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Povos indígenas e ações afirmativas no Brasil

Boletim PPCOR, ago. 2006
Autor: LIMA, Antonio Carlos de Souza; H0FFMANN, Maria Barroso-
31 de Ago de 2006

Povos indígenas e ações afirmativas no Brasil

O momento político presente coloca à sociedade brasileira a crucial tarefa de se enfrentar como racista e discriminatória, revelando mecanismos, sejam os sutis e adocicados, sejam os extremamente cruéis e violentos, pelos quais as desigualdades sociais crescem, ao mesmo tempo e em maior proporção, que o crescimento econômico. Parte desse processo de discussão tem sido visibilizado nacionalmente pelo debate em torno das propostas de ação afirmativa, notadamente das "cotas" para o ensino superior.

Polarizado pelas propostas de políticas governamentais inspiradas nas idéias de combate ao racismo, de promoção da diversidade e de "inclusão social" e, sobretudo, pautado por importantes avaliações da situação dos negros no Brasil, o debate tem se mostrado pouco atento às especificidades dos povos indígenas no país, isto quando os incorpora. Para entender tal omissão, é importante chamar a atenção para os preconceitos mais freqüentes que os cidadãos brasileiros, negros, brancos, pardos e mesmo àqueles que se reconhecem e são reconhecidos enquanto indígenas, adquirem ao tomarem contato com a escola, com os livros didáticos - e devemos lembrar que não há nenhuma lei que mencione a necessidade do estudo no Brasil da história dos povos indígenas -, em contraponto a literatura, a mídia e o senso comum largamente disseminado. Produto de informações e estímulos variados, o índio, essa categoria originada nos processos de colonização que engendraram países como o nosso, é um ente dos primórdios da nacionalidade, do momento em que o europeu inventa a América, e os americanos.

Antonio Carlos de Lima
Antonio Carlos de Souza Lima é professor de Etnologia do Departamento de Antropologia/Museu Nacional-UFRJ, onde é pesquisador, orientador de pesquisas e docente de pós-graduação, além de co-coordenador do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED)

Maria Barroso-Hoffmann É mestre e doutoranda em Antropologia Social (PPGAS/Museu Nacional) e pesquisadora associada do LACED. Coordenam, para o período de 2004-2007, o projeto Trilhas de conhecimentos: o ensino superior de indígenas no Brasil (www.laced.mn.ufrj/trilhas), financiado com recursos da Pathways to Higher Education Initiative, da Fundação Ford.

