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Perigo na Floresta

Isto É, Medicina & Bem-Estar, p. 48-50
18 de Ago de 2004

Perigo na floresta
Males como desnutrição infantil, tuberculose, pneumonia e hepatite ameaçam várias populações indígenas brasileiras

Mônica Tarantino

O Brasil tem pouco mais de 381 mil índios de aproximadamente 216 povos. Já foram mais de um milhão e meio, antes do contato com o branco. E, infelizmente, a contar pelo panorama na saúde indígena, a situação não é nada animadora. Segundo relatório da Fundação Nacional de Saúde (Funasa), do Ministério da Saúde, cerca de 1,5% dos xavantes, na região Centro-Oeste, morreu em 2002 (últimos dados disponíveis). Nada menos do que 74% eram menores de cinco anos. Na maioria, foram crianças vítimas de desnutrição. De acordo com o mesmo documento, a tuberculose e a pneumonia também estão entre as principais causas de óbitos entre os povos.
Muitas dessas vidas poderiam ser preservadas em condições de atendimento diferenciadas das que existem. Até abril, a assistência à saúde indígena foi baseada em convênios com organizações não-governamentais. Elas recebiam o dinheiro do governo e se responsabilizavam pelo planejamento e execução das ações. Durante os quatro anos em que o esquema vigorou, houve melhora de indicadores da saúde, como a redução da mortalidade, em algumas áreas. Porém, denúncias sobre a péssima qualidade do atendimento e má aplicação dos recursos em muitas áreas culminaram na troca de Ricardo Chagas, responsável pela saúde dos índios na Funasa, pelo médico Alexandre Padilha, em abril.
Vão-se os homens, continuam os problemas. Padilha tem pela frente a tarefa de implantar uma nova forma de relacionamento com as ONGs e garantir que as verbas não sejam consumidas sem que os indicadores de saúde melhorem. Por outro lado, por causa da interrupção dos convênios há três meses, muitas áreas ficaram com a assistência prejudicada. É o que acontece entre os ianomâmi, de Roraima. Eles aguardam que a equipe recém-contratada pela Funasa tome pé da situação para continuar o atendimento. "Não se pode parar com o trabalho porque senão as doenças voltam", disse a ISTOÉ o chefe Davi Ianomâmi.
Mas é na região do Vale do Javari, no noroeste da Amazônia, que se identifica um quadro muito preocupante. Parte dos três mil índios da região enfrenta uma grave epidemia de hepatite B, uma forma da doença que pode se tornar crônica. Estão ameaçados matis, marubos e korubos, entre outros. A denúncia veio à tona depois de um incidente envolvendo a Funasa, a Fundação Nacional do Índio (Funai), vinculada ao Ministério da Justiça, e um grupo de médicos de Florianópolis que participou da expedição Imagens do Javari, em abril. Interessados em atender as populações indígenas, os médicos conseguiram patrocínio de 40 empresas. Montaram um laboratório de última geração nos barcos cedidos pelo sertanista Sidney Possuelo, da Funai, responsável pela proteção aos índios isolados da área. Vinte dias depois de começar a subir o rio Ituí, a expedição foi interrompida por uma liminar da Justiça Federal de Tabatinga, no Amazonas, sob a alegação de proteger os direitos de imagem dos índios. Os índios, no entanto, deram seu consentimento aos expedicionários. Conforme o autor da ação, o procurador da República Paulo Cézar Barata, também faltava à expedição levar a bordo uma equipe com outros especialistas, como antropólogos e epidemiologistas.
A razão de fundo para o impedimento parece estar na falta de entendimento da Funasa com os expedicionários, entre eles o sertanista Possuelo. O órgão argumenta que a expedição saiu sem a sua concordância. Porém, os organizadores afirmam que houve quatro reuniões anteriores e a promessa de um protocolo de intenções assegurando a colaboração da Funasa na iniciativa. O médico Sérgio Brincas, um dos participantes do projeto, se diz frustrado. "Sempre deixamos claro que nossa intenção era dar os resultados dos exames que faríamos aos órgãos competentes", reclama. O procurador Barata diz que se dispõe a paralisar a ação se a Funai assumir o compromisso de colaborar com a Funasa nas ações de saúde.

