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Política terá de incorporar agenda verde, diz o WWF

Valor Econômico, Especial, p. A12
Autor: KAKABADSE, Yolanda; CHIARETTI, Daniella
06 de Set de 2016

Política terá de incorporar agenda verde, diz o WWF
"Minha angústia é que não podemos ver o que acontece dentro dos mares. Não há capacidade de pesquisa"
"As forças de mercado são enormes, e é enorme o potencial que têm de fazer tanto o bem quanto o mal"

Daniela Chiaretti

A psicóloga equatoriana Yolanda Kakabadse, presidente há seis anos de uma das maiores ONGs ambientalistas do mundo, o WWF, acredita que a agenda da preservação não pode estar ligada a ideologias e que, por isso, o futuro do ambientalismo é um cenário em que os Partidos Verdes deixarão de existir. "Todos os partidos terão que ter uma pauta verde", diz. "Se há um Partido Verde e os outros não o são, algo está errado."
Yolanda, 68 anos, ex-ministra do Meio Ambiente do Equador, presidiu a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), integrou o conselho da Fundação Ford e de vários outros organismos internacionais. Tem como prioridade trabalhar para mudar os hábitos globais de produção e consumo. Segundo dados da FAO, lembra, um terço dos dejetos alimentícios diários do mundo poderia alimentar 800 milhões de pessoas. Desperdiçar comida "é uma falta de ética social", diz.
Um de seus "chapéus", como ela diz, é estar envolvida com um movimento que procura valorizar os produtos da Amazônia e trazê-los aos centros consumidores. "É preciso formar consciência de que os produtos da Amazônia têm grande valor", defende. "É um absurdo que não utilizemos mais e melhor os alimentos da nossa região. Isso tem a ver com reduzir custos de transporte, melhorar a economia de comunidades locais e melhorar nossa dieta alimentar."
O WWF, que tem 55 anos, escritórios em mais de 80 países e orçamento anual próximo a 700 milhões de euros, aceita doações de governos e empresas e trabalha com o universo corporativo. "Para nós o setor privado é tão importante quanto os governos. As forças de mercado são enormes, e é enorme o potencial que têm de fazer o bem e o mal", diz. O WWF não tem parcerias com empresas de combustíveis fósseis, mineradoras ou fabricantes de bebidas alcoólicas.

Os oceanos são palco dos atentados mais graves contra a biodiversidade, lembrou Yolanda Kakabadse ao Valor, em viagem recente ao Brasil. Ela acredita que a narrativa dos problemas ambientais tem que ser mais simples e clara e que, embora a ratificação do Acordo de Paris pelos países seja importante, isso não impede a ação imediata. A seguir, trechos da entrevista:

Valor: A ratificação do Acordo de Paris avançou em vários países, inclusive o Brasil. Qual sua expectativa sobre esse processo?
Yolanda Kakabadse: Paris foi uma celebração maravilhosa, um acordo fruto de dez anos de trabalho e uma vitória da cidadania. Mas o Acordo conclui uma etapa, todos estamos convencidos que há muito trabalho a fazer. É claro que a ratificação é importante, mas não é condição para agir.

Valor: O que quer dizer?
Yolanda: Ratificar é um passo legal. Mas as ameaças climáticas já são evidentes demais, não podemos esperar nem um dia mais. A ação de governos locais, com medidas para reduzir o impacto, as mudanças tecnológicas nas empresas para reduzir emissões, isso já está a caminho. A ratificação não é condição para seguir com medidas de prevenção. E há três boas razões para que o assunto avance.

Valor: Quais?
Yolanda: O conhecimento do problema é hoje muito maior e o impacto dos eventos extremos já é uma realidade. A mobilização já existe. E o terceiro motivo é que todos sabemos que um aquecimento de 2oC é demais e que temos que chegar a i,5oC para que os danos não sejam tão graves.

Valor: O Brasil não ratificou o Protocolo de Nagoya, que trata do acesso aos recursos genéticos. O Congresso brasileiro tem se mostrado resistente a temas socioambientais. Um país que não ratifica estes acordos fica para trás?
Yolanda: Sim e não. O secretário da Convenção da Biodiversidade é um brasileiro, Bráulio Dias, e ele é alguém que faz a agenda se movimentar. Há muitos grupos de pesquisa no Brasil em biodiversidade, que estudam temas importantes como novas formas de manejo da floresta e da biodiversidade, inclusive com novos negócios. Mas tenho claro que nosso mundo ecologista não soube comunicar a importância destes temas porque falamos de maneira difícil.

