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Perverso ciclo da pobreza

O Globo, Amanhã, p. 25-28
30 de Abr de 2013

Perverso ciclo da pobreza
Município de Marajá do Sena, no interior do Maranhão, é um exemplo emblemático do descaso do presente e a falta de perspectiva do futuro. Lá vivem as famílias mais pobres do país

CLEIDE CARVALHO
Marajá do Sena, Maranhão
cleide.carvalho@sp.oglobo.com.br

Nem mesmo a presença insólita dos colossais caminhões Thumper, estremecendo a terra sob sol escaldante à procura de petróleo e gás, parece capaz de romper a inércia em Marajá do Sena, no Maranhão. O município onde vivem as famílias mais pobres do país - com renda média de R$ 119,23 por domicílio, segundo o Censo de 2010 - é o retrato amarelado de um Brasil que, à despeito das mais alvissareiras estatísticas econômicas e sociais, parece não avançar. Em Marajá do Sena, é difícil chegar e sair.
Partindo da cidade vizinha de Arame, são quase 70 km de uma estrada que se assemelha a um leito seco de rio, com trechos de areia, declives, sulcos e pedras. Pelo município de Paulo Ramos, o acesso se dá por 45 km de terra em condições semelhantes, onde pequenas pontes de madeira fazem tremer o pau de arara - caminhão com cobertura de plástico e bancos de tábua improvisados que são o principal meio de transporte na região.
Entre março e maio, período de chuvas, os moradores ficam praticamente ilhados.
- Disseram que se tiver petróleo a estrada sai, a firma manda fazer - diz Raimunda Maia da Silva, 50 anos, espiando pela janela os homens de macacões laranja, rostos semicobertos e óculos escuros, cujo silêncio e multiplicação pelas ruas remete a uma hipotética cena de exploração em Marte, tal a discrepância entre visitantes e visitados.
A "firma" é a americana Global Geophysical Service e os "homens de laranja" são funcionários à procura do ouro negro sob a terra.
Sobre o chão, visível é o abandono. Dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome mostram que 1.817 famílias vivem ali em situação de extrema pobreza e 1.529 recebem o Bolsa Família, ou 78,58% da população. De 2004 a 2012, os recursos aumentaram mais de 1000% e os R$ 2,714 milhões da ajuda social foram equivalentes a cerca de 65% do que a prefeitura recebe pelo Fundo de Participação dos Municípios.

