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Perdoes em profusao

OESP, Notas e Informacoes, p.A3
22 de Abr de 2005

Perdões em profusão
"Vai levar muitos anos para que a gente consiga devolver aquilo que um dia foi tirado de vocês." Estas palavras foram dirigidas pelo presidente Lula a 27 líderes indígenas, depois da homologação, na semana passada, da Reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima - uma área maior do que o Estado de Sergipe para 14 mil índios -, e da homologação de mais cinco reservas na comemoração do "Dia do Índio", a saber: a São Sebastião, de 61 mil hectares para 224 índios kokamas; a Espírito Santo, de 33,8 mil hectares para 121 índios kokamas; a Tabalascada, de 13 mil hectares para 301 índios wapixanas e makuxis; a Awá, de 116,5 mil hectares para 198 índios guajás; e a Maranduba, de 375 mil hectares para 31 índios karajás - num total de 599 mil hectares para 875 índios.
Na verdade, para "devolver aquilo que um dia foi tirado" dos índios, nos últimos 500 anos, o governo Lula precisaria transformar todo o território nacional em reserva indígena e, quem sabe, passar o poder político-administrativo de Pindorama aos descendentes legítimos dos habitantes pré-cabralinos - se bem que a disputa da chefia de Estado e governo de uma eventual República dos Povos Indígenas pudesse provocar uma guerra entre as diversas etnias de conseqüências mais devastadoras do que seus contatos com o conquistador branco. Infelizmente, a história das civilizações tem implicado a substituição (e até extinção) de umas pelas outras, em processos de gradação desigual de violências, no que o mais difícil tem sido a preservação de convivência pacífica de povos diferentes (ou em estágios distantes de evolução) num mesmo território.
Talvez mais consciente, do que o presidente, das reais dificuldades em "devolver aquilo que um dia foi tirado" dos índios, o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, descobriu a solução na fórmula em moda de "pedir, oficialmente, perdão", já adotada pelo presidente Lula, no Senegal, referindo-se ao cruel regime de escravidão que, como quase todos os povos do mundo, de todas as raças, desde priscas eras, tivemos em nosso território. Não há malefício a apontar em pedidos de perdão - se bem que a profusão deles esvazie seu próprio sentido. Mas em relação aos índios há débitos mais recentes - e certamente imperdoáveis - como o das mortes por desnutrição, em janeiro e fevereiro, de 15 crianças guaranis nas aldeias de Dourados, Mato Grosso do Sul (região em que a mortalidade infantil anual chega a 64 por mil, enquanto a média nacional é de 25 por mil). Se a terra foi tirada de seus antepassados, o mínimo que o Estado brasileiro pode fazer pelos indígenas, hoje, é ajudá-los a ter saúde e sobreviver.
Mas, como diziam nossos antepassados romanos, est modus in rebus, sunt certi denique fines (há uma medida nas coisas, existem, afinal, certos limites). A pretexto de "resgatar débitos históricos" não podem as autoridades públicas fomentar cizânias, extinguir meios de sobrevivência de inúmeras famílias de produtores e semear violência que pode tornar-se incontrolável. Desde que o governo anunciou a demarcação de 1 milhão e 758 mil hectares como terras indígenas em Roraima - a Raposa Serra do Sol -, na qual englobados ficaram os 100 mil hectares cultivados pelos arrozeiros, que têm agora um ano para abandonar sua produção e deixar a área, criou, de fato, um grave problema social. A questão foi bem resumida pelo prefeito do município de Pacaraima, Paulo César Justo Quartieiro (PDT), nos seguintes termos: "A nós, brasileiros de Pacaraima, restaram duas opções: reagir ou aceitar o aniquilamento. Optamos pela reação."
Em sã consciência, quem concordará em ser aniquilado? A demonstrar o grau de desespero a que chegam os produtores de arroz daquela região está o fato de recorrerem até ao governo do presidente Hugo Chávez, da Venezuela, que faz fronteira com o País, na região, alegando que Pacaraima estaria "sitiada por forças federais" e "toda a faixa de fronteira estaria virando território de ONGs americanas, com a finalidade de minar a influência de Chávez no continente". E, além de tentarem resistir com medidas judiciais - e até recurso a fóruns internacionais -, os cultivadores de arroz, sob a ameaça de serem expropriados de seus meios de produção e sobrevivência, prometem resistência armada. Donde se conclui que produção e sobrevivência de grupos sociais têm razões que a razão do perdão oficial desconhece.

OESP, 22/04/2005, p. A3

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