VOLTAR

A pirataria florestal

O Estado de S.Paulo-SP
Autor: Lúcio Flávio Pinto
04 de Dez de 2001

Preço no mercado internacional se tornou tão vantajoso que reativou corrida às reservas florestais amazônicas

Calculam alguns técnicos que 20 milhões de metros cúbicos de madeira sejam extraídos da floresta amazônica a cada ano. Estimam também que 80% dessa madeira são cortadas ilegalmente. Isto significa que todos os anos uma área de 40 mil hectares perde a sua cobertura vegetal sem que o agente do processo seja o dono da terra usada ou, mesmo tendo sua propriedade, dela retira a madeira sem cumprir as normas legais. O resultado é a destruição ecológica, a sonegação de impostos e a criação de um circuito clandestino do mercado, que pode desembocar em diversas ilicitudes (da propina à economia subterrânea) e em conflitos sangrentos entre os diversos personagens dessa cadeia marginal.
Quem optou pela marginalidade assume o risco. Em casos cada vez mais numerosos, ele pode significar multa pesada, apreensão da mercadoria ou prisão do infrator, além das sanções sobre a área irregular. Uma tecnologia mais agressiva e acessível, tendo como base de apoio os satélites, com recuperação imediata da informação, como nos portáteis GPS, e um estado de consciência internacional, têm aumentado a probabilidade de constatação, caracterização e repressão a antigos métodos de pirataria florestal, antes não detectáveis.
Certificação
Um número crescente de madeireiros, raciocinando sobre cálculos objetivos, já está chegando à conclusão de que é melhor e até mesmo mais rentável legalizar sua atividade. Um selo de certificação, uma boa imagem e referências favoráveis de instâncias arbitrais ou avalizadoras são instrumentos para abrir ou manter os melhores clientes espalhados pelo mundo. É claro que muitos compradores de madeira tropical em boas praças ainda não se preocupam em saber se o produto que recebem tem uma origem identificável ou se ela representa uma atividade de manejo auto-sustentável. O que interessa é o preço. E o preço no mercado internacional se tornou tão vantajoso que reativou uma nova corrida às reservas florestais amazônicas.
A correria deu a esse refluxo as características de uma autêntica garimpagem de madeira, tão desordenada e compulsiva quanto as investidas dos farejadores de ouro. Não por acaso, a comparação entre a caça às espécies vegetais mais nobres e a garimpagem do metal dito precioso tem sido tão freqüente. Homens têm sido largados no meio da floresta, estradas primárias são rasgadas para dar acesso a áreas novas, índios têm sido seduzidos a abrir caminho às suas terras de densa cobertura florestal, acidentes de percurso são suplantadas com selvageria (que às vezes se manifesta em cursos d´água aterrados) e quem se coloca na frente dos pioneiros é atropelado ou induzido a se submeter através de algum meio persuasivo ou de constrangimento. A febre da madeira está grassando nesse começo de século e milênio no sertão amazônico com a virulência da febre do ouro nos anos 80.
Como aconteceu naquela época, agora o Estado é também atraído para a cumplicidade. Na década de 80, os garimpeiros de Serra Pelada eram tratados como heróis nacionais. O ouro que arrancavam do ventre da terra ia parar nos depósitos do Banco Central, compensando a evaporação das divisas em dólar que haviam sido acumuladas (e dilapidadas) nos anos do "milagre econômico", ao longo da década de 70. Já os madeireiros da década inaugural do novo século suprem a lacuna do agente público na abertura e "amansamento" das novas fronteiras, assumindo por sua conta a construção de estradas, a instalação de cidades, a multiplicação de atividades produtivas e a criação de oportunidades de trabalho.
O problema é que, com a globalização dos circuitos econômicos, a corrida é mais extensa e os corredores exigem a delimitação do percurso para conectar o ponto de origem ao de chegada. Algum tempo atrás seria inimaginável o que aconteceu no mês passado: uma instituição governamental, como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), fazer uma operação de combate à extração ilegal de mogno, a mais valiosa de todas as madeiras da Amazônia comercializadas no mundo, ao lado de uma ONG ambientalista, como o agressivo Greenpeace, que ofereceu meios materiais para aumentar a eficácia da operação. Poucos dias depois de ter indicado os alvos da pirataria madeireira, possibilitando prisões e apreensões, o Greenpeace armava seu estande ao lado dos inimigos declarados de ontem, no 5o Congresso Internacional de Compensado e Madeira Tropical, realizado em Belém, o lugar que mais embarca madeira em toda a região.
