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Autor: Lígia Kloster Apel
23 de Nov de 2016
Incentivo e aprendizado. Esses foram os dois mais importantes resultados do 1o Mutirão em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da Região de Tefé (AM) para o Tuxaua Anilton Braz Silva, do povo Kokama, da aldeia Porto Praia de Baixo. O Mutirão aconteceu nos dias 17 e 18 de novembro, nesta região amazônica composta por dezenas de povos indígenas e direitos violados. "Para mim foi um incentivo, um aprendizado de união com toda a comunidade e sabendo que ia ter essa equipe do CIMI, órgãos comprometidos, financiadores da CAFOD e União Europeia e assessoria jurídica, a gente viu que ia ser importante pra ver que temos direitos e a gente vai lutar por eles".
O evento faz parte das atividades do projeto Garantindo a Defesa de Direitos e a Cidadania dos Povos Indígenas do Médio Rio Solimões e Afluentes, realizado pela Cáritas de Tefé e CIMI-Tefé, com apoio técnico e institucional da Agência Católica para o Desenvolvimento (CAFOD) e cofinanciamento da União Europeia.
Mais de 70 indígenas participaram do Mutirão dos povos Kokama, Kambeba, Kaixana, Tikuna, Miranha e Madija, das Terras Indígenas Porto Praia, Boará/Boarazinho, Projeto Mapi e Barreira da Missão, além de representante da União dos Povos Indígenas do Médio Rio Solimões e Afluentes (UNIPI-MSA), André Cruz; da FUNAI-CTL de Tefé, Tomé Cruz; do vice-prefeito eleito de Tefé, Jean Robson Pinheiro Jacintho, e futuro secretário de produção, Antonio Nascimento; a assessora jurídica do Projeto, Chantelle Teixeira, do Cimi, além da assessora técnica Satya Caldenhoff e da representante da CAFOD, Esther Gillingham.
O 1o Mutirão em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da Região de Tefé se consolidou como um espaço de diálogo e esclarecimentos sobre os direitos indígenas, sobre as violações destes direitos - que são constitucionais - e que vêm acontecendo ao longo dos anos, sobre a morosidade com que o poder público trata a resolução das violações que lhe são denunciadas e sobre sua, praticamente que total, ineficiência de garantir e executar políticas específicas para os povos indígenas.
Os trabalhos iniciaram com a apresentação dos participantes, do projeto e suas atividades e dos casos de violações de direitos indígenas apurados na 1ª Oficina de Formação Jurídico-Política em Tefé, realizada pela equipe do Cimi e sua assessoria jurídica, em setembro de 2016, na aldeia Porto Praia de Baixo, envolvendo as comunidades Porto Praia, Boará, Boará de Cima, Boarazinho e Projeto Mapi. O levantamento mostra que as violações denunciadas pelos indígenas são de toda ordem.
Em relação ao direito à terra demarcada, o levantamento mostra que nenhuma das comunidades têm seu território reconhecido pelo Estado brasileiro, e que a falta desta regularização territorial facilita a entrada de invasores que exploram seus recursos naturais. Madeira, peixe, caça e areia foram os recursos apontados pelos indígenas como os principais alvos dos invasores. O direito dos povos originários de permanecer em seus territórios tradicionalmente ocupados é garantido pela Constituição Federal. O direito coletivo dos povos indígenas à terra é uma forma de interpretar o direito civil à propriedade, adequando-o ao modo coletivo de vida desses povos, que está sendo violado sistematicamente pelo Estado brasileiro.
Relataram ainda que fazem as denúncias aos órgãos competentes através de documentações, mas que dificilmente recebem informações sobre os encaminhamentos dados às reivindicações.
Quanto aos seus direitos políticos, a Oficina mostrou que as decisões tomadas pela comunidade, as quais retratam suas necessidades específicas, são desconsideradas pelo poder público. O principal exemplo são os programas de educação que são levados às aldeias que não reconhecem a realidade local e apresentam conteúdos e metodologias alheias a elas. Em um caso recente da prefeitura de Tefé, tal violação foi comprovada. A Secretaria de Educação coibiu os professores indígenas graduados em Magistério Indígena de participarem do concurso público para professores, exigindo critérios em desacordo com a legislação nacional para a educação escolar indígena, e sequer, consultou estes povos para participarem da elaboração do edital.
