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As pragas do agronegócio

Veja, Agricultura, p. 118-121
10 de Mai de 2006

As pragas do agronegócio
Ferrugem asiática, aftosa e gripe aviária são algumas das razões da crise na agropecuária. Mas a maior delas é a falta de visão dos produtores

José Edward

As crises da agricultura brasileira são cíclicas. Desde os anos 80, há duas delas por década. A mais recente começou em meados de 2004. Até o fim deste ano, ela imporá prejuízos de 30 bilhões de reais ao setor. As dívidas dos fazendeiros ultrapassarão a casa dos 50 bilhões de reais. As estimativas mais conservadoras indicam que 100.000 postos de trabalho no campo devem desaparecer. Poucas vezes na história o setor sofreu danos tão grandes, mas esse é apenas um dos aspectos singulares da crise atual. A maior novidade é que, pela primeira vez, o governo é incapaz de resolver o problema. Em abril, tentou um expediente desse tipo e liberou 17 bilhões de reais para rolar as dívidas dos fazendeiros com os bancos oficiais. Pouco adiantou, porque grande parte dos débitos dos agricultores foi contraída junto às grandes tradings internacionais que exportam a produção brasileira de grãos. Na última safra, que foi colhida até abril, empresas como a Cargill, ADM e Bunge concederam cerca de 30 bilhões de reais em financiamentos aos agricultores. Os analistas do setor estimam que 40% deles não terá como pagar os empréstimos.
A maior parte do calote deve vir dos produtores de soja, que impulsionou o saldo da balança comercial brasileira nos últimos anos. O Brasil é o segundo maior exportador do grão, um mercado que está em contínua expansão desde 2000 por causa do aumento da demanda da China. Os preços da commodity continuam altos, mas os negócios com soja sofreram duros reveses a partir de 2004. O principal deles foi a desvalorização do dólar, que reduziu a receita obtida com as exportações do grão. A oscilação cambial surpreendeu os agricultores. A maioria dos grandes produtores, no entanto, poderia ter evitado as perdas fazendo operações de hedge cambial no mercado de futuros. Essas operações reduziriam sua margem de lucro, mas também impediriam que as flutuações do dólar pusessem seu negócio em risco. Em vez disso, optaram por investir os lucros obtidos nos anos de vacas gordas na aquisição de novas terras, tratores e insumos agrícolas. Neste ano, as perdas foram agravadas pelo alastramento da ferrugem asiática, causada por um fungo que reduz a produtividade da lavoura. A praga chegou ao Brasil em 2002. Poderia ter sido controlada de duas formas, ambas onerosas. A primeira envolve o uso de pesticidas, que são caros. A outra, com o cancelamento das safras de inverno - a irrigação, muito necessária nesse período, facilita a proliferação do fungo. A doença já provocou prejuízos de 7 bilhões de reais. "É uma praga devastadora que pode inviabilizar a cultura da soja no país", afirma o agrônomo André Pessôa, da Agroconsult.
No fim do ano passado, os produtores de soja começaram a parar de pagar suas dívidas com as tradings internacionais - que, com isso, acumulam fortes prejuízos. Na última semana, a Bunge anunciou que seu lucro mundial já caiu 41% neste ano por causa das perdas no agronegócio brasileiro. O calote atual dificulta ainda mais a relação dos fazendeiros com as tradings, que financiam 60% da lavoura de soja no país. Os problemas tiveram início em 2004, quando fazendeiros de Goiás e do Paraná recorreram à Justiça para quebrar os contratos que haviam firmado com as exportadoras. Eles haviam se comprometido a vender a tonelada de soja por 10 dólares. Como o preço subiu para 17 dólares, recusaram-se a cumprir o contrato. A quebra de contratos, uma das pragas do Terceiro Mundo, ocasionou uma perda de 1,2 bilhão de reais para as tradings em 2004. No ano passado, essas exportadoras obtiveram vitórias importantes nos tribunais. Só que, escaldadas, elas passaram a exigir que as safras, os equipamentos e as terras dos agricultores fossem dados em garantia aos contratos. Por isso, quem der calote desta vez corre o risco de perder o patrimônio.
A conjunção de fatores negativos sobre a soja não causará danos intransponíveis à balança comercial neste ano. Apesar dos problemas cambiais, o endividamento e a ferrugem asiática, a safra nacional de grãos deverá saltar de 114 milhões de toneladas no ano passado para 122 milhões de toneladas em 2006. O impacto da crise só terá efeito no comércio exterior em 2007, porque as tradings já avisaram que reduzirão os empréstimos para plantio e colheita de soja. "Na melhor das hipóteses, as multinacionais vão aumentar o custo dos financiamentos da próxima safra e o governo tem poucos instrumentos para resolver esse problema", afirma o economista Guilherme Dias, que elaborou a política agrícola no governo Fernando Henrique Cardoso.
A crise também atingiu os exportadores de carne bovina e de frango, setores em que o Brasil também lidera as exportações mundiais. No caso da carne bovina, os prejuízos foram causados pelo aparecimento, no ano passado, de focos de febre aftosa em Mato Grosso do Sul e no Paraná. Em conseqüência da contaminação do gado, 56 países suspenderam as importações do Brasil, provocando prejuízos estimados em 3 bilhões de reais. A nova epidemia foi decorrência de um misto de incompetência do governo e malandragem dos criadores. Brasília afrouxou o controle sanitário feito sobre as fazendas para garantir a vacinação do gado. Os criadores, por sua vez, aproveitaram a brecha para fingir que tinham vacinado seu rebanho. Alguns assumiram riscos ainda maiores importando gado do Paraguai, que não exerce nenhum controle sobre a saúde do seu rebanho. Já os produtores de frango foram vítimas do acaso. Estão entre os mais eficientes do mundo, mas foram atingidos pelo temor da gripe aviária. O Brasil está fora da rota da doença e, até agora, não foi identificado nenhum sinal do vírus H5N1 em território nacional. Apesar disso, a queda no consumo de frango no mundo todo fez com que as exportações caíssem 20%. Os exportadores resolveram compensar as perdas reduzindo as compras de animais das granjas. Como a mercadoria que seria exportada foi destinada ao mercado interno, isso derrubou o preço do produto.
Mais uma vez, os agricultores dos setores atingidos pela crise reclamam ajuda oficial para sair do buraco. Nas últimas semanas, tornaram-se freqüentes as cenas de interdição de rodovias e queima de bandeiras nacionais e de tratores em frente a agências do Banco do Brasil. São manifestações anacrônicas. O governo não pode saldar a dívida dos produtores de soja com as tradings nem obrigar outros países a comprar carne e frango brasileiros. Tem dificuldade até para ajudar diretamente os produtores. Há vinte anos, por falta de dinheiro, o Brasil começou a reduzir os subsídios concedidos à agricultura. No fim dos anos 80, eles alcançavam 20% do PIB agrícola. Hoje, não ultrapassam 3%. É um dos menores do mundo, e é bom que seja assim por uma questão de responsabilidade fiscal. Só para efeito de comparação, esses subsídios chegam a 17% nos Estados Unidos e a 34% na União Européia - taxas absurdas, pagas pelos contribuintes americanos e europeus e que prejudicam o livre-comércio internacional. Apesar de reconhecer que tem pouco espaço de manobra, o ministro da Agricultura, Roberto Rodrigues, ainda prometia no fim da semana passada um novo pacote de auxílio aos agricultores. Mas o que eles precisam mesmo é de mais visão - o que inclui exigir com firmeza do governo a melhoria da infra-estrutura brasileira, cuja precariedade é um ralo pelo qual se perdem os ganhos de produtividade. Se a agricultura é uma atividade de grande risco, por contar com uma série de fatores imponderáveis, cabe aos produtores precaver-se permanentemente. Mesmo que isso signifique diminuir suas margens de lucro nos períodos de abundância. Não se é capitalista privatizando os ganhos e socializando os prejuízos.

