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Plantas medicinais da Amazônia no combate à Covid-19

O Globo - https://oglobo.globo.com/opiniao
Autor: MEYER, Mario-Christian
14 de Set de 2020

Plantas medicinais da Amazônia no combate à Covid-19
Biodiversidade é uma mina incalculável de substâncias terapêuticas

Mario-Christian Meyer

Nos últimos meses, médicos e cientistas do mundo inteiro têm discutido protocolos de tratamento para a Covid-19. As infecções causadas pelo novo coronavírus já ceifaram um milhão de vidas, e todos esperam ansiosamente uma solução.
Como pesquisador em neuropsiquiatria e novos medicamentos, fico a pensar se não seria a hora de nos debruçarmos sobre a pesquisa de novas moléculas terapêuticas em resposta à alta demanda por produtos orgânicos, e não ficarmos presos apenas à química de síntese.
Realizei mais de 30 missões científicas e tecnológicas na Amazônia, onde estão muitas respostas que a medicina espera para curar inúmeros males que atingem a humanidade e me pergunto: quantos sabem que dois Prêmios Nobel de Medicina e Fisiologia tiveram origem no vasto conhecimento ancestral indígena sobre bioativos vegetais da Amazônia, ou que diversos remédios que tomam têm raízes nesses saberes?
Para entender a importância dessa biodiversidade, temos que falar da robusta contribuição que a Amazônia já aportou para a ciência ocidental, por ser portadora do maior banco genético do planeta e do maior número de índios não aculturados, detentores do conhecimento das plantas medicinais.
No tratamento da Covid-19, por exemplo, estão presentes as tubo-curarinas originárias do curare amazônico, utilizadas nas flechas envenenadas e na farmacopeia ameríndia desde a Pré-História. Estas moléculas, extraídas de plantas como os Chondrodendron e Strychnos, sintetizadas em 1942, renderam o Nobel de Medicina em 1957 a Daniel Bovet, pela descoberta do curare despolarizante. A medicina moderna utiliza o curare nas entubações orotraqueais e reanimações via respiradores artificiais, devido aos seus efeitos miorrelaxantes sobre o aparelho respiratório.
A tão falada hidroxicloroquina - utilizada em certos pacientes acometidos pela Covid-19 por reduzir a carga viral de SARS-CoV-2 e contra doenças autoimunes, como o lúpus e a poliartrite reumatoide, por sua ação anti-inflamatória e de imunomodulação - também é originária da Amazônia. Sua precursora, a quinina, era empregada pelos índios antes da chegada dos espanhóis e portugueses, por sua ação antipirética e antipalúdica. O extrato da casca da quinquina, o famoso "Pó dos Jesuítas", sintetizado em 1944 sob o nome de cloroquina, tem o mesmo núcleo quinolínico presente naturalmente em rutáceas da Amazônia. Esta preciosa quinolina é encontrada em diversas plantas, que constituem uma fonte nova e potencialmente promissora de medicamentos do futuro.
Outro fator importante para a medicina, com raízes fincadas na Amazônia, foi a compreensão do fenômeno da anafilaxia, uma reação de hipersensibilidade imunológica que pode levar a óbito. Encontramos essa resposta inflamatória desproporcional nas formas graves da Covid-19. No princípio do século passado, a crepitina extraída da árvore Uassacu (Hura crepitans), fornecida pelos indios apurinã ao pesquisador Charles Richet, levou-o à descoberta da anafilaxia e rendeu-lhe o Nobel de Medicina e Fisiologia de 1913. Esta descoberta constituiu uma base científica a partir da qual pudemos compreender melhor os mecanismos de ativação hiperamplificada do sistema de defesa. Penso que, se a Hura crepitans for estudada mais profundamente, poderá nos ajudar a decifrar o funcionamento do sistema imunológico nas suas interações com a atividade viral e o modus operandi dos novos coronavírus, como este que hoje nos castiga, e dos que virão.
A Amazônia e os indios já aportaram à ciência ocidental e à indústria uma vasta gama de princípios ativos, como guaranina (psicotônico, antienxaqueca), emetina (antiamebiano), artemisinina (antipalúdico) ou blockbusters (moléculas que geram faturamento de bilhões de dólares/ano) - tal a pilocarpina (antiglaucoma) e o captopril (anti-hipertensor), comercializados por dois dos top 5 laboratórios farmacêuticos. Sua biodiversidade é uma mina incalculável de substâncias terapêuticas, a maior parte ignorada pela ciência moderna. Além da incontestável contribuição de seus princípios ativos para a saúde, esse verdadeiro ouro verde atinge cifras inimagináveis, representando o novo capital biológico da Amazônia! Um litro de qualquer extrato vegetal purificado biotech custa em média US$ 2.000.00, ou R$ 11.400,00. Outros, como o anticâncer Taxol, ou Taxotere, já atingiram valores de mercado da ordem de US$ 330.000,00/litro, cerca de R$ 1.880.000,00/litro.
Temos acompanhado com grande preocupação a contaminação da população indígena pelo SARS-CoV-2, pois os índios não possuem defesas imunológicas apropriadas contra vírus e outros agentes patogênicos importados pelos não índios. No passado, as gripes, o sarampo e a malária exterminaram tribos inteiras. Temos o dever ético de proteger esses doutores da floresta, que já tanto ofereceram à saúde dos ocidentais.
Nesse sentido, iniciativas concretas estão em curso, como o projeto piloto Plataforma Eco-Ethno-Biotecnológica Herb'Içana, fruto de missões em 20 diferentes etnias. É resultado de uma parceria inédita entre índios e cientistas que utiliza biotecnologias verdes de ponta associadas aos saberes ancestrais para a valorização dos princípios ativos da biodiversidade, visando a fomentar na Amazônia uma bioeconomia solidária e justa, único antídoto sustentável ao desmatamento e à biopirataria, participando assim do equilíbrio bioclimático do planeta. Essa bioeconomia vai garantir o desenvolvimento sustentável de regiões vulneráveis e uma considerável melhoria da qualidade de vida de sua população.

Mario-Christian Meyer é cientista e fundador e presidente do Programa Internacional de Salvaguarda da Amazônia, Mata Atlântica e dos Ameríndios para o Desenvolvimento Sustentável

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