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Pedreira explora fósseis em São Paulo

FSP, Ciência, p. A12
03 de Jan de 2007

Pedreira explora fósseis em São Paulo
Restos de animais de 280 milhões de anos preservados em rocha calcária são vendidos ilegalmente para fora do Brasil
Carregamento com oito fósseis de réptil marinho foi apreendido no fim de 2006 em aeroporto de Paris e avaliado em cem mil euros

Claudio Angelo
Enviado Especial a Itapetininga (SP)

Em meados de novembro, a alfândega francesa apreendeu no aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, um carregamento de oito fósseis de mesossauro, um réptil marinho de 250 milhões de anos, extraídos ilegalmente do Brasil. As peças estavam em um carregamento de bíblias, e foram avaliadas em 100 mil (cerca de R$ 295 mil).

Os fósseis provavelmente saíram de uma pedreira na região de Itapetininga, no sudoeste paulista. Ali, trabalhadores rurais são contratados para passar o dia quebrando blocos de calcário em busca dos vestígios desses seres. O pagamento varia: alguns recebem menos de um salário mínimo por mês; outros ganham de R$ 30 a R$ 50 por "pedra" (fóssil) extraída.

Essa diferença de quase mil vezes nos ganhos nas duas pontas da cadeia é só um dos problemas do tráfico de fósseis. Num momento em que o Ministério Público e o DNPM (Departamento Nacional da Produção Mineral, órgão ligado ao Ministério das Minas e Energia) se unem para elaborar uma legislação mais rigorosa contra esse comércio, a extração clandestina e a exportação de restos de plantas e animais pré-históricos segue a toda no país.

O problema é mais conhecido na bacia do Araripe, no Ceará, uma das maiores e mais importantes jazidas fossilíferas do mundo. Mas também existe no Estado de São Paulo, onde, segundo a Folha verificou, algumas pedreiras deixam de comercializar o calcário, atividade para a qual obtiveram licença, para "minerar" os fósseis que nele se encontram.

Numa pedreira visitada pela reportagem na região de Itapetininga, por exemplo, há duas áreas de extração recém-abertas com essa finalidade. Delas saem fósseis de planta, peixe e, principalmente, os "bichos" (mesossauros adultos) e as "lagartixas" (mesossauros filhotes, ainda mais raros).

Ambas as áreas foram abertas para exploração por Antônio Márcio Gusmão, que arrenda pedreiras para extrair fósseis pelo menos desde a década de 1980. Ele é irmão da artesã Urânia Gusmão Corradini, apontada pelo DNPM como chefe do esquema de tráfico de fósseis no Estado de São Paulo.

A artesã também tem ligações com a comunidade científica -tem até um inseto batizado com seu nome, o Cratogenites corradinae. Diz ter vendido material a pelo menos dois pesquisadores de renome mundial: Diógenes Campos, chefe do Museu de Ciências da Terra do DNPM, e Alexander Kellner, do Museu Nacional. Ambos negam a compra.

Ela responde a pelo menos dois processos na Justiça Federal. É acusada de se apropriar ilegalmente de bens da União (os fósseis, como tudo que está no subsolo, são patrimônio federal), e negocia com o Ministério Público Federal um termo de ajustamento de conduta, pelo qual receberia uma pena alternativa em troca da suspensão do comércio.

Corradini disse à Folha que está "parada" e há mais de seis meses não vende fósseis. Diz que não tem contato com o irmão "há quatro meses" e que nunca recebeu fósseis dele para mandar ao exterior.

Em uma pedreira arrendada por Gusmão e visitada pela reportagem, mais de uma dezena de fósseis de mesossauro se encontravam já separados, em blocos, prontos para o transporte. Ferramentas como marretas, pás e talhadeiras estavam espalhadas pela área, a indicar trabalho recente.

Famílias

A pedreira é a mesma de onde saíram duas lajes de calcário contendo "famílias" de mesossauros do gênero Stereosternum. No dizer dos trabalhadores das pedreiras, "famílias" são placas nas quais vários répteis morreram juntos. São peças raríssimas -no Brasil inteiro só são conhecidas essas duas-, e ambas foram vendidas por Corradini no passado.
Um dos trabalhadores contratados por Gusmão afirma ter extraído, em um mês de trabalho, "seis bichos e dez lagartixas". Em sua casa, ele mantém uma espécie de caderneta de poupança petrificada: três fósseis espetaculares de mesossauro, que está deixando "para vender depois". Um deles, diz, gostaria de trocar por uma antena parabólica. Valor: R$ 400.
Se vendesse seus fósseis na internet, provavelmente ganharia mais dinheiro. Fósseis de mesossauro da formação Irati, como se chama esse conjunto de rochas, podem ser achados à venda no E-bay e em sites especializados em fósseis (esse comércio é legalizado em várias partes do mundo, como nos EUA) por valores que vão de US$ 300 (R$ 600) a US$ 2.000 (R$ 4.000).