O tamanho da crise no campo

Os prejuízos em 2005 e 2006 somam 30 bilhões de reais

As dívidas do agronegócio chegam a 50 bilhões de reais

40 % dos produtos estão inadimplentes

100 000 empregos desaparecerão até o fim do ano

Do que os agricultores reclamam...

Prejuízos com a desvalorização do dólar, que reduziu a receita obtida com as exportações

0 preço dos fertilizantes e do óleo diesel, que estão entre seus principais insumos, subiu mais de 50% em dois anos

Passaram a ter de comprar fungicida para combater a ferrugem asiática, uma praga da soja

56 países suspenderam a importação de carne nacional por causa da volta da febre aftosa

...E como poderiam ter evitado tais problemas

As perdas cambiais teriam sido reduzidas com operações de hedge, disponíveis no mercado de futuros

0 impacto da alta dos preços poderia ter sido amenizado com tecnologias que racionalizam a aplicação dos insumos

0 contágio da lavoura seria menor se a safra de inverno tivesse sido cancelada. Isso porque a irrigação, mais necessária
nesse período, ajuda a alastrar a praga

A adoção de medidas sanitárias adequadas pelos pecuaristas teria evitado a volta da aftosa

Dados da safras 2004/2005, 2005/2006 e estimativas para a de 2006/2007

Veja, 10/05/2006, Agricultura, p. 118-121

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