E no âmbito dos direitos sociais, a maior violação de direitos está na saúde, onde há grande carência de pessoas, infraestrutura adequada, medicamentos e transporte para o atendimento de pacientes. Na educação, a violação está na contratação de professores indígenas sob o regime de contratos temporários, o que lhes deixa sem estabilidade e reféns da política partidária dos pleitos municipais. Ainda, reivindicam a contratação de professores bilíngues para que possam resgatar suas línguas maternas. Esta situação revela a inexistência do reconhecimento da educação indígena, uma vez que não há plano de carreira para os professores indígenas dos municípios.
Um dos relatos mostrou, inclusive, que a representante da Secretaria de Educação do município exigiu a retirada de peças artesanais produzidas pela comunidade de dentro da escola. Peças essas que fazem parte da didática dos professores que mostram e refletem sobre suas habilidades, em um total desrespeito aos conhecimentos e à cultura ancestral.
À luz deste diagnóstico, os participantes debateram com os representantes da FUNAI e da futura gestão municipal (vice-prefeito e secretaria de produção), as formas de resolução destas violações. E, ao final, foi formalizada uma Carta Aberta que será entregue ao MPF - Procuradoria Geral da República em Tefé, MPF - Procuradoria Geral da República de Manaus, Ministério Público Estadual, Justiça Federal em Tefé, Distrito Sanitário Especial Indígena do Médio Solimões e Afluentes (DSEI-MSA), à presidência da FUNAI em Brasília, Coordenação Regional da FUNAI do Alto Rio Solimões em Tabatinga e Coordenação Técnica Local da FUNAI em Tefé, bem como para órgãos públicos locais de competência afim.
A Carta Aberta dos povos Kokama, Kambeba, Kaixana, Tikuna, Miranha e Madija (convidado), das Terras Indígenas Porto Praia, Boará/Boarazinho, Projeto Mapi e Barreira da Missão, traz a clara compreensão que os indígenas têm de sua cidadania brasileira e de seus direitos como povos originários do território nacional. Denunciam as violações que por anos a fio vêm sofrendo e revelam o descaso, discriminação e morosidade do estado brasileiro em efetivar e garantir os direitos civis, políticos e sociais da população indígena. E, dada a urgência, exigem que as soluções aos problemas sejam rápidas e efetivas.
O evento também lembrou que este ano, no dia 10 de dezembro de 2016, comemora-se o 68o aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada pelas Nações Unidas. Os indígenas deram seus depoimentos falando da importância desta comemoração para reivindicar e defender seus direitos. "Os povos indígenas são a raiz da nação brasileira. E a sociedade brasileira nega sua raiz. O que acontece com uma árvore que nega a sua raiz?", questiona Valtonino Gomes Pacaio, tuxaua da aldeia Boarazinho.
Toda pessoa humana tem direito à vida e a vivê-la em plenitude. Todos os brasileiros e todas as brasileiras têm seus direitos assegurados pela Constituição Federal. Todos e todas indígenas têm seu direito originário, que está acima de todas as outras leis. Respeitá-los é dever da sociedade. Assegurá-los é dever do Estado.
