federal e estadual, além de cientistas, ambientalistas e celebridades sensíveis a causa ambiental, como o ex vice-presidente americano, Al Gore, e o cineasta James Cameron, discutiram e defenderam o potencial econômico da floresta em pé e os serviços ambientais que ela oferece. O convite foi feito pela empresa Lide e pelo governo do estado do Amazonas.

- A floresta amazônica representa 60% de todo o território nacional. Suas matas abrigam uma população de cerca de 25 milhões de pessoas e 66 etnias de povos indígenas. Se este povo tiver que cortar árvore para dar de comer a filho, vai cortar.
Sem alternativa de renda, ele não vai preservar a floresta- disse, na abertura do evento, Eduardo Braga, governador do Amazonas que se desincompatibilizou do cargo para concorrer ao Senado.

Este foi também o tom da palestra seguinte, feita pelo cientista Thomas Lovejoy, que falou sobre as estratégias de conservação da floresta. Ele lembrou que o Amazonas tinha o monopólio da borracha e que, depois que sementes de seringueira foram enviadas clandestinamente a um instituto de pesquisa na Inglaterra, em 1876, em uma ação típica de biopirataria, acabaram despachadas para o sudeste da Ásia, onde se tornaram a base da bem sucedida indústria de borracha local.

- Não se pode deixar que histórias assim aconteçam novamente. Os povos que moram ali devem poder ter maneiras de receber por produtos que a floresta oferece. O grande desafio para a sustentabilidade da Amazônia é envolver esses povos com empresas privadas e setores públicos. Já existe um exemplo aqui mesmo sendo feito, o projeto Juma - disse Lovejoy.

O projeto a que ele se referiu, o Juma, é da Fundação Amazonas Sustentável (FAS) e conseguiu dar contornos econômico, na prática, para a vedete da economia de baixo carbono: o REDD, ou o mecanismo de Redução de Emissões para o Desmatamento e Degradação. Trata-se de uma operação para compensar financeiramente donos de matas naturais que se comprometam a preservar áreas de floresta e combater o efeito estufa. Em linhas gerais, funciona assim: calcula-se o potencial de sequestro de carbono de uma determinada área, e comercializa-se os créditos.

Os "donos" em questão são 44 comunidades da região do Rio Madeira, onde o projeto funciona. Eles serão beneficiados com a operação de REED da FAS que, entre seus parceiros, tem a rede Marriot de hotéis, que investirá nada menos do que U$ 500 mil durante quatro anos no projeto.

O recurso virá da cobrança de U$ 1 pela neutralização de carbono de cada hóspede, por noite. O recurso será revertido integralmente para os projetos da Reserva do Juma, que beneficiam 338 famílias. Com a iniciativa, a expectativa é que se evite a emissão de 3.611.723 toneladas de gás carbônico. Mas, para entrar em operação, precisa aguardar que os governos criem os marcos regulatórios para as operações de REDD.

O apelo no Fórum, tanto por parte de ambientalistas quanto dos empresários, foi que, no caso do Brasil, a legislação fosse votada até junho, por conta das eleições de outubro. Só que o debate é complexo, como apontou o senador Aloízio Mercadante (PT), presente no evento como representante do governo federal:
- A questão esbarra na regularização fundiária. Esta disputa tem um aspecto econômico fundamental. O levantamento macroecológico através do zoneamento já está feito. Precisamos é levantar o que existe de ocupação -disse Mercadante, para quem é necessário se pensar também em uma reforma tributária verde. - Para que esses povos consigam ganhar com os produtos é necessário desonerar os que são sustentáveis e onerar os que impactam o meio ambiente - afirmou o senador.

Os incentivos apenas, na opinião de Flávia Grosso, superintendente da Suframa (Superintendência da Zona Franca de Manaus), que participou da mesa "A responsabilidade das empresas na criação de uma economia sustentável na Amazônia", ainda não são suficientes.

- Os empresários do país precisam conhecer o potencial dos produtos florestais. É possível, por exemplo, fazer chocolate da semente de Cupuaçu. Temos milhões de frutos que podem se transformar em sucos para serem exportados.

Mas acho que ainda falta um conhecimento sobre a Amazônia.

Entre os empresários que estavam ali, a preocupação expressada foi com as salvaguardas. Ou seja, o que vai garantir que investimentos em projetos sustentáveis que beneficiem as comunidades não fiquem sujeitos às trocas e vontades políticas. Leis e políticas públicas de incentivo fiscal, foi um exemplo citado por Eduardo Braga, que criou no estado do Amazonas mecanismos de isenção de ICMS para produtos florestais. Mas ficou claro também, na fala de alguns palestrantes, que uma economia sustentável exige que se viabilize os povos que vivem na floresta.
Afinal são eles, na avaliação de Mario Mantovani, da SOS Mata Atlântica, que vão garantir, na prática, que as ações permaneçam. Até porque são os beneficiados.

Em sua palestra, que tratou da experiência de criação do filme "Avatar", o cineasta James Cameron também defendeu os povos que vivem na floresta e ressaltou que o apoio a eles é urgente:
- Precisamos favorecer e apoiar os guardiões da floresta. Eles têm lições que podem nos ensinar - disse Cameron, que fez um apelo ao presidente Lula para não levar adiante o projeto da Usina de Belo Monte, no Pará.
Para o ex vice-presidente norte americano, Al Gore, também presente no evento, "a região amazônica será a salvaguarda do futuro do Brasil e do mundo".

- O futuro da cura de pragas da humanidade, como o câncer, com certeza está na Amazônia.

Gore ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 2007 pelo seu esforço em prol do fim do aquecimento global. Ele defendeu a necessidade de o mundo se unir num plano para estipular um preço ao carbono, frisando a importância da aprovação de um mecanismo de redução das emissões geradas com o desmatamento.

- É importante que haja um preço para o carbono, que as pessoas saibam que as emissões têm um preço. Isso deveria ter sido o cerne de Copenhague (na Conferencia do Clima, não foi.
Esperamos que seja resolvido no México, no fim deste ano, quando vai acontecer a COP-16.
*A repórter viajou a convite da CDN Comunicação Corporativa

James Cameron
Precisamos favorecer os guardiões da floresta. Eles têm lições que podem nos ensinar.

Al Gore
O futuro da cura de pragas da humanidade, como o câncer, com certeza está na região Amazônica.

Thomas Lovejoy
O desafio é a parceria entre governo e empresas para garantir a sustentabilidade da Amazônia.

O Globo, 06/04/2010, Razão Social, p. 12-14

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