VOLTAR

Pintados e armados, índios invadem fazendas

FSP, Brasil, p. A1 e A6-A7
04 de Jan de 2004

Pintados e armados, índios invadem fazendas
TERRA À VISTA Com espingarda e arco e flecha, 3.000 guaranis e caiuás ocupam 4 propriedades para ampliar área demarcada

Lalo de Almeida/Folha Imagem

Índio armado com arco e flecha e vestido para a guerra fica de guarda na sede da fazenda São Jorge, invadida por guaranis e caiuás

Hudson Corrêa
Da Agência Folha, em Amambaí e Japorã (MS)

Cerca de 3.000 índios das etnias guaranis e caiuás invadiram nos últimos dias quatro fazendas e planejam entrar em outras cinco no município de Japorã (464 km ao sul de Campo Grande), em Mato Grosso do Sul.

As invasões começaram no último dia 20, e ao menos oito funcionários foram expulsos das propriedades invadidas, conforme a Agência Folha apurou.

Os índios dizem que as fazendas pertencem à terra indígena Yvy Katu. A área demarcada tem 1.600 hectares, mas os índios querem a expansão para 9.461 hectares, o que inclui as fazendas. A região de conflito está próxima à fronteira com o Paraguai. Os índios falam guarani, como os paraguaios, mas são brasileiros.

Índios armados
Na terça-feira, a reportagem entrou na fazenda São Jorge, de 1.600 hectares, onde estão pelo menos mil índios desde o dia 22. Na sexta-feira, esteve em outra fazenda invadida, a Paloma.

Todos, incluindo mulheres e crianças, estão pintados "para a guerra". Alguns cobrem os rostos com panos, capuz ou tinta preta. Estão armados com espingardas, lanças, arco e flechas, além de bordunas (armas feitas de madeira). Parte deles fica embrenhada no mato cercando toda a fazenda.

Os guaranis e caiuás não aceitam o termo invasão de terra para definir o avanço deles sobre as áreas em Japorã. Dizem que estão "retomando o tekoha [terra indígena]" e criticam a imprensa por chamá-los de invasores.
"A gente não quer nada do fazendeiro. A gente não quer o gado. Quer a terra. Os brancos expulsaram a gente daqui e mandaram para a reserva [aldeia de Porto Lindo, onde moravam]", afirma Tupã-Y, 70. Ele diz ter o umbigo enterrado na área como prova de que nasceu lá.
"Índio não faz invasão. Fazendeiro acabou com a vida e com remédios [plantas medicinais], porque há ambição entre os brancos. Isso era bom para você [o repórter] divulgar para o ministro [da Justiça, Márcio Thomaz Bastos]", afirmou o cacique Mãmãgá. A Funai (Fundação Nacional do Índio) é subordinada ao Ministério da Justiça.

Mãmãgá disse ainda que os "caciques vão dar a vida pela população deles na terra indígena", ou seja, resistir a uma desocupação.
A reportagem encontrou na terça-feira, na estrada de terra que passa nas fazendas, o produtor rural Edson Alves, 63. Ele disse que sua fazenda de 512 hectares foi invadida no dia 23. "Expulsaram dois funcionários, roubaram roupas e destruíram a sede da propriedade", afirmou.

Alves diz que os índios nunca foram os donos das terras onde estão as fazendas e sempre viveram na aldeia de Porto Lindo, a 12 km das propriedades. Ele afirmou ainda que todos os proprietários têm escrituras registradas no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), alguns há quase 70 anos.

Reintegração de posse
Também na mesma estrada, a reportagem encontrou o administrador da fazenda São Jorge, Manoel Aparecido da Silva. Ele disse que, durante a invasão, sua mulher, o filho e mais dois funcionários ficaram reféns dos índios por cinco horas. Silva não quis dar entrevista, alegando que a Agência Folha entrou na propriedade sem pedir licença ao dono.

O dono da área, Pedro Fernandes, 50, entrou com pedido de reintegração de posse na Justiça na semana passada. Ele diz que tem 2.600 cabeças de gado na propriedade. A Justiça marcou uma audiência para esta semana em Campo Grande.

A Polícia Civil registrou ainda uma invasão na fazenda São José, e a Funai confirma que também a fazenda Paloma foi tomada pelos índios no domingo.

Os pecuaristas Advaldo Vanzela e Joel Rodrigues entraram na Justiça no dia 24 com uma ação chamada interdito proibitório. Ela visa obrigar a Funai a impedir novas invasões por parte dos índios, sob pena de multa.