Nessa versão da história do continente americano, os povos autóctones, signos de uma diferença inferiozante e desqualificadora, estavam destinados a se diluirem pela mestiçagem biológica, componentes de nações conduzidas pelas elites surgidas nas colônias, descendentes sócio-culturais do conquistador europeu. Tranformando-se num personagem genérico ao longo da história colonial, os povos indígenas, sob a forma desse personagem - o índio -, teriam legado aos brasis que surgiram Américas afora: costumes, hábitos, temperamentos, artefatos, produtos muitas vezes reduzidos a ingredientes de uma nova nação, componentes singularizantes de misturas específicas e que os nacionalismos gostam de acreditar que são únicas, sem paralelos. Para essa lenda, pouco importa que o trabalho indígena, escravo ou servil, tenha sido essencial em diversas regiões do país, pois esse índio idealizado é sempre nosso ancestral de penas, morando nas selva, de arco e flecha na mão, desnudo e canibal, eternamente dançando, "sem fé, nem lei, nem rei" mas símbolo de "nossa" (nação pós-colonial) autoctonia e pretensões geopolíticas. Hoje os povos indígenas que existem, após séculos de dominação colonial e intensas políticas de assimilação, quando não se encaixam nessa imagem corriqueira, são tidos como "remanescentes", simulacros do verdeiro índio, obstáculos ao desenvolvimento e mais um símbolo de nosso tão relativo "atraso".
Esse modo recorrente de se abordar a presença dos povos autóctones, reproduzido pela própria situação colonial que estrutura numerosas relações entre redes sociais e territoriais na sociedade brasileira, contrapõe-se a uma realidade da qual os governantes do Brasil têm se desincumbido sofrivelmente: se ainda hoje não temos procedimentos censitários acuradamente desenvolvidos para confirmar a cifra gerada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de que seriam hoje 734.127 indivíduos indígenas, o equivalente a em torno de 0,2% da população brasileira, o que é certo é que estamos diante de uma riqueza ímpar no planeta, pois são mais de 230 povos, falando 180 línguas - fora aqueles que falam apenas o português, tendo perdido suas linguas de origem em função da violência assimilacionista do processo de colonização, constituindo-se no maior leque da diversidade humana contido num país.
Portadores de tradições culturais e vivendo histórias específicas, o mais importante é que estes poucos indivíduos, numericamente falando, além de serem em tudo muito diferentes entre si, são os ocupantes e possuidores legítimos de mais de 12,33% das terras do Brasil, soma das mais de 580 terras indígenas (T.I.s) reconhecidas até o momento, num total de mais de 106.386.331 hectares. Dessas, 405 áreas, num total de em torno de 103.483.167 hectares, estão situadas na Amazônia Legal, constituindo-se em aproximadamente 20,67% de seu território e em mais ou menos 98,61% de todas as terras indígenas do país (os dados mais confiáveis estão em www.socioambiental.org). Só no Piauí e no Rio Grande do Norte não se reconhece, no momento, a presença de povos indígenas e dois dos, numericamente, maiores povos indígenas no Brasil, Kayowá-Ñandeva (Guarani) e Terena, estão situados não na Amazônia, mas no Mato Grosso do Sul, cercados por extensas plantações de soja.
Muitas das terras indígenas estão situadas em regiões especialmente ricas, do ponto de vista dos recursos naturais ou dos interesses do agro-negócio, ou ainda em pontos geopolíticos estratégicos do mapa do país. Graças aos modos de vida e às culturas indígenas, dentre as T.I.s, mostram-nos as fotografias de satélites, estão as partes mais preservadas da floresta equatorial amazônica em termos de conservação da cobertura vegetal, de uso dos recursos naturais, da biodiversidade, em contraponto ao galopante processo de sua destruição. Se são poucos, demonstram, porém, fortes evidências de crescimento vegetativo, a julgar por dados mais confiáveis provenientes de algumas regiões - seja os dados do próprio IBGE, seja os da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), seja os da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) ou os da ONG Instituto Socioambiental (ISA). Poucos e muito pobres, em confronto com a riqueza de suas terras.
Falar de indígenas é, pois, falar de integrantes de coletividades territorializadas, cujos direitos culturalmente diferenciados foram reconhecidos pela Constituição de 1988, sobretudo em seu capítulo VIII, e também em outros dispositivos esparsos. Em junho de 2002, através do Decreto n. 143, o governo de Fernando Henrique Cardoso finalmente assinou a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, da Organização Mundial do Trabalho, válida a partir de 2003 em nosso país. Isto implica não apenas reconhecer-lhes o direito à auto-definição (é índio quem o diz o ser e é identificado enquanto tal por um povo que o engloba), dentre outros itens necessários à sua identificação como indígenas, mas também o direito fundamental de serem respeitados enquanto povos, coletividades cultural e historicamente diferenciadas dentro da nação brasileira, sem que isso signifique pleito à soberania territorial, nos termos do direito internacional. Para um país de larga tradição assimilacionista como o Brasil, cujo corpus jurídico é avesso ao reconhecimento dos direitos de coletividades, estaríamos, se as leis fossem de forma integral e cotidianamente cumpridas, no limiar de algo muito novo.