CARTA ABERTA DOS POVOS INDÍGENAS DE TEFÉ
Nós, lideranças dos povos Kokama, Kambeba, Kaixana, Ticuna, Miranha e Madija, representantes das comunidades Porto Praia, Boara, Boarazinho, Boara de Cima, Projeto Mapi, Patauá, Kanata Aetu, Nova Esperança do Arauerí, Ramal do Tucano, Barreira de Cima, Barreira do Meio, Barreira de Baixo e Betel (as quatro últimas pertencentes à TI Barreira da Missão), localizadas nos municípios de Tefé e Uarini (Comunidade Tucano somente) no Amazonas, reunidos na comunidade Porto Praia de Baixo, nos dias 17 e 18 de novembro, por ocasião do 1o Mutirão de Direitos da região de Tefé, ação promovida pelo Conselho Indigenista Missionário de Tefé e Cáritas de Tefé, com apoio de CAFOD e União Européia, atividade prevista no projeto Garantindo a Cidadania e a Defesa de Direitos dos Povos Indígenas do Médio Rio Solimões e Afluentes, para ampliar nossos conhecimentos sobre direitos civis, políticos, sociais e indígenas, partilhar as nossas realidades, demandas e aspirações e encaminhar soluções destas demandas em diálogo com o Poder Público (CTL da Funai em Tefé, DSEI Médio Rio Solimões e Afluentes, Gestão Municipal eleita para o período 2017-2020) na busca pela efetivação dos nossos direitos, vimos, à público, manifestar, denunciar e pedir a atenção e acompanhamento dos órgãos públicos competentes às violações de direitos que passaremos a relatar:
Sabemos que a nossa Constituição Federal reconhece o caráter multiétnico e pluricultural do Estado brasileiro, portanto, o nosso direito ao tratamento diferenciado, na perspectiva da autonomia e autodeterminação dos nossos povos.
Depois de analisarmos a situação dos nossos direitos e da política indigenista nacional, regional e local constatamos que continuamos a ser vítimas da discriminação, do preconceito e da intenção, explícita ou velada, de nos extinguir enquanto povos, com uma identidade diferenciada, vinculada intrinsecamente à espaços territoriais necessários para a nossa sobrevivência física e cultural, com organização social própria.
Contudo, fazemos parte do Estado Nacional que, depois da colonização, se implantou sobre os territórios ocupados milenarmente por nossos povos e ancestrais, não respeitando o nosso modo de vida e impondo a sua maneira de viver aos nossos povos como a única correta para acessarmos direitos e sermos cidadãos deste Estado. Hoje, 516 anos depois, em pleno século XXI, tal situação de descaso e violação de nossos direitos, cidadania e vida, continua. Mas, temos convicção de que somos cidadãos e temos o direito de recuperar e manter nosso modo de vida.
Os governos municipais, estaduais e federal têm se mostrado incapazes de conviver e oferecer tratamento diferenciado aos nossos povos. O Governo tem feito esforços significativos, mas continua submetido à pressão de interesses econômicos e políticos que sempre mandaram neste país, criando situações que acarretam a grave crise no atendimento à políticas públicas voltadas as nossas especificidades e à violência contra os povos indígenas.
Diante deste quadro, estamos tristes e indignados, porém, dispostos a continuar reivindicando e lutando para termos garantidos os nossos direitos. Dessa forma, exigimos do Poder Público respostas e ações permanentes e estruturantes às demandas apresentadas por nós nesta carta aberta. Reafirmamos, porém, atenção especial às seguintes reivindicações e propostas.
DESRESPEITO AO DIREITO À TERRA DEMARCADA E PROTEGIDA
Demarcação e regularização de todas as terras indígenas da região do município de Tefé e Uarini (Comunidade Tucano), garantindo a sua devida desintrusão e proteção, para conter quaisquer tipos de invasões que ameaçam a integridade física e cultural dos nossos povos bem como a riqueza natural e da biodiversidade existente nos nossos territórios.
- Nossos territórios vêm sendo, sistematicamente, explorados. Existe um grande interesse nos recursos naturais que preservamos, sobretudo, madeira, peixes dos lagos e rios (pesca de arrastão), invasão de lagos, caças e areia.
- Comunidades não indígenas no entorno da comunidade Projeto Mapi vêm realizando barragens nos igarapés para formarem piscinas naturais em suas áreas para fins de lazer (balneários e "banhos"), estas ações prejudicam o abastecimento de água a esta comunidade, bem como a entrada de peixes nestes cursos de água.
