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Pelas mãos do governo

O Globo, Economia, p. 19
22 de Abr de 2010

Pelas mãos do governo
Consórcios mudaram lances por Belo Monte após Eletrobras impor lucratividade menor

Gustavo Paul, Mônica Tavares e Ronaldo D'Ercole
Brasília e São Paulo

O governo jogou pesado para que o consórcio Norte Energia, liderado pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf) fosse o vencedor da concorrência para construção da usina de Belo Monte. Pouco antes do leilão, a Eletrobras mandou um recado para os dois consórcios em disputa, determinando que a taxa de retorno do empreendimento deveria ser de apenas 8%, bem abaixo dos 12% esperados pelas empresas privadas.

Diante dessa exigência e temendo prejuízos com a obra, o consórcio Belo Monte Energia, liderado pela construtora Andrade Gutierrez, decidiu por uma proposta conservadora, enquanto a estatal Chesf apostou na rentabilidade menor.

O governo determinou a redução dessa taxa de retorno argumentando que o financiamento dado pelo BNDES já prevê juros subsidiados de 4% ao ano, por um período de três décadas. Esse e os outros benefícios concedidos na véspera seriam suficientes para compensar os custos dos empreendedores. Mas, as empresas privadas queriam que o retorno financeiro fosse de pelo menos 12% ao ano, percentual considerado razoável dentro de um cenário em que a taxa básica de juros anual está em 8,75% e os riscos inerentes ao empreendimento são gigantescos.

A ordem dada de última hora levou os consórcios a refazer suas contas pouco antes do leilão. Uma fonte do mercado de energia conta que até o meio dia o grupo da Andrade Gutierrez ainda estava revendo seus cálculos. A partir daí, os dois consórcios seguiram caminhos diferentes.
Petrobras poderá integrar consórcio
O mais conservador, liderado pelas empresas privadas e contando com a Votorantim e a Vale decidiu puxar o freio e apostou, segundo informações não oficiais, em uma tarifa de apenas R$ 82,90 o megawatt/ hora (MWh), pouco abaixo da preço teto, estabelecido em R$ 83. Uma taxa de retorno tão baixa foi considerada inexequível pelos empresários.

Eles temem que os riscos da obra reduzam os ganhos para próximo de zero. As estatais Furnas e Eletrosul não tiveram como reverter essa posição.

Do outro lado, o consórcio da estatal Chesf seguiu a vontade do seu controlador e apostou na tarifa de R$ 77,97 o MWh, para levar o leilão em uma tacada só. Essa foi a razão do deságio de 6,02%. A decisão foi tomada por Eletrobras e Chesf, mas contou com a concordância dos demais sócios. Segundo fontes do setor, as empresas privadas não puderam reagir contra a redução da rentabilidade, exigida pelo sócio maior.

Ainda de acordo com fontes, o governo também não queria mais ficar refém das grandes construtoras.

Nos últimos meses, o Palácio do Planalto estava se sentindo chantageado pelas empreiteiras. O episódio da desistência da Odebrecht e da Camargo Corrêa de participar do leilão causou irritação, a ponto de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter vindo a público anunciar que a obra sairia de qualquer forma. Também estão na lembrança do governo os conflitos que envolveram as empreiteiras nas licitações das usinas de Jirau e Santo Antonio, no Rio Madeira.

Em Jirau, por exemplo, ocorreu uma série de questionamentos e disputas, inclusive judiciais. A Odebrecht, que perdeu o leilão, ameaçou levar à Justiça o consórcio Energia Sustentável do Brasil (que tinha a Camargo Corrêa como sócia), alegando que o projeto básico foi modificado indevidamente.

A leitura é que nas últimas grandes obras de infraestrutura as empreiteiras sempre saíram vencedoras.

Pela ótica governamental, caso as construtoras resolvam deixar o consórcio, elas terão ganhos como contratadas para levantar a usina, ou seja, continuarão tendo seu lucro, mas numa proporção relativamente menor. Afinal, diz um observador do setor, Belo Monte é gigantesca e tem obra para todos.