Até a Constitução de 1988, resultado da intensa mobilização de indígenas e de seus aliados, os indígenas estavam submetidos ao regime tutelar no plano da lei, através do artigo 6o do Código Civil brasileiro, eram os "selvícolas", incluídos entre os "relativamente incapazes", junto a maiores de dezesseis/menores de vinte e um anos, mulheres casadas e pródigos, em vigor desde 1917. Este status resultou da ação de Cândido Mariano da Silva Rondon, um dos vultos de nossa "nacionalidade", e de seus correligionários, na esteira de um debate sobre a necessidade de se exterminar fisicamente a presença indígena no Brasil, criando, em 1910, o Serviço de Proteção aos Índios. O SPI deveria fornecer-lhes uma proteção especial, e para isso o órgão foi legalmente reconhecido como seu tutor, com a lei no 5.484, em 27 de junho de 1928, que atribuiu-lhe a tarefa de executar a tutela de Estado sobre o status jurídico genérico de índio, sem deixar claros os critérios que definiam a categoria sobre a qual incidia. Assim, os povos indígenas do Nordeste, por não serem enquadráveis no estereótipo do "índio nu de pena na cabeça", tiveram de lutar (e até hoje lutam) por décadas para serem objeto de proteção oficial.
Com a extinção do SPI, em 1967, instituiu-se a FUNAI, e a Lei no 5.484/28, foi substituída pelo Estatuto do Índio, Lei no 6001, de 19 de dezembro de 1973. Estamos aí, mal ou bem, diante de uma política de tratamento diferenciado de um segmento social no Brasil, sendo que os indígenas ao mesmo tempo são suas vítimas e beneficiários. A ação tutelar mereceria ser melhor avaliada no contexto atual de luta pelas ações afirmativas, pela sua proposta de política compensatória e pela sua longa permanência, cujos efeitos negativos (e nem todos o foram) continuam a se fazer sentir sob algumas das suas formas mais nefastas.
A Constitução ensejou ainda a percepção - por motivos muito diversos -da importância de que outras ações federais, junto aos povos indígenas, surgissem fora do monopólio tutelar da FUNAI e de seu porta-vozismo assistencialista, dando lugar ao delineamento de políticas específicas para os indígenas, nos Ministérios da Saúde (MS), da Educação (MEC), do Meio-ambiente (MMA), e mais recentemente do Desenvolvimento Agrário (MDA). A partir de 1999 os indígenas participaram intensamente da gestão dos "distritos sanitários especiais indígenas" criados pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) para atendê-los, num embrião do que seria um Sistema Único de Saúde (SUS) coerente não apenas com as condições de vida dos indígenas, mas aplicável à região amazônica, ainda que precise ser revisto para outras partes do Brasil indígena. Do mesmo modo, os povos indígenas participam em diversos planos, dentre eles por intermédio de uma "Comissão Nacional de Professores Indígenas" e de uma representação no Conselho Nacional de Educação - CNE, sobre a política elaborada e gerida pelo MEC para a educação fundamental diferenciada, preconizada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996), e executada pelas secretarias estaduais e municipais de educação, rumando para o equacionamento de um ensino médio e reivindicando o acesso à universidade, de modo a garantir competências para melhor gerir seus territórios.
É face esse quadro - e não a uma suposta e mesma "exclusão", genérica para todos os excluídos -, que vêm se afirmando as demandas indígenas por educação superior e pelo reconhecimento da necessidade do diálogo da universidade com seus conhecimentos tradicionais. Caso isso se configure teremos uma verdadeira revolução do sistema de ensino superior no país. Por meio de suas organizações e outras formas de representação, os povos indígenas têm reivindicado a universidade enquanto espaço de formação qualificada de quadros não apenas para elaborar e gerir projetos em terras indígenas, mas também para acompanhar a complexa administração da questão indígena no nível governamental, distribuída entre diversos ministérios. Querem ter condições de dialogar, sem mediadores brancos, pardos ou negros, com estas instâncias administrativas, ocupando os espaços de representação que vêm sendo abertos à participação indígena em conselhos, comissões e grupos de trabalho ministeriais em áreas como as de educação, saúde, meio ambiente e agricultura, para citar as mais importantes. Desejam poder viver de suas terras, aliando seus conhecimentos com outros oriundos do acervo técnico-científico ocidental, que lhes permitam enfrentar a situação de definição de um território finito.