Valor: Como mudar a narrativa?
Yolanda: Produziremos mais consciência se explicarmos melhor as coisas. Se falamos de toneladas de carbono, de emissões de gases-estufa, quem entende? O cidadão que anda na calçada, o taxista, a dona de casa não entendem essa linguagem e não podem ser parte da solução. E 99% dos legisladores não são especialistas em clima ou em biodiversidade.

Valor: É forte o apelo para que se protejam tigres e rinocerontes, todos gostam, mas isso não se vincula com a vida cotidiana.
Yolanda: Temos que vincular as duas Convenções, a de biodiversidade e a de mudança do clima, com água, alimentação, saúde e emprego. Um exemplo disso vem do cinturão do tigre na Ásia, uma área que vai da Rússia ao Nepal. Havia três mil tigres na selva e agora são quase 3.900. O tigre é um animal belíssimo, sem dúvida, mas a recuperação da espécie significa que a floresta está melhor, mais protegida e que há menos riscos de inundações e secas. Há mais oportunidades de uso de seus recursos e da exploração de usos da floresta que não a destruam - frutos, flores, combinações de sistemas produtivos com a mata nativa. É assim que o fato de se proteger o tigre tem implicações que têm a ver com a vida diária das pessoas.

Valor: O setor agrícola brasileiro incorporou o discurso que é preciso proteger o ambiente. Mas em muitos casos é só discurso.
Yolanda: A situação de São Paulo em 2015, de escassez de água, é uma oportunidade perfeita para se educar uma população de 20 milhões de que a destruição da mata é responsável pela diminuição da água. É aí onde acredito que todos falhamos, não só as ONGs, mas a imprensa, o governo, cientistas e as Prefeituras. Por que aconteceu a seca? Esses riscos nascem da destruição das bacias hidrográficas que alimentam São Paulo de água. Não se construiu o vínculo entre a importância da biodiversidade e o cotidiano.

Valor: Quer dizer que a preservação não é algo ideológico?
Yolanda: Não importa a ideologia. Há uma realidade, que é a destruição do ecossistema e o impacto sobre o ser humano. No WWF começamos protegendo, há 56 anos, o tigre, o elefante, o rinoceronte, o panda. E depois, há 30 anos, começamos a nos perguntar: mas para quem conservamos? Qual é o benefício da conservação? É a sociedade humana quem está em risco.

Valor: Ao contrário de outras ONGs, o WWF trabalha com empresas. Por quê?
Yolanda: Para nós o setor privado é tão importante quanto os governos. As forças de mercado são enormes, e é enorme o potencial que têm de fazer o bem e o mal. Nossa mensagem é para todo o setor privado e as alianças são com empresas responsáveis.

Valor: Há setores com os quais vocês não trabalham?
Yolanda: Combustíveis fósseis, por exemplo. Dialogamos com eles porque é importante influir em sua forma de pensar. Não fazemos parcerias com empresas de cigarros, bebidas alcoólicas e mineradoras.

Valor: Como lidam com as contradições do setor privado?
Yolanda: Não é só receber dinheiro, é trabalhar juntos. A Unilever, para dar um exemplo, compra apenas peixe certificado. No começo foi muito difícil, porque o mercado dizia "mas nosso peixe é bom". Os fornecedores tiveram que se virar para conhecer a cadeia do peixe, de onde vem, com que prática foi pescado, como reduziram o impacto no mar. Fizemos o mesmo com óleo de palma, ajudando a construir estratégias. Perguntamos às empresas onde está o impacto que causam, onde têm que reduzir, como podem reduzir.

Valor: Trabalhar com empresas não pode colocar a ONG como cúmplice? Qual é o limite?
Yolanda: Veja, a empresa francesa de petróleo Total foi a primeira a dizer que nunca irá explorar petróleo de um lugar que seja Patrimônio Natural Mundial da Unesco. Que boa decisão, temos que reconhecer passos importantes mesmo se não vamos trabalhar com a Total, porque não trabalhamos com empresas de combustíveis fósseis. Nós, no WWF, cometemos erros no passado, por isso somos cada vez mais rígidos sobre como escolhemos os parceiros. Mas acreditamos que o setor privado tem que ser parte dos esforços de conservação e do uso racional dos recursos naturais.