Preferimos morrer do que sair, diz índia
Da Agência Folha, em Amambaí e Japorã

"Preferimos morrer todos juntos com as crianças. Vivo a gente não sai daqui", disse a índia Cunhã Kãguy, 32, à Agência Folha na sexta-feira. Ela está na sede da fazenda Paloma, invadida pelos guaranis e caiuás.

Segundo o cacique Tdju, 63, um raio atingiu na terça-feira passada o motor que puxava água do rio e do açude para a parte alta da fazenda. Tdju quer que o dono da fazenda São Jorge retire 2.600 cabeças de gado da fazenda. "Os animais podem morrer de sede", explicou.
O pecuarista Pedro Fernandes afirmou "que além de invasores os índios são petulantes" por pedirem a retirada do gado. (HC)

Repórter e motorista são reféns por 5 horas
Da Agência Folha, em Amambaí e Japorã (MS)

Índios guaranis e caiuás confundiram o repórter e o motorista da Agência Folha com pistoleiros, impediram a saída dos dois por cinco horas e meia, retiveram os equipamentos da reportagem e pintaram a pele dos dois.

O fato ocorreu na terça-feira, na primeira vez em que a reportagem visitou a área. Posteriormente, numa volta à região na sexta-feira, apesar de terem reconhecido o repórter e o motorista, os índios os fizeram dançar com outros indígenas.

Na visão dos indígenas, fazer os visitantes dançar significa uma boa recepção a eles.
Embora afirme que "o homem branco e o índio vão feder iguais após a morte", o cacique Mãmãgá explica que o repórter da Agência Folha e o motorista do carro (alugado) foram pintados com tintas vermelha e preta, assim que chegaram à fazenda na terça-feira, para ficar com a pele parecida com a dos índios.

Não foi usado urucum (árvore que produz tinta vermelha) nem jenipapo (fruto que dá a tonalidade negra). O material vinha de uma bisnaga de tinta usada para dar cor à cal na pintura de parede.

Guerra
Os índios também estavam pintados, mas "para a guerra". Armados com espingardas, arcos, flechas, bordunas e lanças, três dezenas deles abordaram o carro, que chegou à fazenda após passar por duas barreiras montadas por "guerreiros" indígenas.

O carro foi revistado, e os índios tiraram a câmera fotográfica, a carteira, a caneta, o caderno de anotações e o celular do repórter. Também examinaram a maleta onde estava o computador portátil e um gravador.

O motorista da reportagem, Rogério Granja, ficou sem a chave do carro e sem a carteira.
Os índios tiraram as camisas dos dois e pintaram seus rostos.

Os invasores afirmaram que, a princípio, acreditaram que o repórter e Granja eram pistoleiros.

Perguntaram ao repórter se ele tinha autorização por escrito da Funai para entrar na área. A reportagem explicou que o administrador da Funai Wilian Rodrigues havia dito as lideranças estavam informadas sobre a ida da Agência Folha à fazenda.
"Então, depois que a Funai chegar aqui, vai ficar tudo bem", disse um líder dos índios depois de pedir documentos aos dois visitantes -que ficaram sem camisa, sob o sol, sendo observados por crianças indígenas.

Em seguida, esse índio mandou o repórter e o motorista sentarem em um banco de madeira, na sombra, onde ficaram por duas horas. Nessa espera, um "índio bravo, guerreiro", na definição das lideranças, ameaçou disparar uma flecha em direção aos visitantes.

Carro requisitado
"Eu preferi nem olhar", afirmou Granja depois do ocorrido. Foi ele, entretanto, quem teve a iniciativa de conversar com uma das lideranças. A atitude do motorista abriu caminho para que o repórter entrasse em contato com os demais índios para entrevistá-los.
Após a conversa, porém, o carro foi "requisitado" pelos índios, que iriam a uma aldeia próxima. O repórter ficou na fazenda, e o motorista levou os indígenas.
A Agência Folha deixou a área invadida por volta das 18h30, depois ter entrado lá às 13h, na terça-feira. (HC)

4 homens são expulsos de área por invasores
Da Agência Folha, em Amambaí e Japorã (MS)

Os índios fizeram reféns quatro homens que entraram nos últimos dias na fazenda São Jorge, em Japorã (MS). O contador Orestes Santos, 53, e o sargento da reserva do Exército Osnaldo Nogueira da Luz, 52, ficaram em poder dos guaranis e caiuás por 11 horas na terça-feira passada.