DESRESPEITO AO DIREITO À EDUCAÇÃO DIFERENCIADA E ESPECÍFICA PARA OS POVOS INDÍGENAS - EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA
Implementação de uma política de educação escolar indígena de qualidade, bilíngue, específica e diferenciada, que garanta condições para o ensino fundamental e médio completo nas nossas comunidades. Concretamente reivindicamos:
a) Respeito à autonomia e o direito à consulta das comunidades, para que participem da criação, implementação, monitoramento e fiscalização das políticas públicas municipais de educação escolar indígena; b) Criação do cargo de professor indígena municipal com concurso público diferenciado, plano de carreira e garantia de estabilidade funcional; c) Criação da categoria Escola Indígena Municipal, para que seja garantida a autonomia e organização própria das escolas indígenas, com Projetos Políticos Pedagógicos específicos e próprios para cada escola e realidade; Compra e repasse de merenda escolar que atenda o número de alunos de cada escola, hoje faltam alimentos nas escolas. Ainda, requeremos a regionalização da merenda escolar nas escolas indígenas e a criação do Conselho de Educação Escolar Indígena; d) Construção de prédios escolares nas comunidades onde as escolas funcionam em estruturas precárias construídas pelas próprias comunidades; e) Contratação de professores indígenas e bilíngues para as escolas indígenas;
DESRESPEITO AO DIREITO À SAÚDE DIFERENCIADA DOS POVOS INDÍGENAS
Prestação dos serviços de atendimento à saúde indígena que respeite à cultura e especificidade de cada povo, bem como se paute em um modelo de abordagem integral contemplando os aspectos de assistência à saúde, saneamento básico, nutrição, habitação, meio ambiente. Para tanto, concretamente reivindicamos:
a) Implementação de saneamento básico às comunidades, principalmente o cuidado ao acesso de todos à água potável; b) contratação de profissionais de saúde para o atendimento nas comunidades, bem como que estes profissionais sejam capacitados para trabalhar com povos indígenas e que sejam consultadas as comunidades para a contratação destes profissionais; c) Maior investimento na infraestrutura para a prestação dos serviços de saúde indígena (construção de postos de saúde adequados, meio de transporte para a remoção de pacientes das comunidades para o Polo Base de Saúde ou município, compra de medicamentos); d) capacitação dos profissionais indígenas que trabalham na saúde - Agente Indígena de Saúde e Agente Indígena de Saneamento - última realizada na região foi em 2008; atendimento de indígenas nos postos de saúde e hospitais de referência do SUS presentes no município de Tefé, muitas vezes, temos o atendimento negado nestes centros de atendimento à saúde porque somos indígenas. Sabemos que a saúde indígena é um subsistema do Sistema Único de Saúde, que é universal e tem como obrigação constitucional o atendimento à saúde em todo o país e para qualquer cidadão brasileiro, inclusive estrangeiro.
DESRESPEITO AO DIREITO À AUTONOMIA E AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS INDÍGENAS
Respeito à autonomia e autodeterminação dos povos e comunidades indígenas. Nós temos o direito a definir nossas prioridades de desenvolvimento, participar da criação, implementação e fiscalização de planos de desenvolvimento do governo municipal, estadual e federal, bem como em sermos consultados em relação às medidas administrativas e legislativas dos governos que nos afetem diretamente. Muitas das nossas decisões e reivindicações não são atendidas pelo Poder Público, principalmente em relação à educação escolar indígena. As comunidades escolhem professores e gestores para a suas escolas, porém, a Secretaria Municipal de Educação não leva em consideração nossa vontade e impõe a contratação de professores e gestores que, muitas vezes, nem são indígenas.
Conquistamos com muita luta nossos direitos na Constituição que este ano completou 28 anos, mas os governos municipais, estaduais e federais ainda não estão cumprindo com seu dever de torná-los realidade.
Contra as falsas acusações de que atrapalhamos o projeto econômico em curso, afirmamos claramente que nós, povos indígenas, com base em nossas próprias histórias, valores e culturas, temos muito a contribuir com o desenvolvimento sustentável do país, na perspectiva da construção de uma sociedade justa e de um Estado verdadeiramente pluriétnico e democrático no Brasil.
Assim, exigimos atenção, acompanhamento e ações dos órgãos públicos para que nossos direitos sejam garantidos e cessem as situações de violações acima descritas.
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