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Povos da floresta

O Globo, Revista O Globo, p.28-34,36-7
11 de Dez de 2005

Povos da floresta
Por Tulio Brandão
A Amazônia é cheia de superlativos. Ocupa uma área de sete milhões de quilômetros quadrados — 40% do território nacional. Seu rio principal despeja 200 mil metros cúbicos por segundo de água doce no mar, o equivalente a um quinto do total lançados por todos os cursos de água doce no planeta. Seria estranho se o homem só tivesse ocupado a região com a esparsa população atual. Pois, do século XIX até hoje, foram encontrados mais de 400 sítios arqueológicos — desses, 180 só na última década — com datação de até nove mil anos. No mundo perdido dos antigos povos da floresta, algumas sociedades utilizavam pedra para fazer pontas de flecha e outras, mais recentes e complexas, produziam cerâmicas refinadas. Descobertas recentes foram realizadas pelo Projeto Piatam, iniciativa que integra mais de 100 especialistas de várias áreas num inédito mapeamento científico da região, que tem sido lembrada muito mais por seus problemas do que por sua grandeza.

ADESCOBERTA DE MAIS DE 400 sítios arqueológicos na Amazônia não impressiona o arqueólogo da Universidade de São Paulo (USP) Eduardo Neves, um dos maiores especialistas do país na pré-história da região. Diante da vastidão da floresta e das perspectivas de pesquisa em terras intocadas, ele diz que o número parece grande, mas é pequeno para o potencial da região. Com o tesouro já mapeado, é possível ter uma idéia da diversidade cultural dos povos que viviam na floresta em tempos pré-colombianos.
— Já foram identificadas culturas de várias épocas. Há sítios de 11 mil anos, cujas populações eram de caçadores-coletores. Eles deixaram vestígios de pedra que lembram os do norte do Peru. Povos posteriores aos primeiros caçadores-coletores trabalhavam com cerâmicas policrômicas (peças banhadas em branco ou vermelho) muito elaboradas, comparadas às de Málaga, na Espanha. E daí em diante, até a colonização, ocorreu um processo rico e ininterrupto de ocupação humana
— explicou o arqueólogo.
Apenas os projetos Piatam e da Amazônia Central, coordenados por Neves, revelaram cerca de 180 sítios arqueológicos, que ainda não estão na lista oficial. O Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (Iphan) catalogou 242 descobertas arqueológicas na região até hoje.
Entre as técnicas utilizadas pelos arqueólogos está a análise da chamada terra preta, um indicador de ocupação humana antiga. A coloração escura é provocada por vestígios de queimadas e outros usos do solo. Pesquisadores do Piatam encontraram essa terra em zonas de várzea. Normalmente, esse solo ocorre em terra firme.
A cor preta ajudou a identificar, por exemplo, o sítio Caetano, às margens do Rio Solimões. No solo desbastado pela maré, multiplicavam-se cacos de cerâmica com figuras geométricas e restos de ossos dentre outros vestígios. O engenheiro agrônomo Carlos Schaefer, da Universidade Federal de Viçosa, explicou a importância da descoberta:
— Isso prova que sociedades viveram também em áreas alagadas. Quanto às cerâmicas, os arqueólogos supõem que têm o padrão da cultura Tapajós — disse ele.
Em outros sítios, como os do município de Coari, foi encontrada a primeira ponta de flecha da Amazônia, de culturas pré-cerâmicas, que viveram na região 7.700 anos atrás. Descobriram ainda vasos de cerâmica policrômica trabalhados e intactos e urnas com objetos pessoais de mortos.
A descoberta é um possível sinal da existência de culturas avançadas, que se baseavam na hierarquia rígida de chefes e assentamentos. Essas sociedades teriam vivido na região entre os séculos XI e XVIII. A atual Santarém, no Pará, estaria assentada sobre a antiga capital dessa cultura.
Neves explica que sítios pré-coloniais guiaram algumas ocupações contemporâneas, como em Manaus, em Manacapuru e em Tefé. O mesmo fenômeno ocorre em áreas rurais da Amazônia.
