ISA
13 de Nov de 2006
Integrante da equipe que elaborou estudos para a Paranatinga, que está construindo hidrelétrica no rio Culuene (MT), sobre impactos ambientais que a obra poderá causar às comunidades indígenas xinguanas, o pesquisador do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), da Universidade Federal do Pará, Juarez Pezutti, em mensagem enviada ao site do ISA, questiona a eficácia do mecanismo de transposição, conhecido como sistema de escada proposto pela empresa para assegurar a reprodução dos peixes. A Paranatinga enviou carta ao site do ISA, mencionando a escada como solução para o problema. Leia a nota do pesquisador.
"Tendo participado dos estudos etnoecológicos realizados junto às comunidades indígenas do Xingu, com ênfase na questão ambiental e, portanto, sobre os peixes, quero comentar algumas afirmações da nota de esclarecimento da Paranatinga divulgada no site do ISA.
Quanto ao projeto da escada de peixes, por mais que seja um dos projetos mais modernos dessa natureza já elaborados, não há comprovação de que é um mecanismo que vai garantir migração de grandes cardumes de peixes. Uma coisa é a constatação, através de um sistema moderno e adequado de monitoramento, que uma grande variedade de peixes, inclusive espécies importantes do ponto de vista da subsistência de comunidades ribeirinhas (indígenas ou não) de fato passa pelo sistema. Outra é a escada viabilizar de fato a passagem de cardumes pelo sistema, de modo que não prejudique movimentos migratórios de grandes cardumes. Não existe, hoje, nenhum estudo demonstrando isso, nem evidências concretas de que escadas de peixe tenham tal desempenho. Na nota, consta afirmação de que "o dispositivo está sendo utilizado com sucesso em grandes usinas no país". Quero deixar claro que o empreendedor não tem como garantir o que está afirmando. Na minha contribuição ao estudo etnoecológico apresentado pela equipe de consultores e coordenado pela empresa Documento Antropologia e Arqueologia, me esforcei em levantar informações sobre a importância da pesca na alimentação dos xinguanos, que é indiscutível (e vastamente documentada, inclusive) e em levantar o máximo de informações possíveis sobre o impacto de barragens sobre a diversidade íctica e a produtividade pesqueira a jusante da PCH Paranatinga II.
Dois pontos devem ser destacados da revisão realizada. Primeiro, os impactos negativos sobre a pesca são substanciais, principalmente quando esta está baseada em espécies migradoras. Isto também foi comprovado no Brasil por estudos publicados em periódicos reconhecidos e disponíveis a quem quiser se inteirar do assunto. Revisões atuais sobre o tema estão disponíveis gratuitamente na Internet, no site da Comissão Mundial de Barragens (World Comission of Dams - WCD, www.dams.org), por exemplo.Segundo, não existe comprovação de eficácia de quaisquer sistemas de transposição, inclusive de escadas de peixe. Este sistema é considerado especialmente ineficiente no caso de grandes bagres, como o surubim, tão importante para os xinguanos, como observamos em campo.
A Documento Antropologia e Arqueologia, responsável pela execução do estudo, organizou reuniões da equipe de consultores, do empreendedor, e de ictiólogos com ampla experiência em monitoramento da ictiofauna em hidrelétricas. Discutimos tanto o relatório quanto o projeto, e diversas outras experiências realizadas no Brasil. O consenso foi justamente de que não existem estudos, ainda, que atestem a eficiência das escadas de peixe para viabilizar a passagem de cardumes migradores. Ao contrário, o que consta na literatura é que tais sistemas não resolvem o problema. Ou seja, a maior parte dos cardumes migradores, principalmente os grandes bagres, não passam.
Como a declaração pública do empreendedor aborda elementos sobre os quais me debrucei de forma independente, lamento que os resultados das nossas pesquisas sejam ignorados. Categoricamente. Reafirmo que a empresa não tem evidências concretas para garantir publicamente que o sistema de transposição projetado resolverá o problema, e que as evidências encontradas são que as escadas, até agora, não têm desempenho satisfatório.
Mantenho a opinião que tenho colocado tanto à empresa que me contratou quanto aos representantes da Paranatinga/Atiaia presentes nas reuniões em que discutimos o relatório e o projeto da PCH em si. Considero que o empreendedor vem cometendo um erro estratégico ao tentar convencer a comunidade indígena e a mídia que não existirão impactos ou que os mesmos serão de tal forma minimizados que não causarão danos significativos ao meio ambiente e aos recursos naturais que garantem a sobrevivência daqueles povos. Ao invés deste equívoco, a empresa deveria estabelecer um diálogo aberto de como compensar a comunidade dos prováveis impactos. Uma das possibilidades seria estabelecer uma parceria para enfrentar um problema talvez ainda maior, que é a contaminação dos formadores do Xingu pelos biocidas largamente utilizados pela agroindústria que cerca o Parque Indígena.
O que está sendo rotulado como denúncia vazia, na minha leitura, consiste na lucidez de quem realmente tem algo a perder nessa questão. Estamos falando de um complexo de sociedades milenarmente adaptadas a ter nos peixes sua fonte primária de proteínas. Porquê não nos colocamos no lugar daquelas pessoas? Quem se habilita a sobreviver comendo só o surubim, o filhote e a matrinxã que pescar, sem salário nem supermercado disponível num raio de muitos quilômetros, num rio que vai ser barrado? O que está sendo oferecido em troca deste risco? Tem mais alguém correndo risco desta natureza ou magnitude?"
Juarez Pezzuti Núcleo de Altos Estudos Amazônicos - NAEA Universidade Federal do Pará - UFPA.
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