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A população tradicional em carne e osso

OESP, Vida, p. A20
Autor: CORRÊA, Marcos Sá
14 de Set de 2006

A população tradicional em carne e osso

Marcos Sá Correa

Emerson José de Sousa tem mãos de lavrador e cabeça de biólogo. Há cinco anos, ele era um expoente do que se costuma chamar de população tradicional, sempre que os velhos hábitos nacionais esbarram em novos projetos para conservar a natureza. Em Taiaçupeba, uma cidade que por sorte parou no tempo a uns 70 quilômetros de São Paulo, Emerson vivia da coleta clandestina de plantas ornamentais, nas bordas do Parque Estadual da Serra do Mar.

Vendidas a turistas na beira da estrada ou a floriculturas em Bertioga, as helicônias e samambaias tiradas da mata atlântica sustentaram três gerações de sua família. Seu avô catava muda na floresta. Seu pai, também. 'E eu fui samambaieiro por 12 anos', diz Emerson. Doze anos parecem uma vida para quem acaba de chegar aos 27. Menino ainda, aprendeu a andar no mato, varando a serra, morro acima e morro abaixo, até roçar os condomínios de luxo que iam brotando à beira-mar. Perdeu a conta dos bichos que encontrou nas travessias - 'paca, veado, caititu, onça parda, praticamente tudo'. Uma vez, topou com onça pintada. Não caçava, porque samambaieiro, segundo ele, não perde tempo com espingarda. 'Eu estava atrás das folhas.'

Emerson é capaz de achar até hoje, por caminhos sem trilhas, os grotões perdidos em encostas inacessíveis onde crescem os melhores tufos de helicônias e samambaias. 'Fixava bem a localização, voltava ao lugar quantas vezes quisesse, fazia as podas e deixava as matrizes para a regeneração', explica. Tirou muita planta. Mas não leva ao pé da letra quem 'fala que eu estava detonando o mato'. Não foi ele quem deu fim ao que anda sumindo de lá. 'Muito lugar que conheci no meio da mata agora tem casa em cima, quando não está tudo cimentado', reclama. Os samambaieiros, a seu ver, 'sabem que não podem catar tudo, senão acaba'. Ele só visitava de três em três meses cada ponto de coleta. Na trégua, as moitas se refaziam da visita anterior.

E isso, para Emerson, não deixava de implicar 'uma certa idéia de manejo florestal'. Valia a pena? 'Dava para ganhar a vida', ele responde. Sabendo trabalhar e garantindo a freguesia, ganhava por mês 'uns milzinhos'. Hoje Emerson é encanador e pedreiro. Dá aulas de graça nos fins de semana em escolas rurais. E guia turistas no Parque das Neblinas, que surgiu há quatro anos entre ele e a mata. Reserva particular de 2.788 hectares, o parque foi criado nos eucaliptais da fazenda Sertão dos Freires, onde antes a Suzano, fabricante de papel e celulose, colhia madeira de reflorestamento.

'Fui o último, o mais teimoso', ele relembra. Depois que a empresa proibiu de vez no parque a extração ilegal de flora nativa, a rotina de Emerson mudou tanto, que ele está terminando o curso de Biologia na Universidade Brás Cubas, em Moji das Cruzes. 'No princípio, o parque me impediu de trabalhar. Mas cresci aqui, não quero sair de Taiaçupeba e tratei de sair por baixo para voltar por cima.' Nem por isso maldiz o passado: 'Deu o que tinha de dar'.

Enquanto passa as últimas demãos de verniz acadêmico nas lições que recebeu do mato, vai embicando a carreira acadêmica para cima. Já apresentou em congresso de Biologia um ensaio sobre as virtudes ambientais do eucalipto, desagravando uma árvore difamada por gerações de palpiteiros. E, ultimamente, com o instituto Ecofuturo, braço socioambiental da Suzano, treina moradores para produzirem helicônias e samambaias.

'É até estranho eu dizer isso. Mas sei, por experiência própria, que quando você pára de amansar o mato a samambaia some e rebrotam as guaricangas', ele comenta. Aprende-se muito numa conversa com Emerson. Inclusive, que sua trajetória pessoal talvez não sirva de exemplo, por ser inimitável. Mas se, do outro lado dessa história estivesse uma floresta do governo, e não uma propriedade particular, é provável que ele ainda estivesse catando planta no mato, enquanto as autoridades discutiam se não seria o caso de adaptar o parque aos costumes da população tradicional, em vez de adaptar ao parque a população tradicional.

Marcos Sá Correa, Jornalista e editor do site O Eco (www.oeco.com.br)

OESP, 14/09/2006, Vida, p. A20

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