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Plano para Amazônia mostra visão híbrida

Valor Econômico, Especial, p.A16.
Autor: CHIARETTI, Daniela
18 de Nov de 2020

Plano para Amazônia mostra visão híbrida

De um lado, documento tem enfoque ideológico; de outro, traz propostas técnicas para conter desmate

Por Daniela Chiaretti - De São Paulo

O plano estratégico do governo para a década 2020-2030, que está em discussão pelo Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL), é um híbrido. Se de um lado apresenta visão ideológica e arcaica da região, traz também propostas técnicas e avança em questões centrais para conter o desmatamento e promover o desenvolvimento sustentável. Em alguns trechos soa como uma lista de desejos, como no que menciona a "reativação" do Fundo Amazônia, sem sinalização dos doadores. Em outros, como uma lista de intenções. O tom de militarização da região é inconteste. O plano e as iniciativas estratégicas prioritárias, sob a ótica do governo Bolsonaro, foram discutidas na terceira reunião ordinária do Conselho Nacional da Amazônia Legal no início do mês. Na ocasião foi apresentado aos ministros presentes um Power Point com uma síntese, o texto-esboço do plano e algumas planilhas em que os ministérios devem elencar suas ações. Em vários momentos, ao descrever a atribuição de ações que tradicionalmente seriam do Ministério do Meio Ambiente, o documento desloca a responsabilidade para o Ministério da Defesa.

Há grandes lacunas. O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, referência internacional no monitoramento de florestas tropicais, nunca é citado. Ibama e ICMBio, órgãos-chave para ações de comando e controle da região e para o cuidado e a gestão das unidades de conservação, são mencionados em item sucinto e que sugere a reestruturação de ambos. Povos indígenas, comunidades quilombolas, ribeirinhos e demais populações tradicionais não estão no foco do plano. Há citações tangenciais, como a do "projeto de reestruturação da Funai" a cargo do Ministério da Justica e prazo até dezembro. "É uma evolução em relação ao primeiro plano", registra uma fonte que conhece administração pública e a atuação do MMA. Ele se refere ao primeiro documento, que foi divulgado depois da primeira reunião do conselho. O texto de agora é desdobrado em planilhas. Ali existe a tentativa de se detalhar ações, com metas e objetivos de curto prazo (2020-2023), médio (2024-2025) e longo (2028-2031). "Mas, se o documento ganhou páginas, continua raso. Não tem novidade sobre o que existia antes e não se apontam caminhos", diz. Em webinar na semana passado, o general Hamilton Mourão, que preside o CNAL, disse que o plano "é um trabalho gigantesco" e deixou claro que está em construção. "Esperamos na virada do ano ter este planejamento construído", mencionou.

A intenção, segundo o vice-presidente, é ter metas acordadas com cada um dos 15 ministérios. Ele destacou a importância do bloco de planejamento estratégico, "visando o médio e o longo prazos. Algo que permaneça, independentemente do governo de turno. Que não seja rasgado e que seja um planejamento factível". Mourão descreveu o processo de elaboração do plano em evento promovido pela Federação das Câmaras de Comércio Exterior em parceria com a Suzano. "Construímos uma base para este planejamento estratégico, que levantou três objetivos gerais que estão ligados à proteção, preservação e desenvolvimento da Amazônia." Estes objetivos foram decompostos em objetivos estratégicos secundários, "que agora estão sendo transformados em um trabalho mais meticuloso, em objetivos operacionais, ou seja, aqueles que são as metas para que avancemos nos três grandes eixos". Ele mencionou algo em torno a 110 metas a serem atingidas ao longo dos próximos anos. Mourão descreveu "as três Amzônias diferentes" dentro da região. "Uma delas é a antropizada, com solução distinta da Amazônia Central, que é a que considero que é a linha que tem que ser mantida intocada e o avanço da área antropizada tem que ser bloqueado ali." Esta área estaria compreendida entre os rios Xingu e Madeira. E a Amazônia Ocidental, do Madeira até a fronteira, "com vocação totalmente distinta. Cada uma tem uma solução diferente", disse Mourão.

Na parte antropizada "é onde teremos projetos de pecuária e de lavra minerária dentro do respeito das nossas regras, buscando projetos de regeneração das áreas degradadas, melhorias de produtividade e do Índice de Desenvolvimento Humano", descreveu. Disse que, enquanto ""não se levar a conectividade aos confins da Amazônia, não teremos controle" e "fica difícil levar o investidor se ele não tem conectividade que hoje é primordial para pesquisa, desenvolvimento e inovação", seguiu.