Por volta das 19h, os índios entregaram Luz e Santos à Polícia Federal, que os liberou em seguida em Iguatemi, cidade vizinha.

Na sexta-feira, dois homens foram pegos na fazenda e entregues à Polícia Militar de Iguatemi. Os policiais não identificaram os dois, que disseram ter ido ao local em busca de cavalos perdidos.

Os índios afirmam que Santos e Luz, reféns na terça, são agenciadores de pistoleiros para fazendeiros. A PF não abriu inquérito para apurar o caso.

Luz nega a acusação dos índios. Ele afirma que foi até a área para ver como estavam oito cães rottweiler do dono da propriedade, Pedro Fernandes, de quem é amigo. Disse que chamou Santos para acompanhá-lo, pois ele sabe falar guarani, o idioma dos índios. Os cães estão soltos na propriedade.

A Funai informou que Santos já foi apontado pelos índios como agenciador de pistoleiros.
"Eu só ajudo esse povo", afirmou Santos à Agência Folha.
Os guaranis e caiuás pintaram os dois para "se parecerem menos com os brancos". A camionete usada por eles ficou apreendida na fazenda. (HC)

Funai pede ajuda para a negociação com índios
TERRA À VISTA Chega amanhã ao local indigenista convocado pelo órgão

Da Agência Folha, em Amambai e Japorã (MS)

O administrador da Funai (Fundação Nacional do Índio) em Amambai (393 km de Campo Grande), Wilian Rodrigues, pediu ajuda de técnicos de Brasília para negociar uma solução para conflito com índios em Japorã (MS).

De acordo com o chefe de patrimônio da fundação, Cleomar Vaz Machado, o indigenista Cláudio Romero, que já atuou em conflitos anteriores na região, deve chegar a Amambai amanhã.

Cerca de três mil indígenas invadiram quatro fazendas na região nos últimos dias e expulsaram funcionários das terras. Outras cinco propriedades também podem ser invadidas. O problema começou no dia 20 do mês passado. As tribos dizem que a área lhes pertence e afirmam que foram expulsas dali para uma reserva demarcada atualmente.

Agora, um dos pedidos dos índios é que a Funai envie comida para eles, principalmente para as crianças que estão nas fazendas invadidas, o que deve ser tratado por Romero.

A Funai também deve negociar com índios e fazendeiros a retirada do gado da fazenda São Jorge e a pulverização da lavoura de soja na fazenda Paloma, duas das áreas invadidas.

Líderes dos índios disseram à Agência Folha que confiam no indigenista Cláudio Romero, considerando sua atuação em outras oportunidades.

Rodrigues, o administrador local da Funai, disse que prefere não ir às fazendas invadidas porque teme ser feito refém pelos índios. Essa seria, segundo ele, uma forma encontrada pelas lideranças indígenas de pressionar o governo federal para a nova demarcação da área.
Segundo o administrador, os funcionários da Funai evitam ir à propriedade pois, legalmente, ela é uma área invadida, embora os guaranis e caiuás a chamem de terra indígena.

A Funai informou que o antropólogo Fábio Mura ainda não terminou a identificação da área reclamada pelos índios, primeiro passo para declarar fazendas como terra indígena.
A Agência Folha teve acesso ao mapa elaborado, no dia 12 de setembro de 2001, pelo antropólogo. São 9.461 hectares -a atual reserva demarcada para os índios tem 1.600 hectares. A área desenhada no mapa está localizada entre os córregos Guassuri e Jacareí e o rio Iguatemi.

Esses limites são descritos pelos índios mais velhos.

Pintados
Sobre o fato de a reportagem ter sido a princípio confundida com pistoleiros pelos índios na terça-feira, apesar de a Funai informar que tinha avisado os líderes sobre a ida da Agência Folha até a fazenda, Rodrigues afirmou que houve um mal-entendido entre lideranças. De acordo com ele, existem quatro líderes, e faltou comunicação entre eles.

A presença de dois homens apontados como agenciadores de pistoleiros pelos índios também contribuiu para o mal-entendido, segundo Rodrigues.
(Hudson Corrêa)

FSP, 04/01/2004, Brasil, p. A1, A6-A7

As notícias aqui publicadas são pesquisadas diariamente em diferentes fontes e transcritas tal qual apresentadas em seu canal de origem. O Instituto Socioambiental não se responsabiliza pelas opiniões ou erros publicados nestes textos. Caso você encontre alguma inconsistência nas notícias, por favor, entre em contato diretamente com a fonte.