Garimpagem
Esses antigos contendores parecem convencidos de que a selvageria dessa nova forma de garimpagem prejudicará, até o limite da eliminação, os agentes produtivos interessados numa atividade mais duradoura, menos sazonal, que atendem compradores através de contratos com prazos mais longos do que o varejo de centenas de predadores (e preadores) de madeira espalhados pelo hinterland amazônico.
A corrida desses personagens é pela legalização. Centenas de projetos de manejo florestal vêm sendo protocolados no Ibama, que não tem estrutura - material e humana - para dar à apreciação desses pedidos a velocidade que sua avolumação requer, nem o respaldo que o legitime junto a instâncias internacionais, fiadoras da relação comercial em bases menos selvagens. Quando o licenciamento ambiental é expedido, descobre-se que a titulação das terras é podre. Pressionado a conceder os títulos requeridos por compra, aí é o Estado que se surpreende com sua fragilidade e com certa dose de leviandade na gestão do patrimônio fundiário público. Flagrado ao agir como mero mercador imobiliário, à maneira de um simples corretor privado, assusta-se com a possibilidade de receber a culpa pelo esgotamento dos últimos estoques florestais da região, entregues a preço de banana e por critérios de mercado persa.
É o que está acontecendo com o Estado do Pará no momento. O avanço das frentes madeireiras sobre a área que tem a maior - e a derradeira - concentração de mogno, no vale do Xingu, na margem direita da calha do rio Amazonas, adquiriu os contornos de um caso de calamidade pública. O Estado se comportava em relação ao problema como se o seu principal papel fosse o de aguardar, na retaguarda, que alguns dos pioneiros se livrassem do front caótico, no qual a única lei respeitada é um feroz darwinismo social, e lhe apresentassem seu pedido de regularização da terra, protocolado e despachado debaixo de algumas formalidades, adotadas mais para inglês ver, e o preço de venda carimbado, recolhendo-se o dinheiro ao erário para financiar obras explícitas (e outras nem tanto, como o fundo eleitoral).
Alcançado pelas críticas e pelos primeiros indicadores acusatórios, o Estado apressa-se a buscar uma posição mais coerente com sua natureza de intérprete e defensor do interesse coletivo. Estuda-se a suspensão dos processos de venda de terras através de requerimentos, que começaram a pipocar no Instituto de Terras do Pará, ressuscitando uma era de triste memória (no início da década de 60 e a partir da metade da década de 70, até o começo dos anos 80), em que havia uma indústria da venda de terras estaduais - e, por derivação, uma indústria da fraude de títulos de propriedade, com a formação de autênticas quadrilhas.
O Estado volta a se convencer de que não deve simplesmente alienar a terceiros as valiosas terras públicas. A venda pode ser substituída com proveito pela concessão com cláusula resolutiva, condicionando a aquisição ao cumprimento de obrigações. A expedição da autorização deve também estar casada com o melhor uso da terra, de acordo com aptidões bem examinadas e definidas. A venda terá que ser precedida de um zoneamento, o que pode reeditar o projeto das florestas de rendimento, que a extinta Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia) chegou a conceber nos anos 70, mas não pôs em execução. O governo teria papel ativo na aprovação, no controle e na fiscalização da atividade florestal, que seria desenvolvida em suas terras.
Se essa contra-onda regulamentadora e intervencionista aumentar e quebrar sobre o mar revolto da pirataria de madeira, poderá vir a ser um sinal de que o réquiem para as melhores partes da floresta amazônica ainda não soou. Ou, se teve o seu primeiro dobrado, ainda pode ser revertido. Ainda há tempo para um contracanto mais alegre - e vivo.

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.