Valor: Em Mariana ocorreu uma tragédia que matou pessoas e estragou um rio. Sequer começamos a mitigar o dano e no Congresso querem abrandar a legislação ambiental. Como reverter a tendência conservadora em temas ambientais?
Yolanda: É onde sinto a necessidade que os legisladores entendam melhor o que estamos dizendo. O que quer dizer o impacto de poluentes no recife de corais que o Brasil tem na Foz do Amazonas, por exemplo? Ali não se destrói apenas um lugar de turismo, mas o berço de espécies que comemos. Se destruirmos esse ecossistema, milhares de peixes que servem para a alimentação da população do Brasil deixam de existir.

Valor: Proteger os oceanos é um ponto importante para o WWF. Pode falar a respeito?
Yolanda: A única fonte de proteínas de 60% da população mundial é o peixe. Todo atentado ao oceano é um atentado à fonte de alimentação do ser humano. Minha maior angústia é que não podemos ver o que acontece dentro dos mares. Nas florestas, com um helicóptero podemos parar um processo de destruição, mas no fundo do mar não sabemos o que está acontecendo. Não temos capacidade de pesquisa. E muita coisa está acontecendo ali: o oceano absorve muito C02, as águas estão mais quentes e isso afeta a vida marinha. Além disso, mandamos poluição industrial, esgotos e produtos químicos, além dos microplásticos que estão nos cosméticos e nos cremes dentais. Já há peixes afetados em seu ciclo de reprodução por causa dos microplásticos.

Valor: Como acredita que os oceanos possam ser protegidos?
Yolanda: Os oceanos são palco dos atentados mais graves contra a biodiversidade. Estamos destruindo nossas próprias fontes alimentícias. Há um processo na ONU que tenta regulamentar a extração de recursos em mares profundos, onde hoje é terra de ninguém. Temos que regular quanto se pesca, o número de pescadores, as toneladas que saem de lá. Não quer dizer que não se pode tocar em nada, mas dar as regras do jogo.

Valor: Como trabalham com o setor agrícola? No Brasil, o setor é a maior força do PIB e embora existam alas de vanguarda, há outros que não entendem o discurso ambiental. O Cerrado, por exemplo, não é visto por muitos como um bioma que deve ser preservado, mas que serve apenas para produzir.
Yolanda: Temos pouca capacidade institucional para também atuar na área agrícola, mas trabalhamos com projetos demonstrativos. Trabalhamos muito com comunidades locais onde é fácil demonstrar o bom uso da água, de não destruir a floresta, de práticas agrícolas que são saudáveis. Agora trabalhamos com carne sustentável em alguns lugares do mundo. Queremos mostrar que o pecuarista pode produzir carne gastando menos água. Quando se pede uma bisteca, em um restaurante, está se bebendo 10 mil litros de água. A água, na produção da carne, não tem limites. É usada como um recurso infinito e isso é irracional.

Valor: Como trabalhar com os limites da Terra?
Yolanda: Temos que mudar hábitos de produção e de consumo. Em Estocolmo, entrei em um hotel para uma reunião e no café da manhã havia 300 pessoas. Em todas as mesas havia um cartaz: "Sirva-se com o que irá consumir. Tudo o que deixar no prato será cobrado." Ninguém se serviu mais do que iria consumir. É cultural. Isso de encher o prato e comer um terço é um hábito destruidor. Um terço dos dejetos alimentícios diários poderia alimentar 800 milhões de pessoas, segundo a FAO. É uma falta de ética social. Temos que mudar formas de manejo dos alimentos, a quantidade de lixo que produzimos. Isso tem a ver com o governo, com o setor produtivo de alimentos, com mercados. As datas de validade dos produtos têm que ter critérios diferentes.

Valor: O que quer dizer?
Yolanda: Muitos jovens quando olham a data de validade de um produto e notam que venceu, jogam a comida no lixo. É uma loucura, muitas vezes a comida não está ruim. Se o tomate amoleceu pode ser cozido, com a lata de pêssegos em calda ou de feijão não acontece nada. Claro, com peixe e carne têm que ter mais cuidado. São comportamentos de mercado que têm que mudar porque 40% da comida vai para o lixo todos os dias em São Paulo, em Tóquio, em Estocolmo, em Londres. Isso é muito grave. E a conta do prejuízo é muito maior.

Valor: Leva em conta muitos outros fatores?
Yolanda: Claro. Maus hábitos alimentícios afetam a saúde e levam à obesidade, que têm impacto no orçamento de saúde dos países e pode ser evitada. E quanto mais pobre você for, pior come. Este é um tema estratégico porque junta água, saúde, agricultura, biodiversidade, florestas.