O documento tem ideias que retornam de gestões passadas como a que sugere que o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, poderia evoluir para se tornar uma Agência Nacional de Terras. A ideia pode ter potencial, mas, como o documento não foi aberto para discussão à sociedade, fontes do agronegócio consultadas pela reportagem não sabem dizer do que se trata. "O Incra não tem estrutura, equipe e situação financeira para dar conta da agenda de regularização fundiária que é desafiadora", diz um executivo do setor. "A criação de uma agência pode ser uma iniciativa boa, mas não sabemos." A organização fundiária da Amazônia é estratégia central para conter o desmatamento. Quem tem título da terra cuida mais da propriedade. Richard Torsiano, que foi diretor de ordenamento da estrutura fundiária do Incra por dez anos, vê com reservas a ideia de criação de uma agência sem que se tenha claro seus objetivos. "O ideal seria fortalecer e modernizar o Incra, que já tem robustez e uma grande base de dados cadastrais e poderia atuar na principal agenda da América Latina", opina o especialista em governança de terras.

Entusiasta da política de regularização fundiária, Torsiano lembra o passivo histórico que o país tem com a regularização de territórios quilombolas e reforma agrária. O documento do Conselho da Amazônia Legal traz outro mistério ao citar, entre as ações do governo realizadas e em andamento, a "decretação da moratória da terra". A ação está a cargo da pasta da Agricultura e seu cronograma é dezembro. "Pode ser potencialmente interessante se mandar um sinal de que o governo não vai regularizar territórios que foram ilegalmente desmatados", diz um técnico do MMA. Um dos quadros aponta para soluções interessantes, ao dividir ações e programas na região tomando por critério o grau de desmatamento dos municípios. Em regiões na fronteira do desmatamento e de expansão da ocupação, o texto sugere restrições ao crédito e à regularização fundiária para quem agiu na ilegalidade. Há contudo sinalização de benefícios para quem está na direção oposta. Seriam imóveis prioritários para o programa Floresta+ e poderiam ter maiores benefícios em pagamentos de serviços ambientais.

Ideias nesta direção, de punição dos ilícitos ambientais, repercutiram na semana passada evidenciando uma situação de conflito entre o presidente Bolsonaro e o vice-presidente Mourão. Foi quando vazou, em reportagem de "O Estado de S. Paulo", o item que dizia que o governo poderia expropriar "propriedades rurais e urbanas acometidas de crimes ambientais". Bolsonaro reagiu rapidamente, dizendo que a ideia era um "delírio" e que demitiria quem levantasse a possibilidade, "a não ser que essa pessoas seja indemissível". A investida de Bolsonaro deixou claro que há divergências sobre a faca de corte da punição da ilegalidade. É isso que o esboço do plano, em discussão nos ministérios, propõe e é isso que investidores internacionais, empresários e a sociedade espera do governo. "Mourão é muito receptivo, educado e inteligente. Mas a estrutura constitucional brasileira não dá poder ao vice. Para agir, ele depende dos ministérios da Agricultura, do Ambiente ou da Saúde. Não tem verba própria ou comando próprio", diz uma fonte empresarial. "Bolsonaro foi eleito com o mote de combater a ilegalidade. Mas ele induz a ilegalidade a cada discurso. É um brinde e um incentivo a quem faz errado."

O plano do CNAL é ainda uma colcha de retalhos. "Não é um plano estruturado. São propostas em Power Point. O material tem contradições internas", aponta Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima, a maior rede de organizações não governamentais com atuação climática. Uma de suas críticas é que, "do ponto de vista técnico, não faz menção ao que existe até agora. É como se o Brasil tivesse sido passado a limpo". Uma das maiores controvérsias do material vazado à imprensa logo depois da reunião do CNAL foi a intenção do governo de "criar um marco regulatório para a atuação da ONGs" como uma das ações estratégicas prioritárias. A meta de controlar as organizações com atuação na Amazônia é um objetivo operacional, de acordo com o documento, abaixo do objetivo estratégico que busca "reduzir crimes ambientais". "Ou seja: quem propôs o item enxerga as ONGs como organizações criminosas", destaca uma fonte. "Ignoram o trabalho das organizações pela preservação da floresta e o combate ao desmatamento."