Imunidade - Independentemente do final dessa história, a expedição chamou a atenção para um problema grave. Quando foi interrompida, já tinha realizado 413 exames, que ficaram à disposição da Funasa. ISTOÉ teve acesso com exclusividade aos resultados. Apenas 14% da população desenvolveu imunidade ao vírus da hepatite B a partir de vacinação. "Trata-se de uma imunização pela vacina extremamente baixa para uma área considerada endêmica, mas que se mostra numa situação de epidemia", disse o infectologista Artur Timerman, que comentou os dados a pedido de ISTOÉ.
Outros 23% dos índios examinados desenvolveram imunidade natural ao vírus. Por um lado, isso é bom. Indica que o organismo produziu anticorpos e eliminou o vírus, tornando o corpo imune. Por outro, alerta para a grande quantidade de pessoas na região que teve contato com o vírus da hepatite B. No total, cerca de 37% dos habitantes da região das aldeias marubo e matis ao longo do Rio Ituí, entre vacinados e naturalmente imunes, não correm risco de pegar a doença. Porém, restam outros 55% de índios sem defesa contra o vírus.
A situação é ainda mais grave para os 8% dos índios que possuem o vírus da hepatite B em sua forma crônica, ou seja, com risco de desenvolver formas graves que causem danos como a cirrose. Isso pode demorar décadas ou ser apressado pela presença de outros vírus, como o da hepatite Delta, ou por doenças como a malária e a leptospirose. "A combinação do vírus B com o D com essas doenças e também com alcoolismo pode desencadear uma forma fulminante da doença. Seus sintomas são hemorragias, amarelecimento da pele, mal-estar e febre. Pode matar em poucos dias. Por isso, é preciso investigar a presença do vírus Delta na região e acompanhar os pacientes portadores da forma crônica da doença. Existem antivirais para esse tratamento", esclarece Timerman. Nesses casos, pode desenhar-se um quadro conhecido como síndrome da febre ictero-hemorrágica aguda. De acordo com o ecólogo Hilton Nascimento, da ong Centro de Trabalho Indigenista, no Javari houve pelo menos 17 mortes desde 2003, causadas pela síndrome. "Se nada for feito, a expectativa de vida dessa população será cada vez menor", diz Nascimento, autor de um dossiê sobre o tema.
A Funasa planeja ações para melhorar esse quadro. No dia 25 deste mês, inicia-se mais uma etapa de vacinação na área para ampliar a imunização contra a hepatite B. "Enviaremos dois médicos para a região, vacinas e imunobiológicos", garantiu Padilha. Apesar dos planos do governo, pessoas da região ouvidas por ISTOÉ dizem que já passou da hora de os projetos saírem do papel. Segundo os relatos, faltam à Funasa medicamentos, barcos e gasolina para atingir aldeias mais distantes e enfrentar a epidemia. Enfim, é hora de os brancos se entenderem.

Triste imagem
Normalmente fotografados para mostrar ao mundo sua integração com a floresta, os índios ianomâmi autorizaram o fotógrafo brasileiro Valdir Cruz, residente nos Estados Unidos, a mostrar um outro lado da sua vida.
Durante oito meses, entre 1996 e 1997, Cruz registrou o sofrimento dos índios com suas enfermidades.
São imagens em preto-e-branco de índios com sequelas físicas de doenças, cegueira, crianças com infestações de bicho-do-pé, conjuntivites. Reunidas em livro e já expostas em outros países, as imagens poderão ser vistas a partir do dia 19 de agosto em exposição no Conjunto Cultural da Caixa, em Brasília.

Ameaça em cadeia
O sertanista Sidney Possuelo, 64 anos, é coordenador geral de Índios Isolados da Fundação Nacional do Índio (Funai). Ele nasceu no dia 19 de abril, no ano em que a data foi consagrada no Brasil como dia do índio. Foi uma espécie de vaticínio de uma vida dedicada a esses povos. Em junho deste ano, recebeu a medalha de benfeitor da Sociedade Real Geográfica, da Inglaterra, em reconhecimento ao seu trabalho. Possuelo foi um dos articuladores da Expedição Imagens do Javari, em abril de 2004.
ISTOÉ - Como o sr. avalia a saúde dos índios no Vale do Javari?
Possuelo - Estou preocupado com o aumento do número de atendimentos de emergência e mortes na região por uma doença considerada uma febre hemorrágica. Em 2001, três índios morreram rapidamente. A Funai avisou a Funasa e pediu que a situação fosse averiguada. No ano passado, houve mais mortes. Os índios estão assustados. Apesar da gravidade da situação, o antigo responsável pela saúde indígena da Funasa afirmava que estava tudo sob controle. Não é o que se vê.
ISTOÉ - O sr. é responsável pela proteção aos índios isolados. Por que se preocupou com os casos de hepatite em tribos já contatadas?
Possuelo - Os povos isolados são aqueles que tiveram algum contato ou nenhum e vivem em pontos distantes da floresta. A Funai monitora esses povos, mas não faz contato a menos que exista risco para sua sobrevivência. Mas existem alguns encontros entre os povos do Javari. Os matis se encontram com um grupo de 22 korubos, que de vez em quando encontra um grupo korubo maior, isolado. E já houve um matis que teve relação sexual com uma korubo desse grupo menor. Como a hepatite B é sexualmente transmissível, um caso desse pode ser suficiente para disseminar a doença. E se ela contraiu a doença, pode um dia engravidar e passar para o filho. Por isso é preciso agir para controlar os casos na região e garantir que as pessoas sejam imunizadas. Falo nisso desde 2001.
ISTOÉ - A demarcação das terras tem impacto na saúde dos povos indígenas?
Possuelo - Sim. A subnutrição que afeta vários povos está relacionada com a mudança de hábitos alimentares e falta de caça e pesca. Porém, desde o governo Fernando Henrique Cardoso os povos estão esquecidos. As demarcações de terras indígenas estão muito lentas. Por trás de tudo estão o poder econômico, o interesse sobre a terra, os minérios, as madeiras, a biologia, os animais.

Isto É, 18/08/2004, Medicina & Bem-Estar, p. 48-50

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