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Por uma defensoria pública afroindígena

Nexo - https://pp.nexojornal.com.br
Autor: José Maurício Arruti e Juliana Sartori
13 de Mar de 2024

Primeiro Encontro da Frente Afro-Indígena das Defensoras e Defensores Públicos do Brasil aconteceu entre os dias 22 e 23 de fevereiro, em Brasília. O evento serviu como um panorama do protagonismo feminino na instituição e da crescente diversidade étnico-racial na composição dos seus quadros.

A Defensoria Pública é uma instituição relativamente nova e ainda muito heterogênea. Ainda que a norma fale de uma única Defensoria Pública, ela é diversa nas formas da sua institucionalização federal e estadual, assim como é diverso o processo de sua institucionalização em cada estado. Essa heterogeneidade se manifesta nas temporalidades e nos processos, por vezes muito conflituosos, que levaram à sua criação pela União e por cada uma das unidades da Federação. Disso decorre também a grande heterogeneidade na implementação da sua autonomia funcional e orçamentária, no processo de consolidação das suas Ouvidorias Externas, na sua estruturação administrativa e na composição das suas assessorias (idealmente compostas de forma interdisciplinar). Para falar o mínimo, as Defensorias Públicas (agora no plural) não conseguiram nem mesmo responder à exigência legal de atenderem diretamente (e não apenas por meio das ações de itinerância ou dos advogados dativos) todas as comarcas do país.

Mas ela vem se tornando heterogênea também em um outro sentido, que se manifesta na composição dos seus quadros. Neste caso, a heterogeneidade não é algo que persiste, mas algo que vem chegando aos poucos e já vem provocando ou reforçando mudanças na sua própria definição institucional, em especial seus objetivos e âmbitos de atuação.

Talvez a maior manifestação desta tendência tenha sido a realização do I Encontro da Frente Afro-Indígena das Defensoras e Defensores Públicos do Brasil, realizado entre os dias 22 e 23 de fevereiro, em Brasília. O evento serviu como um panorama interessante do protagonismo feminino na instituição e da crescente diversidade étnico-racial na composição dos seus quadros. Serviu também como um panorama dos avanços realizados, ainda irregulares e pouco institucionalizados, no sentido de ampliar seu campo de ação na direção da tutela coletiva e das temáticas indígena e quilombola.

O evento, que na prática lançou publicamente a Frente Afro-Indígena, serviu também para relançar a Comissão de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, da ANADEP (Associação Nacional de Defensores e Defensoras Públicas), coordenado pela Defensora Pública do Estado da Bahia, Aléssia Tuxá, primeira mulher indígena a ingressar na instituição. Com isso, a ANADEP passou a contar com 14 Comissões Temáticas, organizadas desde ao menos 2019, dedicadas a apoiar atividades, promover estudos, emitir pareceres, notas técnicas, notas públicas, entre outros, sendo compostas por defensores públicos de todas as regiões do país. Finalmente, o Encontro também é um desdobramento da campanha "Racismo se combate em todo lugar: Defensoras e Defensores Públicos pela equidade racial", lançada no ano de 2021 e interrompida durante a pandemia de covid-19.

Destinado prioritariamente ao diálogo entre Defensores e Defensoras Públicas, o I Encontro da Frente Afro-Indígena contou com palestras, com a apresentação de pesquisas nacionais recentes, a apresentação de relatos de experiências e com uma oficina 1 . A apresentação de trabalhos selecionados por edital interno, de autoria de defensores(as) públicos(as), servidores(as) da Defensoria Pública sobre a temática ofereceu um painel interessante das diversas iniciativas promovidas pelas defensorias públicas. Mas a atividade que mais mobilizou os defensores e defensoras públicas foi a Oficina de capacitação "Direito Fundamental à Consulta e Consentimento, Protocolos Comunitários e Procedimento Administrativo de Consulta e Consentimento". Conduzida pelos defensores públicos Johny Giffoni (DPE-PA) e Jeane Xaud (DPE-RR), a oficina não teve por base textos acadêmicos ou normativos, mas na leitura e no debate dos protocolos de consulta quilombolas e na realização de exercícios e debates em torno deles.

Finalmente, o Encontro também apontou para o crescente diálogo do campo jurídico com a pesquisa acadêmica e com uma reflexão baseada em dados, ao abrir espaço para o lançamento e breve discussão de duas pesquisas nacionais. A pesquisa "Perfil do processado e produção de provas nas ações criminais por tráfico de drogas - Relatório Analítico Nacional dos Tribunais Estaduais de Justiça Comum", organizada pelo IPEA/SENAD, sob a responsabilidade de Marta Machado, mas apresentada por Milena Soares (IPEA). E a pesquisa Quilombos e Acesso à Justiça: a atuação da Defensoria Pública, realizada pelo Núcleo Afro-Cebrap e pelo LaPPAA (Laboratório de Pesquisa e Extensão com Povos Tradicionais Ameríndios e Afro-americanos), da Unicamp, cujo Sumário Executivo foi elaborado e estava sendo lançado no evento pelo Fórum Justiça.