Na ocasião, 73 organizações não ambientais assinaram nota de repúdio ao plano do governo de cercear a ação das ONGs na Amazônia. Mourão reagiu dizendo desconhecer o ponto, que está no texto. O plano, até o momento, recolhe sugestões, propostas e ações dos ministérios. Neste amplo espectro de contribuições, o documento reflete posições conservadoras e ideológicas e aspectos mais modernos de lidar com a ilegalidade e o desenvolvimento da região. "A sobrevivência do poder hegemônico de países como Reino Unido, França, Alemanha e Estados Unidos dependem do acesso à vasta fronteira internacional de recursos naturais estratégicos", inicia o Power Point. "A entrada da China no seleto grupo de grandes potências econômicas hegemônicas do mundo contextualiza uma nova realidade global, na qual regiões ricas em recursos naturais estratégicos passam a ser o alvo das políticas externas do governo chinês."

O texto segue pela crise global da água, apontando situações críticas na China, Índia, México, Oriente Médio e nos países do "chifre da África" e no norte do continente africano. Há um alerta: De toda a água doce disponível, 70% dela é destinada à agricultura, 22% vão para a indústria e apenas 8% são consumidos em clubes, residências, hospitais e escritórios. Na sequência, a constatação de que o Brasil é o detentor das maiores reservas de água doce do planeta. "O Brasil já está exportando sua água de maneira predatória, através do desmatamento e das exportações sem valor agregado de soja e carne", ressalta Raoni Rajão, professor associado de gestão ambiental da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "O principal meio de defender os interesses nacionais é através de uma governança ambiental forte", continua. Embora o general Mourão venha repetindo que é preciso fortalecer os órgãos ambientais, o texto do plano de ações para a Amazônia tem ambiguidades como quando cita a reestruturação do Ibama e do ICMBio. "Vale a pena mudar a instituição? Ter uma nova? É uma quebra grande do ponto de vista institucional e que pode dar um atraso grande nas ações", questiona Brenda Brito, pesquisadora do Imazon.

Outro mapa do plano lista o potencial minerário da região com a localização das jazidas de ouro, estanho, nióbio, petróleo e gás natural, potássio, calcário, manganês, ferro, alumínio, diamante, cromo, linhito e urânio. Em outra página, descreve-se em poucos tópicos a importância geopolítica da Amazônia. Ressalta o "grande estoque de recursos estratégicos da região" e cita "interesses menos republicanos entre nacionais". Segue mencionando o "apoio das entidades ambientalistas aos governos europeus - interesse comercial de proteção ao agronegócio". O plano de ações é extenso. Em outra parte, menciona a implementação do Código Florestal e a ampliação no número de imóveis rurais no Cadastro Ambiental Rural (CAR), ações que estão em curso há anos e não desenrolam. "A implementação efetiva do Código Florestal, com a finalização e avaliação do CAR e adequação dos passivos é de fundamental importância para a agropecuária", destaca o advogado Rodrigo Lima, diretor geral da Agroicone e especialista em negociações internacionais. "Isso permitirá passar informações críveis ao longo da cadeia e estampar indicadores de sustentabilidade nos produtos brasileiros." Outra parte da proposta cita cenários para o que seria um "futuro desejado" para a Amazônia. Ali mencionam-se aspectos cruciais como o zoneamento ambiental, a titulação de terras, a presença do Estado e a fiscalização, a infraestrutura sustentável e cadeias produtivas baseadas na bioeconomia. O primeiro ponto da coluna "preservação" é a "soberania". O documento dá grande ênfase à atuação do Ministério da Defesa.

O Ministério do Meio Ambiente, por seu turno, está preocupado em perseguir créditos de carbono. O da Economia tem que buscar fontes de financiamento nacionais e internacionais, público e privadas. O documento cita a necessidade de se contratar servidores para atuar localmente, entre as ações estratégicas prioritárias. Diz que é preciso aumentar a fiscalização das madeireiras. Pretende qualificar a cobrança do Imposto Territorial Rural (ITR) e reverter a arrecadação de multas por infração ambiental para os municípios onde ocorreram. "É preciso dizer que 70% do que está no plano é o que a sociedade civil está pedindo há muito tempo", diz o biólogo e empresário Roberto Waack, que se debruçou sobre o documento para analisar pontos positivos e negativos. "Entre os problemas, o fato de o plano ser um documento egresso do Executivo do governo federal e ponto. Esta discussão precisa ser ampliada para os segmentos da sociedade, governadores e municípios", diz. Ele destaca a falta de atenção às populações tradicionais. "O debate de infraestrutura precisa ser muito aprofundado."

Valor Econômico, 18/11/2020, Especial, p.A16.

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/11/18/plano-para-amazonia-m…

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