As pesquisas arqueológicas da Amazônia foram iniciadas por brasileiros e estrangeiros na segunda metade do século XIX, mas ainda se sabe muito pouco. Estados inteiros ou regiões pertencentes à Amazônia Legal, como Acre, Roraima, Maranhão e norte do Mato Grosso, são quase intocados por estudiosos. No Amazonas, os estudos são insuficientes diante das dimensões do estado.
A primeira a se aprofundar na arqueologia da região foi a americana Betty Meggers, que começou as pesquisas na década de 50 e diz que as populações pré-colombianas da Amazônia vinham de outras áreas, como os Andes. A tese é contestada por outra americana, Anna Roosevelt. Ela sustenta que os primeiros habitantes teriam descido o litoral nordeste da América do Sul e alcançado a região, pela foz do Rio Amazonas.
OS POVOS DA FLORESTA DO passado e do presente se confundem na Amazônia. Sob as 80 casas da comunidade de Nossa Senhora das Graças, às margens do Rio Solimões, há um grande sítio arqueológico. De acordo com o arqueólogo da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e pesquisador do Projeto Piatam Carlos Augusto da Silva quase todos os povoados existentes atualmente na Amazônia estão assentados em solos habitados nos tempos pré-colombianos.
Os caboclos, diz ele, começaram a compreender os vestígios do passado em suas terras depois de projetos de arqueologia como o Piatam e a Amazônia Central:
— Eles, às vezes, têm medo do que pode representar o passado. Não identificam restos de urnas e de outras peças com seus próprios hábitos e, por isso, pensam que os objetos estão associados a rituais macabros. Como a comunidade trabalha muito com a enxada na agricultura, encontra com freqüência material arqueológico no solo.
O passado debaixo da terra é tão rico quanto a cultura da comunidade ali instalada atualmente. O pescador Sebastião Mendonça, um dos moradores de Nossa Senhora das Graças, até viu vestígios de outros povos quando trabalhava com enxada, mas está mais preocupado com os oito filhos, que dormem na rede de sua casa.
Cama, ele só tem uma, onde dorme com a esposa, Maria Madalena. Dia desses, passou a receber, de um gerador, uma hora de energia elétrica por dia. Comprou televisão, diz o pescador, para saber do mundo, mas as crianças gostam é da tal novela”.
À mesa, a proteína que vem do rio, a farinha e os frutos regionais — base nutritiva da comunidade. Às vezes, tem peixe assado com açaí na casa de Sebastião, mas a família não segue a dieta local. A melhor receita de dona Maria Madalena é um bolo de banana, disputado pelos oito filhos.
A esposa de Sebastião teve oito filhos — engravidou quase sucessivamente — até resolver ligar as trompas. Madalena soube da possibilidade da cirurgia porque é agente de saúde de Nossa Senhora das Graças. Ela conta que os males mais comuns dos caboclos são diarréia, gripe e verminose. A saída é o remédio caseiro e, se não funcionar, um barco leva o doente ao hospital na cidade, em duas horas.
Na Escola Municipal Getúlio Vargas, única na comunidade, 41 crianças de 4 a 11 anos estudam do jardim à quinta série. A diretora, Gisele Barbosa Mendonça, diz que a cultura da Amazônia está no currículo:
— As crianças saem para o campo e pesquisam os animais, a mata, tudo.
A comunidade é estudada por pesquisadores de sócio-economia do Projeto Piatam. O pesquisador da Ufam Sebastião José Inhamuns explica a estratégia de sobrevivência dessas populações:
— Todo ano, eles plantam na seca do rio e pescam na cheia. Na enchente, fazem a colheita e a comercialização. Assim, têm do que viver o tempo inteiro.
O pesquisador diz que o que define a qualidade de vida e o status do morador na comunidade é a propriedade de um barco e a energia elétrica em casa. Sebastião tem duas embarcações e é dono de uma das oito casas com uma hora de luz por dia na comunidade. Portanto, pode ser considerado uma pessoa bem-sucedida.
O pescador conta que já lhe ofereceram na cidade grande — leia-se Manacapuru — o cartão de crédito de um banco local:
— Recebi uns anúncios de viagem pelo cartão. Eu e minha esposa íamos dar uma volta por aí, mas depois que eu vi furacão no noticiário (referindo-se ao fenômeno que atingiu Nova Orleans), prefiro ficar por aqui mesmo. Esse rio eu já conheço.