Uma das recomendações finais da pesquisa Quilombos e Acesso à Justiça é que as Defensorias Públicas promovam a organização de Núcleos e GT voltados às populações tradicionais, indígenas e quilombolas, assim como que tais organizações busquem formas de articulação transversais, capazes de promover redes, eventos e sistemas de comunicação, informação e trocas de experiências, de forma a qualificar os próprios defensores e defensoras e adensar sua cobertura e capilaridade

A pesquisa Quilombos e Acesso à Justiça, co-financiada pelo Afro-Cebrap, Unicamp e Fórum Justiça, contou ainda com a cooperação da ANADEP, da CONAQ (Coordenação Nacional de Quilombos), da DPU (Defensoria Pública da União) e do Conselho Nacional de Ouvidoria Externas das Defensorias Públicas do Brasil. Desenvolvida entre 2021 e 2023, a pesquisa produziu um diagnóstico sobre o papel das Defensorias Públicas no acesso das comunidades quilombolas à justiça, mapeando as configurações regionais e locais dessa relação em todo o país. Entre seus resultados, estão a criação de bancos de dados com documentos provenientes de processos judiciais e ações extrajudiciais envolvendo comunidades quilombolas, repertórios de ações de formação e boas práticas, dificuldades e entraves para essa atuação, o perfil das defensoras e defensores atuantes e recomendações. Seus resultados foram entregues aos parceiros (citados acima) em agosto de 2023, ainda que só tenha vindo a público agora.

Um dos dados trazidos por essa pesquisa é relativo justamente aos modos pelos quais as Defensorias Públicas têm se organizado para mediar o acesso de quilombolas à justiça ou aos seus direitos, de forma mais ampla. A pesquisa identifica que os Núcleos Especializados ou Grupos de Trabalho, organizados no interior das Defensorias Públicas, são as formas organizacionais privilegiadas para abordar temas e populações específicas, ao criarem condições de acolhimento mais adequado aos usuários, assim como ao acumularem a expertise necessária para atender adequadamente a demandas que envolvem causas coletivas. Identifica também que tal efeito é tão mais efetivo quanto mais específica é a definição da temática do Núcleo ou GT.

A forma concreta desses Núcleos e GT, no entanto, varia muito na prática, a maioria deles estando voltados à recortes temáticos mais genéricos, como os Núcleos de Direitos Humanos, Fundiário ou de Habitação e Moradia, que acolhem vasto leque de públicos. Aqueles que recortam temas e públicos específicos como Relações Raciais, Populações Tradicionais, Indígenas ou Quilombolas estão em minoria, estando ausentes mesmo nos estados com as maiores proporções dessas populações.

Por isso, uma das recomendações finais da pesquisa Quilombos e Acesso à Justiça é justamente que as Defensorias Públicas promovam a organização de Núcleos e GT voltados às populações tradicionais, indígenas e quilombolas, assim como que tais organizações busquem formas de articulação transversais, capazes de promover redes, eventos e sistemas de comunicação, informação e trocas de experiências, de forma a qualificar os próprios defensores e defensoras e adensar sua cobertura e capilaridade.

O lançamento dessa pesquisa e suas recomendações no mesmo contexto de lançamento da Comissão de Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas da ANADEP e da Frente Afro-Indígena das Defensoras e Defensores Públicos do Brasil implica reconhecer que o processo de construção de um olhar específico sobre essas populações ganha impulso. A maior prova disso é que a "Carta de Intenções", elaborada ao final do Encontro, na qual os integrantes da Frente Afro-Indígena afirmam acreditar na "possibilidade de ruptura com a herança colonial do Sistema de Justiça", relaciona entre os objetivos a serem perseguidos, justamente o de "Fomentar e reivindicar a criação de núcleos especializados em relações raciais, comunidades tradicionais e povos indígenas no âmbito das Defensorias Públicas".

A noção de acesso à justiça vai sendo, enfim, progressivamente qualificada, por um corpo de defensores e defensoras cada vez mais diverso, que vem inovando também na busca por uma parceria mais generosa e respeitosa com outros saberes, da academia, dos movimentos sociais e das comunidades tradicionais.

José Maurício Arruti, é historiador e antropólogo, prof. do Departamento de Antropologia da Unicamp, onde coordena o LaPPAA-CERES-IFCH (Laboratório de Pesquisa e Extensão com Povos Ameríndios e Afro-americanos), e pesquisador do Núcleo Afro do Cebrap.

Juliana Sartori, é advogada, mestranda em Antropologia Social (PPGAS UNICAMP), assistente de pesquisa do LaPPAA-CERES-IFCH (Laboratório de Pesquisa e Extensão com Povos Ameríndios e Afro-americanos) e do Núcleo Afro do Cebrap.

Este ensaio faz parte da série "Quilombos e o acesso a Direitos" produzida pelo Núcleo Afro do Cebrap, para o Nexo Políticas Públicas. Leia o ensaio anterior aqui.

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