Este debate está apenas engatinhando no caso das carreiras universitárias, constituindo um imenso e promissor campo pouco explorado de pesquisas e invenção didático-pedagógica, sobretudo quando se pensa no reconhecimento, hoje, dos direitos coletivos dos povos indígenas sobre seus conhecimentos tradicionais, e em sua importância estratégica em áreas científicas de ponta como a biotecnologia, e em suas potencialidades em disciplinas como a engenharia florestal, agronomia, farmácia e medicina, apenas para mencionar campos em que já existem iniciativas para incorporar os conhecimentos tradicionais. Desejam, em suma, que sua imensa riqueza sócio-cultural, bem como dos recursos naturais de que são os legítimos possuidores, revertam-se em bem-estar material de acordo com suas escolhas próprias.
Em meio a essa efervescência, um conjunto de políticas, iniciadas na virada do milênio, voltou-se para a formação de indígenas em cursos de licenciatura específicos, em decorrência de normas jurídicas relativas ao ensino escolar intercultural, bilíngüe e diferenciado, garantido aos indígenas pela Constituição de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996). Entre estas normas, destacou-se a resolução n. 3 do CNE, de 1999, que estabeleceu caber aos estados promover a formação continuada do professorado indígena, bem como instituir e regulamentar a profissionalização e o reconhecimento público do magistério indígena. O Plano Nacional de Educação, de 2001, por sua vez, estabeleceu em sua meta de n. 17 a formação de professores indígenas em nível superior, através da colaboração entre universidades e instituições de nível equivalente. A exigência de diploma universitário para a atuação de professores a partir da segunda fase do ensino fundamental foi o que desencadeou a criação dos cursos de licenciatura intercultural, com vestibular específico para indígenas.
Até o momento, estes cursos foram implantados nos estados de Mato Grosso e Roraima, e encontram-se em vias de instalação em Minas Gerais, Amazonas, Paraíba, Tocantins, Goiás, Maranhão e Acre. Nos cursos de licenciatura intercultural já em andamento na Universidade Estadual do Mato Grosso - Unemat e no Núcleo Insikiran da Universidade Federal de Roraima - UFRR, existem atualmente em torno de 320 alunos indígenas, havendo uma demanda reprimida, para este tipo de curso, de mais de 4.000 professores, segundo dados do MEC. Deste total, boa parte encontra-se hoje vivendo em cidades, sem deixar, contudo de manter laços estreitos e complexos com suas comunidades de origem e com organizações indígenas comprometidas com a sustentabilidade e defesa de seus territórios.
Assim, os cenários indígenas brasileiros neste início do século XXI apontam para a necessidade de diagnósticos aprofundados, produzidos pelos próprios povos indígenas e suas organizações, sobre a diversidade de situações no país, fornecendo subsídios para que as políticas de ação afirmativa construídas em favor destes povos levem em conta a especificidade das suas demandas e da situação indígena dentro do ordenamento jurídico pós-tutelar atualmente em vigor, e estejam à altura dos desafios práticos por ele colocados, ajudando a questioná-los, aperfeiçoá-los e redefini-los. É essencial ter os próprios indígenas na condução deste processo, o que só ocorrerá quando se deixar de apenas usar sua participação em fóruns variados, de modo a legitimá-los enquanto comprometidos com a defesa da diversidade, passando-se a reconhecer a especificidade de seus interesses e posições. Talvez assim, as ações afirmativas para o acesso de indígenas ao ensino superior, que foram adotadas até o momento sob diferentes formatos por cerca de 30% das universidades públicas no Brasil [1], possam adquirir sentido ainda mais abrangente.
[1] São elas: Universidade Estadual do Amazonas - UEA, Universidade Federal de Tocantins - UFT, Universidade Federal da Bahia - UFBA, Universidade de Brasília - UnB, Universidade Estadual de Goiás - UFG, Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul - UEMS, Universidade do Estado de Mato Grosso - UNEMAT, Universidade Estadual de Minas Gerais - UEMG, Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES, Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP, Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, Universidade Estadual do Rio de Janeiro _ UERJ, Universidade Estadual do Norte Fluminense - UENF, Universidade da Zona Oeste - UEZO, Universidade Estadual de Londrina - UEL, Universidade Estadual de Maringá - UEM, Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG, Universidade Federal do Paraná - UFPR, Universidade Estadual do Centro-Oeste - UNICENTRO, Universidade Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE e Universidade Estadual do Paraná - UNESPAR.

Boletim PPCOR, ago. 2006

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