Prejuízo

O tráfico de fósseis traz prejuízos à comunidade científica nacional, que muitas vezes precisa buscar espécimes raros da fauna pré-histórica brasileira para estudar em museus e coleções privadas no exterior. Ou, pior, pagar o mico de ver cientistas estrangeiros descrevendo com prioridade fósseis brasileiros aos quais os próprios brasileiros não tiveram acesso, porque não puderam pagar.

"Não sei se essa nova legislação será eficaz contra esse comércio. É um problema que existia, existe e continuará existindo", diz o paleontólogo Reinaldo José Bertini, da Unesp de Rio Claro.

Fósseis comuns como os mesossauros, no entanto, já não representam novidade nenhuma para a ciência. Mesmo assim, diz Bertini, seu comércio precisa seguir proibido.

"Não é porque existe às pencas que deve sair do país. Isso é um acervo brasileiro, que nem todas as universidades têm."

Outro lado

"Se não tirarem eu vou moer", diz proprietário

João Lopes, dono da pedreira visitada pela Folha, resume numa equação simples a razão para permitir a exploração de fósseis em sua área: "Tento vender a tonelada do calcário por R$ 35. Quantos caminhões da calcário eu preciso tirar para comprar uma bateria para isso aqui?"- questiona, apontando para seu celular.

Lopes diz que permitiu a Gusmão tirar "umas pedrinhas" de sua área de forma a abrir os afloramentos para futura exploração de calcário, quando os preços melhorarem. "Meu ramo não é fósseis. Mexo com adubo orgânico e carvão. Não sei o que fazem com essas pedras, se vão para escolas, para onde vão. Não estou cometendo nenhum crime."

Lopes tem um argumento que mostra os vários tons de cinza que existem no debate sobre o patrimônio fossilífero e que nem sempre aparecem na formulação de políticas públicas para resolver o problema. De 1974 a 1985, antes de conhecer a família Gusmão e de saber sobre os fósseis, ele simplesmente moía todo o calcário que explorava. Muitos exemplares da biodiversidade pré-histórica brasileira literalmente viraram pó, sem que nenhuma autoridade protestasse. Diz que é "muita ignorância" perseguir os Gusmão.

"Essa lei está errada. Se eles não tirarem [os fósseis], eu vou moer."

UTI emocional

Procurada pela Folha, Urânia Corradini disse que não daria entrevistas enquanto sua situação não fosse definida pela Justiça. Queixou-se de problemas financeiros e emocionais causados pelas sucessivas apreensões de seu material e pelas ações na Justiça contra ela. "Fui muito perseguida. Toda essa situação me deixou numa UTI emocional."

Ela disse também que não tem contato com o irmão há quatro meses, nem sabe sobre as atividades dele. "Não posso responder por ele."

Gusmão mora em Itapetininga, mas não tem telefones e não pôde ser localizado pela Folha. A reportagem tentou localizá-lo nos dias 20 e 21 de dezembro e ontem na casa de sua irmã, onde deveria ter passado o Natal, mas não teve sucesso. (CA)

Região foi mar e ligava país à África

Os mesossauros, répteis marinhos cujos fósseis abundam no interior de São Paulo, já foram estrelas da geologia. Eles foram uma evidência decisiva da ligação entre a África e a América do Sul há 280 milhões de anos, que baseou a teoria da deriva continental e da tectônica.

Os mesossauros, dos quais existem três espécies no país, são encontrados tanto no Brasil quanto em rochas da mesma idade na África.

No Permiano, período geológico em que esses pequenos animais viveram, as terras emersas do globo estavam unidas num só continente, a Pangéia (do grego, "todas as terras").

O sul de São Paulo e partes do Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul faziam parte de um mar quente e raso, que os geólogos chamam de mar do Irati. Nesse tipo de ambiente ocorre a deposição de carbonatos, que vão virar rocha calcária depois. (CA)

FSP, 03/01/2007, Ciência, p. A12

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