SEM EMPREGO, SEM ESTUDO E SEM FUTURO

A geração de emprego em Marajá do Sena tem sido inexpressiva. De 2004 a 2010, o município não foi capaz de criar um único emprego formal. Das 93 vagas com carteira assinada, 92 são na administração pública. O setor agropecuário, que responde por 56,6% do PIB municipal, gerou apenas um posto de trabalho formal. Cerca de 43% das pessoas ocupadas no município produzem apenas para o próprio sustento.
- A única perspectiva de emprego aqui é a Prefeitura - afirma Antônio Bezerra Pessoa, 34 anos, secretário-adjunto de Educação.
Com núcleos de moradia espalhados na área rural, o município carece de infraestrutura. A única coisa disponível para todas as famílias é a energia elétrica. O Censo de 2010 informa que apenas 10% dos domicílios têm abastecimento de água, 12% coleta de lixo e 7,4% algum tipo de esgotamento sanitário considerado adequado. Mas nem mesmo o Centro, cartão de visita de qualquer cidade, é bem cuidado. Suas ruas centrais formam um compasso: duas vias longas e duas transversais curtas. O esgoto corre a céu aberto e a água encanada não chega às quatro ruas diariamente: o abastecimento é alternado.
Sem oferta de trabalho e vivendo num município que não reúne qualquer atratividade para negócios, as pessoas ficam fadadas a viver da ajuda de programas sociais ou migrar.
Mas a mobilidade também esbarra na educação. Os dados do Censo mostram que o Maranhão tem 3,2 milhões de pessoas acima de 10 anos de idade sem instrução ou com ensino fundamental incompleto. Em média, quem mora nas áreas rurais não tem mais do que quatro anos de estudo. Segundo relatório do MDS, em Marajá do Sena 36,6% das pessoas com mais de 10 anos de idade são analfabetas. A situação é ainda mais preocupante se considerado o analfabetismo de crianças e adolescentes com idade entre 10 e 14 anos: 21,7%. E parte do futuro fica comprometida.
- A evasão é alta, principalmente após o 5o ano. Numa sala de 30 alunos, dez não terminam o ano letivo. Eles não têm perspectiva.
Falta oportunidade. Não há portas se abrindo - diz Raimundo Nonato Gonçalves Souza, diretor da Unidade Escolar Teixeira Santos.
A escola Teixeira Santos, colada à Prefeitura e à biblioteca do projeto maranhense "Farol da Educação", é a principal da cidade. Em março, as escolas do município estavam dispensando os alunos após duas horas de aula, por falta de merenda escolar. A casa de Raimunda - que torce pelo petróleo para ver a estrada asfaltada - fica bem em frente ao colégio. Ela é mãe de 16 filhos, 11 com o atual companheiro, Raimundo Freitas da Silva, 73, dos quais sete "vingaram". Seus caçulas são os gêmeos Anani e Ananias. Ananias está no 8o ano, mas Anani engrossa a lista dos que abandonaram a escola.
- Até que assinar o nome ele assina, mas é ruinzinho demais - diz Raimunda. - A gente pelejou para ele estudar. Eu até batia. Já disse para estudar, mas eles não querem. Quando vão ficando maior (sic) deixam o estudo - emenda o pai, referindo-se também aos filhos mais velhos.
Silva lembra que ele próprio não estudou, mas ressalta que os tempos eram outros.
- Eu passei só um mês na escola. Não consigo nem assinar o nome - conta, para emendar com orgulho: - Mas leio a Bíblia.
À exceção dos gêmeos, os outros cinco filhos do casal já deixaram Marajá do Sena. Migraram.
Raimunda conta que os três rapazes trabalham como serventes de pedreiro em Goiânia e as duas mulheres se casaram. Apenas uma das jovens estudou até o Ensino Médio e também se mudou para Goiás. Anani se envergonha por ter deixado a escola há tempos - nem diz quando -, mas não dá sinais de arrependimento ou perspectiva de volta.
- Eu apanho arroz com meu pai. Eu não queria estudar - diz o adolescente. Como pula da cama cedo para ajudar o pai na roça, depois do almoço o adolescente dorme. E o que Anani pretende fazer no futuro?
- Continuar aqui, trabalhando.
Souza, o diretor da escola, conta que a maioria dos adolescentes levados pelos pais para trabalhar na roça desiste de estudar. Primeiro porque são vencidos pelo cansaço. Segundo, porque tendem a repetir a experiência dos pais. Estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas mostrou que em quase todo o Brasil houve pequena evolução no nível de educação dos chefes das famílias extremamente pobres de 2004 a 2009. No Maranhão, não houve qualquer mudança no período.
Em média, os chefes de família pobres no estado têm apenas 2,6 anos de estudo.
- Já se sabe que os países com menos desigualdade são os que oferecem bons sistemas públicos de educação, onde todas as crianças têm acesso aos mesmos recursos para desenvolver suas habilidades, sem que haja diferença por local de nascimento, cor o sexo - afirma o diretor de Estudos e Políticas Sociais do Ipea, Rafael Guerreiro Osório.
Mas mesmo quem quer estudar enfrenta dificuldades. Maria Campelo da Silva, professora em Marajá do Sena, conta que a filha, Laís, de 20 anos, terminou o Ensino Médio em 2012. Chegou a prestar vestibular em São Luís para Nutrição e passou, mas a mãe não pode arcar com a mensalidade, de R$ 900:
- O preço da faculdade é mais da metade do que eu ganho. Fiz um empréstimo para comprar uma casa e pago R$ 600 por mês. Se fosse pagar a faculdade, iria viver do que? Maria diz que a solução para Laís foi se mudar para o município de Lago da Pedra, a 83 km de Marajá do Sena, onde a jovem procura emprego para pagar um curso de Assistência Social, com mensalidade de R$ 210, bem mais barato. Ir embora de Marajá do Sena parece ser a única alternativa para os jovens.
Quando se aproxima a idade de ganhar dinheiro para formar família, saem do município.
Em geral, muitos partem estados vizinhos ou para a colheita de cana em São Paulo - mas até mesmo este futuro nas lavouras paulistas lhes será negado, já que, em um ano, a mecanização deverá ser obrigatória.