Valor: Qual a estratégia para indicar que estes assuntos estão todos interligados?
Yolanda: Uma das formas de traduzir a mensagem da mudança do clima e da biodiversidade para os cidadãos, é falando de segurança. Problemas de segurança hídrica, de segurança energética - o que aconteceria se os rios ficarem sem água e deixarem de produzir energia elétrica. Temos que falar dos riscos à saúde e dos novos vetores que aparecem em várias partes do planeta, de zika à malária no lago Titicaca a quatro mil metros de altura. É importante pensar em segurança alimentar, energética, de saúde e cruzar isso com mudança do clima e biodiversidade.

Valor: Como a senhora vê o consumo nos países emergentes, onde não se alcançou o padrão dos outros mas existe o desejo?
Yolanda: Este é um assunto difícil, altamente político. Todas as nossas sociedades têm problemas de riqueza e pobreza, de maus hábitos e de falta de esforços em combater a cultura de consumo. Todos racionalmente promovemos este consumo irracional. Temos que trabalhar nos limites do planeta e entender que ele não pode satisfazer as ambições de consumo ilimitadas de todos. Não dá para que todas as famílias do mundo tenham um carro, para que tenhamos desperdício, continuemos poluindo rios e oceanos. São fronteiras que uma vez rompidas é muito difícil recuperá-las.

Valor: Como fazer que a floresta tenha valor e que isso não seja apenas um clichê simpático? Gado tem valor, madeira tem valor, mandioca tem valor, mas mato não tem valor.
Yolanda: Há um movimento novo que espera fazer com que o produto da Amazônia chegue a um bom restaurante em Londres e em São Paulo. Mas precisamos, primeiro, do consumidor que irá àquele restaurante porque ali servem mandioca que vem da Amazônia. Queremos fazer com que produtos da Amazônia cheguem a estes mercados, que exista um vínculo direto com a comunidade, que ela continue com seus modos de produzir e receba um bom preço pela sua mandioca, sem que precise cortar o bosque. Com o mínimo de intermediários, que é quem deforma essa cadeia.

Valor: Qual o primeiro passo para que isso funcione?
Yolanda: Tem a ver com a consciência que os nossos produtos amazônicos são de muito valor. As pessoas de São Paulo não têm ideia dos produtos da Amazônia, nem as de Lima ou de Santa Cruz. No Equador talvez a consciência seja um pouco maior, porque o país é menor e a floresta está mais perto. Mas, em geral, o cidadão não sabe que temos maravilhas na floresta e que são produtos que não precisam de nenhum desmate. Ao contrário: para que o produto seja bom, tem que estar rodeado pela floresta. É um absurdo que não utilizemos mais e melhor os alimentos da nossa região. Isso tem a ver com reduzir custos de transporte, melhorar a economia de comunidades locais, melhorar nossa dieta alimentar. A dor é que a cada dia perdemos espécies que sequer conhecemos.

Valor: O ambientalismo está em crise?
Yolanda: Em alguns países sim, porque muitos governos veem os movimentos ambientalistas como obstáculo para seus processos de desenvolvimento. Em 10 anos houve mais de mil ambientalistas assassinados, o que mostra que algo está muito errado. Mas o ambientalismo é um movimento que tem muitos sonhos, eu vivo de sonhos positivos. Creio que no futuro não deverão existir Partidos Verdes, porque todos os partidos terão que ter uma agenda verde. Se você tem um Partido Verde e os outros não o são, algo está errado.

Valor: Como a senhora vê o futuro do ambientalismo?
Yolanda: As organizações ambientalistas serão menos críticas, porque os problemas já se solucionaram, e serão mais inovadoras em como fazer as coisas melhorarem. Sonho com que os governos locais tenham uma agenda verde forte, porque são os que mais impacto têm. Sonho com cientistas falando de um jeito fácil. Tenho ilusões de novas políticas fiscais na América Latina, eliminando impostos para energia solar e carros elétricos e dando incentivos econômicos a empresas nacionais que possam produzir tecnologias que ajudem com os tópicos de mudança climática. Espero que os produtos da Amazônia cheguem aos grandes centros, revalorizando produtos de nossos países. São todos assuntos de políticas públicas.

Valor Econômico, 06/09/2016, Especial, p. A12

http://www.valor.com.br/internacional/4700361/politica-tera-de-incorpor…

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