SAIBA MAIS SOBRE O PROJETO
MAIS DE CEM CIENTISTAS COM especialidades tão variadas quanto ictiologia (estudo de peixes) e arqueologia participam do Projeto Piatam. O nome é a sigla para Potenciais Impactos e Riscos Ambientais da Indústria do Petróleo e Gás no Amazonas. O Piatam foi criado em 2000 por pesquisadores da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). O projeto surgiu da necessidade crescente de monitoramento de petroleiros gigantes, do Terminal do Solimões (Tesol) e de outras atividades da indústria petrolífera. Em 2002, passou a ser financiado pela Petrobras como um projeto oficial e, atualmente, conta com cientistas de instituições brasileiras e estrangeiras, divididos em 13 grupos de trabalho.
Especialistas em arqueologia, ictiofauna, ecotoxicologia, solos, socioeconomia, entre outras disciplinas, viajam quatro vezes ao ano, durante as quatro fases do rio: enchente, cheia, vazante e seca. A área de estudo, sujeita aos impactos da atividade petrolífera, abrange 400 quilômetros. As informações são armazenadas num banco de dados e utilizadas em gestão ambiental e prevenção de danos, como mapas de sensibilidade e derramamentos de óleo.
A nova fase do programa é o Piatam Mar, que vai levantar dados em trabalhos de campo na zona costeira da Região Amazônica, praticamente inexplorada.

A MAIOR FLORESTA ÚMIDA do mundo agoniza em secas, queimadas e desmatamentos. Os danos ao meio ambiente ameaçam todo o patrimônio cultural e biológico da floresta. Em outubro, uma estiagem severa transformou extensos cursos dágua em poças de lama, deixou mais de 60 municípios sem água e provocou 180 focos de incêndio apenas num estado, o Pará. Em algumas zonas, não choveu por 60 dias.
A seca também atingiu a navegação. Em Rondônia, o Rio Madeira, principal afluente à direita do Amazonas, chegou a quatro metros abaixo do normal no período de seca. Com isso, o transporte de soja, arroz, feijão, milho, açúcar e madeira — que precisa de embarcações de grande porte — foi duramente prejudicado.
O calor e a ausência de chuvas provocaram o maior índice de incêndios dos últimos 30 anos no Pará, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Foram 180 focos em apenas um dia, que atingiram pelo menos sete áreas de preservação, como a Reserva Extrativista da Terra do Meio, em Altamira. O fogo chegou à Reserva Biológica do Rio Trombetas, em Oriximiná, à Floresta Nacional do Tapajós, em Rurópolis, e à Reserva Biológica de Tapirapé, em Marabá.
A estiagem, rara na região, provavelmente foi causada pela mesma alteração climática que provocou um número recorde de furacões nos Estados Unidos: o aquecimento nas águas do Oceano Atlântico, que passaram de 28 graus Celsius. O cientista do Inpe Carlos Nobre diz que a seca deste ano em parte da Amazônia não tem uma relação direta com o aquecimento global, mas alerta que se a temperatura continuar a subir, fenômenos extremos como esse vão ocorrer com mais freqüência no planeta.
Em recente entrevista ao GLOBO, Nobre lembrou que a intensidade da estiagem em algumas trechos da Amazônia foi inédita. Segundo o pesquisador, foi a seca mais intensa da história do oeste da região. No Acre, desde que o fenômeno é registrado, também foi a mais grave. No centro da Amazônia, diz o pesquisador, talvez tenha havido duas ou três estiagens com essa magnitude nos últimos cem anos.