A Eletrobras e a Chesf também estavam seguindo estritamente uma política de governo. A holding passou a ser usada como instrumento de política energética. A energia de Belo Monte é considerada vital para o abastecimento do país na década. A orientação oficial também é reduzir nos leilões, ao máximo possível, a tarifa de energia para a maior parte dos consumidores brasileiros.

Vencida a fase do leilão, o problema mais difícil para o consórcio será a governança da Sociedade de Propósito Específico (SPE), que irá construir Belo Monte e terá de ser arquitetada até a outorga da concessão, em 23 de setembro. Um dos desafios será determinar qual o autoprodutor - grande empresa que constrói usina para consumo próprio - que irá entrar no grupo. De acordo com uma fonte do setor, a Petrobras, via a subsidiária Braskem (que também tem a Odebrecht como sócia), poderá se agregar, reforçando seu viés estatal.

O consórcio Norte Energia venceu a licitação de Belo Monte mas ainda não fechou uma equação que garanta a viabilidade econômico-financeira do empreendimento. A tarifa de R$ 77,97 poderá dificultar a atração de novos parceiros e reduzir a parcela de financiamento a ser concedido pelo BNDES. Esta pode cair de 80% para 60%, avalia um integrante de uma construtora.

Já a briga interna do consórcio deve-se às divergências quanto aos aportes de cada um a partir de agora. A construtora Queiroz Galvão, que informou que poderá sair do grupo logo depois do certame, não estaria satisfeita com exigências feitas pelo governo de pagamentos de garantias. Estas estariam sendo maiores do que sua parcela no grupo, de apenas 10,02%.

Segunda-feira, véspera do leilão da hidrelétrica de Belo Monte, corria no mercado que o consórcio liderado pela Andrade Gutierrez daria um lance com deságio de 5,1% sobre os R$ 83 o megawatt-hora do preço-teto estabelecido pela Aneel, para que não houvesse uma segunda rodada no pregão. Montado a toque de caixa, depois que Camargo Corrêa e Odebrecht saíram do páreo, o Norte Energia, com o grupo Bertin à frente e apoio do governo, era tido apenas como coadjuvante. Pelo vulto do investimento e complexidade da obra de engenharia, imaginava-se do grupo bancado pelo governo um lance simbólico, muito próximo do teto.

Como o edital dispensava novos lances se a diferença entre os lances superasse 5%, tudo estaria resolvido em favor dos favoritos. Deu-se exatamente o contrário.

- A tarifa de R$ 77,97 pressupõe que eles consideraram uma tarifa relativamente alta para os 20% da energia da usina que poderá ser vendida no mercado livre - avaliava ontem um executivo do consórcio derrotado.
Lucro menor teria causado desistência
Três variáveis, explicou ele, foram determinantes para se chegar àquele preço: os valores estimados para os preços da energia que será vendida a autoprodutores e no mercado livre, além da taxa de retorno do investimento acertada pelos sócios.

O baixo nível de retorno seria o motivo da ameaça das construtoras Queiroz Galvão e J. Malucelli de deixar o consórcio vencedor.

- Esses são pontos significativos, que pesaram para estabelecer aquela proposta - completou o executivo.

Outro expediente usado pelo Norte Energia que surpreendeu os especialistas foi a inclusão provisória de uma das empresas do consórcio - supostamente uma das duas inscritas pelo Bertin, Gaia ou Contern - como autoprodutora, o que restringiu o preço de R$ 77,97 a 70% da energia a ser gerada. A Aneel não havia dado detalhes de como essa "reserva" foi feita, mas é certo que pelo menos um grupo industrial deverá se integrar mais adiante ao grupo vencedor, como adiantaram dirigentes da Chesf depois do leilão.

O Globo, 22/04/2010, Economia, p. 19

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