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Por uma cozinha que nasce no campo

OESP, Paladar, p. P8
01 de Nov de 2012

Por uma cozinha que nasce no campo

Por Cintia Bertolino
De Turim, Itália, especial para o Estado

Durante cinco dias, a cidade de Turim, na Itália, recebeu mais de 220 mil pessoas para o Salone del Gusto e o Terra Madre, eventos organizados pelo Slow Food, que acabaram na segunda, 29.
Pelos cinco pavilhões dos dois eventos paralelos, as pessoas conheceram culturas culinárias do mundo todo e participaram de workshops, conferências, degustações e oficinas.
A dupla Salone del Gusto/Terra Madre leva à risca a máxima "comer é um ato agrícola", do escritor, pensador e fazendeiro americano Wendell Berry. As conferências do Salone del Gusto têm viés político e reúnem pessoas determinadas a lutar pelo alimento "bom, limpo e justo".
Nas apresentações, chefs estrelados não se limitam a falar de técnicas culinárias. Eles entram no território da cozinha como forma de mudar o mundo.
"O chef do futuro deve entrar na cozinha com as mãos sujas de terra", disse Massimo Bottura, do restaurante Osteria Francescana que, neste ano, recebeu sua terceira estrela do Guia Michelin.
Bottura comandou diversas atividades. Durante a degustação de aceto balsamico tradicional de Modena, enquanto o público experimentava quatro vinagres especiais (um envelhecido por 12 anos e outros três maturados por 25), ele exaltava os produtos de sua região: "Meus músculos cresceram com parmigiano reggiano e nas minhas veias corre aceto balsamico".
Roberta Sudbrack, do restaurante homônimo no Rio de Janeiro, que se dirigiu a uma plateia lotada, também falou da importância de trabalhar o ingrediente com reverência. "O mise-en-place começa no campo", disse, para em seguida, concluir: "Minha filosofia se baseia na simplicidade. Um caminho um pouco avesso da gastronomia atual. Deixo o produto se expressar. Não quero transformar o ingrediente em algo que ele não é".
Terra Madre. Paralelo ao Salone del Gusto, o Terra Madre é a face prática desse discurso que coloca o campo e o produtor no centro da mesa e na cozinha. A feira de produtores teve como critério exibir os produtos que fazem parte da Arca do Gosto e Fortaleza (projetos do Slow Food que apoiam ingredientes e técnicas tradicionais ameaçadas de extinção).
A feira reuniu produtos e produtores de mais de cem países espalhados pelos cinco continentes. O Brasil estava representado por uma grande comitiva formada por mais de cem pessoas, entre pesquisadores, chefs de cozinha e produtores, que levaram uma grande variedade de produtos - dos usados por todos, como a farinha de mandioca, aos que causam estranhamento mesmo em quem vive no País, caso do licuri.
Pelo mundo. No Terra Madre era possível ser apresentado, por exemplo, ao grubenkraut, ou repolho do poço, iguaria produzida nas montanhas austríacas que estava quase desaparecendo nos anos 1970, quando dois fazendeiros decidiram resgatá-lo.
O processo é simples, mas demorado: primeiro lava-se o repolho inteiro, em seguida ele é branqueado por alguns minutos em água quente e posto para secar ao sol. Só então é envolvido em palha e levado a poços com 4 metros de profundidade. A fermentação natural preserva o repolho por cerca de dois anos e garante um sabor delicado, levemente ácido e salgado.
Da remota região de Pamir, no Tajiquistão, vêm as amoras doces e crocantes secas ao sol por 20 dias. As amoras douradas viram também geleias e biscoitos. Por estarem desidratadas, conservam-se até o inverno.
O passeio segue pelas ostras de Pra-Ar-Coum, na Bretanha, o delicioso zataar libanês, ventresca de atum de Jean de Luz, no País Basco francês, o enorme melão waharman do Turcomenistão, o saboroso queijo de cabra com estragão maturado em potes de barro da Armênia, o intenso Clarín, rum haitiano, as cervejas artesanais inglesas, o café selvagem de Harenna, na Etiópia.

HISTÓRIA EMPRATADA

Ninguém entendeu nada quando, em 2009, o toscano Fulvio Pierangelini fechou seu restaurante, Gambero Rosso, em San Vincenzo. Na cozinha do duas estrelas Michelin, Pierangelini criou pratos memoráveis. O mais famoso foi a passatina di ceci con gamberi (veja a receita). Com simplicidade franciscana, o purê de grão-de-bico com camarões leva seis ingredientes e foi tão copiado que o jornalista Paolo Marchi escreveu: "Se Pierangelini recebesse um euro por cada cópia da passatina di ceci, hoje estaria muito rico".
Pierangelini contou a história e o modo de preparo da receita na série de aulas Pratos que Fizeram História. A série teve também Davide Scabin, do Combal. Zero, em Turim, e seu cyber egg, preparado com gema, vodca, chalota e caviar. Os ingredientes são colocados em bolha plástica. O prato chega à mesa com um bisturi no lugar do talher. O truque é furar a embalagem e sugar o conteúdo. Criado em 1998, o prato é dos mais pedidos no restaurante turinense duas estrelas Michelin.

Dos taxistas ao TreGaline, só se falava naquilo

Depoimento de Neide Rigo

As últimas horas do Terra Madre são barulhentas, como se espera de um grande mercado. É gente de toda cor de pele e de todo tipo de roupa ajeitando pertences vindos de mais de cem países diferentes.
Malas e muitas sacolas ocupam os corredores. Troca de cartão e de abraços e a promessa de que continuaremos lutando por um mundo melhor, mais justo, em que todos tenham comida boa e diversificada. E só há um jeito de cumprirmos essas promessas: valorizando quem produz o alimento em pequena escala e protegendo os ambientes onde ele é produzido.
Isso tudo foi o que vimos durante cinco dias aos pés dos Alpes italianos - que nos brindou com neve. Foi a primeira vez que estive presente, participando de duas atividades no Salone Del Gusto, uma com as chefs Mara Salles e Ana Soares, sobre frutas brasileiras - falamos de jatobá, pequi, umbu entre outras - e outra sobre mandioca, onde mostrei como extrair o amido e fazer tapioca.
Só do Brasil, para o Terra Madre, éramos quase cem pessoas, entre pesquisadores, chefs, produtores e membros atuantes do movimento Slow Food. De visitantes, milhares por dia. Era tanta gente, que não conseguimos nem mesmo encontrar com a Roberta Sudbrack, que deu uma aula concorridíssima.
Dos motoristas de taxi às vendedoras do Eataly ou aos garçons do restaurante Tre Galine, em qualquer lugar da cidade não se falava de outra coisa que não o Salone e o Terra Madre.
E nossos produtos despertavam curiosidade. Estavam lá a farinha de copioba da Bahia e a polvilhada de Santa Catarina, nosso mel de abelhas nativas, o licuri, a araruta, o pequi, a farinha de jatobá, o baru, o berbigão e, claro, nossos queijos de leite cru. E com tudo isso a gente começa a achar que um mundo diferente ainda é possível. Somos poucos, mas juntos somos grandes.

OESP, 01-07/11/2012, Paladar, p. P8

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