OPÇÃO PELA MIGRAÇÃO
No Maranhão, o drama de Marajá do Sena se repete. Segundo dados do IBGE, na lista dos 15 municípios com a população mais pobre do país, 13 estão no Maranhão - os outros dois são Uiramutã, em Roraima, e Santo Antônio do Içá, no Amazonas. Se ampliado o ranking para os 50 municípios mais pobres, o Maranhão fica com 29 deles, e para cem, o estado tem 51.
- Existe uma desistência da população em relação ao Maranhão. A característica mais marcante é a migração a curta distância, para o Pará ou Tocantins. São pessoas muito pobres, sem dinheiro até para ir a lugares mais distantes - diz Rogério Boueri, diretor de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais do Ipea.
Boueri explica que a migração é causa e efeito da falta de perspectiva. Ao mesmo tempo que os municípios não conseguem gerar oportunidades, as pessoas que migram são justamente as mais inovadoras e com mais perspectiva de desenvolvimento pessoal.
- Quando as pessoas com este perfil saem, ficam as mais dependentes ou as que não veem motivo para sair. Saem quando já não aguentam mais - avalia o pesquisador.
Boueri lembra que muitos dos municípios extremamente pobres do Brasil foram criados para aumentar o volume de recursos recebidos do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Marajá do Sena pode ser um exemplo.
O município foi desmembrado de Paulo Ramos em 1994. Juntos, teriam hoje uma população de 28.130 pessoas e direito a um coeficiente de 1,4 do FPM. Separados, Paulo Ramos tem direito a 1,2 e Marajá do Sena a 0,6.
- O desmembramento permitiu um aumento de 28,6% no valor dos recursos recebidos do FPM. Para a população, porém, há desvantagem, pois municípios muito pequenos não têm escala para promover prestação de serviços e desenvolvimento. O município perde até mesmo no uso de recursos humanos, pois profissionais que estariam na linha de frente dos serviços à população são usados na área administrativa - diz Boueri.
Rafael Osório, diretor de Estudos e Políticas Sociais do Ipea, avalia que, por mais que sejam criados programas federais, as intervenções públicas dependem do conhecimento local para serem mais efetivas e eficientes.
Em muitos municípios, acrescenta, falta capacidade administrativa para acessar recursos.
A concentração de emprego na prefeitura aumenta o poder político: as vagas se transformam em poderosa moeda de troca nas eleições. Em Marajá do Sena, a maioria das pessoas conta que dá seu voto ao candidato que lhe oferecer um emprego.
- A população não tem em quem se apegar.
Todo mundo segue o prefeito. Quando eu tento denunciar alguma coisa que acho errada, o Ministério Público diz que preciso ter provas - afirma o vereador Willami Martins Chaves, oposição em Marajá do Sena.
No dia em que O GLOBO esteve em Marajá do Sena, os funcionários da prefeitura informaram que não estavam na cidade nem o prefeito, nem os secretários. Todos estariam na capital, São Luís, ou em cidades próximas de maior porte. Parte dos eleitores também não mora na cidade. Em Marajá do Sena, a conta é simples: pelo Censo de 2010 o município tem 8.051 habitantes e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) registrou 6.526 eleitores nas eleições daquele ano. Considerando que, pelo mesmo Censo, são 3.179 crianças e adolescentes até 14 anos de idade vivendo no município, sobram 4.872 pessoas acima de 15 anos. Ou seja, pelo menos 1.653 eleitores - ou mais - viviam fora do município.
- Sem a participação das elites locais não há como romper o ciclo da pobreza - afirma Osório. - É preciso mobilizar não apenas os políticos, mas líderes culturais e empresariais.
A elite precisa ter uma visão mais larga e perceber que pode se beneficiar do processo se o desenvolvimento ocorrer em uma velocidade maior.

MARAJÁ DO SENA aguarda o resultado da busca por petróleo e gás em seu subsolo. Inserido na Bacia do Parnaíba, área de 680 km² licitada pela Agência Nacional do Petróleo, o município poderá ser beneficiado pelos royalties da sua exploração. Mas nem sempre a riqueza da terra altera a dos homens. Godofredo Viana, por exemplo, exportou US$ 124,6 milhões em 2012 em ouro da primeira mina do Maranhão, mas tem 1.480 famílias no Bolsa Família e 5.985 de seus pouco mais de 10 mil habitantes na extrema pobreza.

O Globo, 30/04/2013, Amanhã, p. 25-28

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