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Povos indígenas reivindicam participação no debate sobre regime internacional

Carta Maior-Brasília-DF
Autor: Jonas Valente
30 de Mar de 2006

Para as lideranças indígenas presentes na COP-8, soa irônico que os países queiram discutir a repartição de benefícios sem ouvir os detentores destes recursos.

Um dos pontos mais polêmicos da oitava reunião das partes da Convenção de Diversidade Biológica (COP-8) é a definição de regras para o acesso aos recursos genéticos provenientes dos conhecimentos tradicionais e para a repartição dos benefícios econômicos e não-econômicos derivados da utilização desses recursos. Quase ao final do evento, permanece o mesmo impasse evidenciado na reunião preparatória de Granada. Os países em desenvolvimento, entre eles os megabiodiversos, defendem a adoção de um regime internacional que estabeleça normas nesta área, mas a posição tem sido barrada por um grupo formado por nações como Japão, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e os EUA, que apesar de não fazer parte da Convenção buscam influenciar nela. Estes países buscam protelar ao máximo a criação de um sistema intenacional que regule e estipule sanções para o uso de recursos genéticos oriundos de conhecimentos tradicionais.

Em meio à disputa, tentam entrar no tabuleiro os atores mais interessados no jogo: os povos indígenas e comunidades tradicionais. As vésperas da conclusão das negociações, os representantes indígenas organizados no Fórum Indígena Internacional pela Biodiversidade (FIIB) buscam garantir sua participação no grupo específico que está discutindo a criação do regime internacional (Grupo de Trabalho ABS, na sigla em ingês). Para as lideranças presentes na COP-8, soa irônico que os países queiram discutir a repartição de benefícios sem ouvir os detentores destes recursos. "Nós não compreendemos como as pessoas querem dividir benefícios se nós não consentimos com o acesso. Nossa voz está sendo sufocada dentro da criação de um regime que vai divdir benefícios sobre os nosso conhecimentos", critica Fernanda Kaingáng, do Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade Intelecutual (Inbrapi).

Segundo Fernanda, ao poderem intervir apenas como observadores, os povos indígenas são excluídos dos verdadeiros espaços de decisão dos documentos da Convenção: os grupos de contato. Como as decisões são tomadas por consenso, sempre que há divergência sobre um ponto é criado um grupo solução de controvérsias entre governos para dirimir as diferenças e buscar um texto que contemple a posição das partes. "Nós queremos fazer parte deste grupos de amigos do presidente, que decidem a portas fechadas as questões, sejam quais forem os mecanismos. Queremos que nossa participação plena e efetiva seja respeitada, sob pena desta participação ser só retórica", reivindica".

O FIIB quer no GT ABS a mesma participação direta que possui no grupo destinado a debater o artigo 8j da Convenção, que trata dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade. Neste segundo espaço, os indígenas têm poder de voz igual aos governos e são reconhecidos como parte nas negociações. Já no grupo de trabalho específico para a criação do regime internacional, os representantes destas populações vêm encontrando resistência por parte dos países megabiodiversos desde Granada. "Eles participarão normalmente como observadores, mas não tomarão mais parte na coordenação das discussões. Isso foi possível no primeiro GT porque o Artigo 8j da CDB refere-se exclusivamente às populações indígenas e tradicionais, o que não é o caso desse segundo GT, pois acesso e repartição de benefícios diz também respeito a outros grupos sociais. Imagina se, por exemplo, os empresários ou outros setores pedissem também para participar de forma especial das discussões? Isso inviabilizaria os trabalhos e, por isso, ficou decidido que, no GT sobre Repartição de Benefícios, somente os delegados governamentais terão participação mais efetiva", disse a diplomata brasileira Adriana Tescari à época da reunião preparatória.

Outro ponto da divergência está na compreensão de quem é a propriedade dos conhecimentos. As nações ricas em biodiversidade argumentam que o regime deve ser debatido pelas nações, pois elas são soberanas sobre seus recursos genéticos. Uma das justificativas dos países megadiversos para a construção de um regime internacional negociado pelos países seria o urgente impedimento do processo de expropriação de recursos genéticos de forma não consentida, ou biopirataria, que vem sendo promovido pelos países mais ricos. Mas este argumento é refutado pelas lideranças indígenas. "Os estados querem sua parte na repartição de benefícios mas eles não querem repartir estes benefícios com as comunidades indígenas, que são detentores dos conhecimentos", diz Estéban Castro Dias, representante do povo Kuna do Panamá e integrante do FIIB.

Ontem, após diversas articulações das lideranças indígenas, o Grupo de Países da América Latina e Caribe (GRULAC) apresentou proposta de incorporação do FIIB nos debates, mas manteve sua restrição à dar a estes representantes poder de negociadores. O documento decide "continuar apoiando a participação de representantes de povos indígenas e comunidades locais no processo de elaboração do regime internacional sobre acesso e repartição de benefícios, especialmente nos elementos relevantes relevantes à proteção dos conhecimentos tradicionais associados aos recursos genéticos". A proposta coloca também a necessidade de os governos facilitarem a participação destes povos nas suas delegações e levarem em conta suas opiniões na formação das posições a ser apresentadas nas reuniões da COP.

DIREITOS PRIMEIRO, REGIME DEPOIS

Outra divergência dos povos indígenas no debate sobre a criação de regime internacional é o ritmo. No Grupo de Trabalho de Repartição de Benefícios, enquanto os países megabiodiversos pressionam para seja iniciado um processo de negociação a partir do documento produzido em Granada para ser concluído na próxima COP, as nações mais ricas vêm buscando emperrar o debate apresentando divergências (os chamados colchetes na linguagem diplomática) e propondo a realização de estudos sobre as legislações nacionais antes de tomar qualquer decisão. Já para os indígenas, é preciso garantir seus direitos antes de institucionalizar quaisquer normas para o acesso aos seus conhecimentos. "Antes de se construir qualquer regime internacional temos que garantir os direitos dos povos indígenas. Nós não podemos assinar um documento em branco. O regime precisa ser coerente com os preceitos que estabelecem e protegem os direitos humanos", afirma Estéban Diaz.

Diaz cita como exemplo a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho, como referência de garantias dos direitos de indígenas. Para as lideranças, é incoerente que as CDB respeite as decisões de outros acordos e instâncias internacionais, como a Organização Mundial do Comércio e o Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS) mas desrespeite a resolução da OIT. "Eles ignoram a convenção 169 por que ela é vinculante e determina que deve ser respeitada a participação plena e efetiva dos povos indígenas na elaboração de políticas públicas. O quão plena e o quão efetiva está sendo a participação da população indígena aqui?", questiona Fernanda Kaingáng.

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