O PODER DE DESTRUIÇÃO DO homem pode ser maior e mais irreversível do que o de fenômenos aparentemente naturais, como a seca deste ano. Até o início da década de 70, o desmatamento total da Amazônia Legal era de 1%. Passados 35 anos, já atinge 17% da floresta densa — uma área equivalente à do estado de Minas Gerais e superior ao território da França. Semana passada, no entanto, o governo federal divulgou que o índice de desmatamento da Amazônia caiu pela primeira vez em sete anos. A queda, de 30% em relação aos 27.200 quilômetros quadrados destruídos entre 2003 e 2004, ainda não é animadora, já que foram derrubados 19.040 quilômetros quadrados de mata. Em outras palavras, a área desmatada não parou de crescer. Os maiores problemas começaram na década de 60, quando o governo estimulou a construção de estradas, de usinas hidrelétricas e criou incentivos fiscais para a agropecuária. Hoje, especialistas alertam que as atuais políticas de desenvolvimento provocam o aumento das queimadas e, com isso, colocaram o país na indesejável lista dos dez maiores emissores de gás carbônico do planeta. Cientistas frisam que são muitas as incertezas sobre os mecanismos que sustentam a vida da floresta. Exemplo disso é a seca recente que surpreendeu a todos. A estiagem poderia não ter tido tanto impacto se a região não estivesse tão desmatada. Ela foi um alerta sobre a fragilidade do ecossistema.
TULIO BRANDÃO viajou à Amazônia a convite do projeto Piatam.

SÃO SEIS DA TARDE NA AMAZÔNIA.
As comunidades ribeirinhas, sempre tão vivas, parecem vilas fantasmas. No silêncio que precede o problema, ouve-se apenas o zumbido dos insetos. Apesar da sufocante umidade e da temperatura acima dos 30 graus Celsius, os caboclos estão reunidos em casa, escondidos atrás de telas. Eles sabem que, às vezes, o mosquito é mais forte que o homem.
Essa é a hora de o cientista do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) Wanderli Pedro Tadei, responsável pelo estudo de malária no Projeto Piatam, virar isca humana. Ele veste casaco pesado, calça grossa, bota alta, gorro inteiro e sai do barco de pesquisa para a comunidade, com um capturador de insetos à base de sucção.
O método de coleta é simples: se o inseto pousar na roupa, é coletado. Nos horários de pico, o número de capturados chega a 800 mosquitos no corpo de cada pesquisador em apenas uma hora. Eles reconhecem que a taxa poderia ser maior, se houvesse uma tecnologia mais eficaz de captura.
Nas comunidades pesquisadas, a maioria dos mosquitos coletados é do tipo mansonia, que pode transmitir berne, entre outras doenças. A área de estudo fica no Rio Solimões, longe dos igarapés de água escura, local preferido dos mosquitos transmissores da malária (Anopheles).
— O número de mosquitos sobe de acordo com a elevação do nível dos rios. O mansonia é tão agressivo que pode tornar o local impróprio à habitação humana. E olha que 800 por hora é apenas o teto da coleta manual, e não o número total de mosquitos possíveis atacando um homem — diz Tadei.
Quanto à malária, ele explica que ocorre com maior intensidade nos igarapés de menos sedimentos, como os do Rio Negro, onde 90% dos mosquitos coletados no período crítico, entre maio e agosto, transmitem a doença. Oswaldo Cruz chegou a chamar o rio de malarígeno”. Manaus é um foco crescente de malária, devido à proximidade com o Rio Negro e ao desmatamento na periferia.

O Globo, 11/12/2005, p. 28-34, 36-37

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